O acesso à justiça e sua projeção no controle jurisdicional de constitucionalidade no Brasil

AutorAnna Candida da Cunha Ferraz
CargoProfessora e Coordenadora do Mestrado em Direito do UNIFIEO. Mestre, Doutora e Livre-Docente pela FADUSP. Professora Associada da FADUSP. São Paulo, SP, Brasil. acandida@unifieo.br
Páginas51-74

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Introdução

Este texto se propõe a examinar o princípio e o direito fundamental do acesso à justiça e sua projeção no controle jurisdicional de constitucionalidade, em suas duas modalidades: no controle difuso e concreto e no controle abstrato e concentrado.

I Aspectos constitucionais do princípio do acesso à justiça
1 Acesso à justiça, direito fundamental e Estado Democrático de Direito

É princípio estruturante do Estado Democrático de Direito o respeito e a garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais salienta, com razão, Canotilho1. Diz mais o autor:

"Terceira dimensão do Estado de direito", "pilar fundamental do Estado de direito", "coroamento do Estado de direito", são algumas das expressões utilizadas para salientar a importância, no Estado de direito, da existência de uma protecção jurídica individual sem lacunas (cfr. Art. 20.º/1). Todavia, esta garantia da via judiciária já foi considerada como um "direito fundamental formal" (de formelles Hauptgrundrecht fala Klein), pois a protecção dos direitos através do direito exige uma prévia e inequívoca consagração desses direitos (cfr. DI.389-B/87, de 29/12, sobre o regime legal de acesso ao direito e aos tribunais).

Também Jorge Miranda2 mostra a indissociável ligação entre o acesso à justiça e o Estado de Direito, ao dimensionar que o "eficaz funcionamento e o constante aperfeiçoamento da tutela jurisdicional dos direitos das pessoas são sinais de civilização jurídica" e que por isso o Estado de Direito acrescenta algo mais para a sua plena percepção:

... A possibilidade de os cidadãos se dirigirem ao tribunal para a declaração e a efectivação dos seus direitos não só perante outros particulares mas também perante o Estado e quaisquer entidades públicas.

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Por definição, os direitos fundamentais têm de receber, em Estado de Direito, protecção jurisdicional. Só assim valerão inteiramente como direitos, ainda que em termos e graus diversos consoante sejam direitos, liberdades, garantias ou direitos económicos, sociais e culturais.

É, portanto, inegável que é no âmbito privilegiado do Estado Democrático de Direito que viceja o princípio, a garantia e o direito fundamental ao "acesso à justiça" outorgado a todos para a proteção jurisdicional de direitos.

Trata-se de princípio que concretiza, dentre outros, o princípio da igualdade e o da legalidade - princípios fundamentais do Estado de Direito.

2 O acesso à justiça na Constituição de 5 de outubro de 1988

Na Constituição brasileira de 1988, o princípio e o direito ao acesso à justiça vêm imbricados no inciso XXXV do artigo 5º (que versa sobre direitos fundamentais individuais e coletivos) e que dispõe: "XXXV - A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito".

Lembra Ferreira Filho3 que, "com muita justiça, disse Pontes de Miranda que a menção expressa deste princípio, feita pela primeira vez na Constituição de 18 de setembro de 1946 (art. 141, §4º), `foi a mais típica e a mais prestante criação de 1946´ [Comentários à Constituição de 1946, cit. t. 5, p. 106...].

Para além de outros aspectos constitucionais concernentes à moderna interpretação constitucional do inciso XXXV, tais como os valores axiológicos e substantivos que informam o princípio, a garantia do controle judiciário, a reserva jurisdicional na proteção de direitos fundamentais inerente ao princípio da separação de poderes, o princípio da igualdade e o da legalidade e suas garantias4, o amplo alcance do princípio que passa pela garantia do devido processo legal, pela celeridade do processo (art. 5º, LXXVIII), por uma organização judiciária apropriada, por um aparelhamento judicial mais aproximado e acessível aos seus destinatários (art. 93, XII e XII; art. 107, §2º e 3ª; art. 125, §6º e 7º etc.), convém registrar que Antônio Cláudio da Costa Machado5, na linha da doutrina dominante, retira deste mandamento constitucional o princípio singular do chamado acesso à justiça ao enfatizar:

Dependendo do prisma pelo qual se enxerga a norma constitucional sob análise, é possível ao intérprete vislumbrar o que se tem chamado de princípio da inafastabilidade jurisdicional, como aquilo que se costuma denominar de princípio do acesso à justiça ou, simplesmente, direito constitucional de ação.

E anota ainda:

Já no que concerne ao princípio do acesso à justiça, é preciso dizer que se "a lei não excluirá [...]" isso significa dizer que a todos será sempre franqueado o acesso à jurisdição, mediante o processo, por meio de ação, quando tenha havido lesão a direito (tutela processual cognitiva e satisfativa) ou simples ameaça (eis a recente alusão textual à tutela preventiva e cautelar). Saliente-se nesse diapasão que o acesso à justiça aqui assegurado se manifesta pelo que pode ser chamado de direito de ação em sentido constitucional cujas características básicas são a não-subordinação a condições (basta ser pessoa ou ente processualmente personalizado para ter tal direito) e o abstratíssimo conteúdo da provi-

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dência a que se faz jus (um provimento jurisdicional de qualquer tipo - de mérito ou não de mérito). Esse direito constitucional de ação não se confunde, portanto, com o processual de ação que é apenas o "direito à sentença de mérito" (Liebman) e que se subordina às três condições da ação (legitimação para a causa, interesse processual e possibilidade jurídica do pedido previstos e regulamentados basicamente pelo CPC)....

Tem, assim, assento constitucional o princípio do igual e amplo acesso à justiça para a proteção de direitos, princípio este que, no sistema constitucional brasileiro, está sob o manto protetor da cláusula pétrea contida no artigo 60, §4º, IV da Constituição Federal.

3 O conteúdo e o alcance do direito fundamental ao acesso à justiça

O princípio ou o direito ao acesso à justiça, expressão cunhada por Mauro Cappelletti, mereceu, no Brasil, uma "aceitação não vista em outras partes do mundo" acentua Carreira Alvim6.

É de Cappelletti a feliz e elucidativa afirmação: "O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental - o mais básico dos direitos humanos - de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos".

Dentre os enfoques que o princípio do acesso à justiça permite7 e acima referidos, utilizaremos, nestas breves considerações, para o que interessa ao tema em exame, o seu conteúdo mais tradicional, relativo ao igual e amplo acesso de todas as pessoas na busca de proteção jurisdicional de seus direitos, vale dizer, o princípio da ampla acessibilidade ao Poder Judiciário.

Assim, dentro desta perspectiva e fundado no mandamento constitucional do inciso XXXV do artigo da Constituição brasileira, é possível identificar algumas notas características do "acesso à justiça" e cuja pontualização interessa fixar para melhor percepção dos aspectos que o tema em exame sugere:

-O acesso à justiça constitui um direitogarantia fundamental, consagrado no locus constitucional dos direitos e garantias individuais e coletivas. Isto significa dizer que informa a aplicação e a efetivação de todo e qualquer direito fundamental consagrado no Título II da Constituição, sob a rubrica "Dos Direitos e Garantias Fundamentais" e bem assim, por interpretação sistemática, todo e qualquer direito consagrado ao longo do texto constitucional vigente alcançando, também, direitos, ainda que não positivados na Constituição.

-Como direito e garantia fundamental, o acesso à justiça está sob a proteção de uma cláusula pétrea, intocável, na forma do que dispõe o artigo 60, §4º, IV da Constituição de 1988.

-Trata-se de direito abrigado em norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, em que pese, sob este aspecto, depender, para ter efetividade, da organização não somente do Poder Judiciário, mas de toda a organização judiciária e processual em geral, determinada pela Constituição e complementada pela legislação infraconstitucional, particularmente no que respeita à disciplina do direito de

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ação e do processo, e que se destinam à efetivação da proteção jurisdicional acenada pela Constituição.

-A legislação infraconstitucional não poderá, em qualquer hipótese, restringir ou limitar o acesso à justiça constitucionalmente assegurado, o que significa dizer que nenhuma lesão a direito...

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