Agrarian question: procedural legal barriers and social inequality/Questao agraria: entraves juridico processuais recorrentes e desigualdade social.

Autorde Paula, Roberto

Introducao

A estrutura agraria brasileira se caracteriza pela concentracao da propriedade da terra desde sua origem. Na atualidade verifica-se a persistencia de um padrao de expansao das grandes propriedades e o "engolimento" da pequena propriedade rural, com a consequente desigualdade no processo de apropriacao da terra e o aumento do abismo entre classes sociais.

Desta forma, uma das dimensoes sociologicas da desigualdade social no Brasil refere-se a apropriacao da terra e a formacao extensiva de uma estrutura latifundiaria ancorada em alguns mitos pseudoconcretos, tais como da produtividade, do desenvolvimento economico, do direito ilimitado de propriedade, dentre outros. Assim, no afa protetivo da propriedade da terra, erigem-se cercas de farpas concretas e juridicas. Nesse passo, o Direito torna-se legitimador de um processo de apropriacao privada da terra e instrumento de punicao seletiva daqueles que atentam ousar contra a regulacao e legislacao imposta. Portanto, estabelece um cercamento e preve como tipologia delitiva as condutas que questionam tal regramento (1).

A Questao Agraria, tomada de uma forma reducionista, frequentemente e apresentada desde um arcabouco ideologicamente construido, abordada de maneira superficial desde os noticiarios filtrados por uma clivagem de classe dos meios de comunicacao de massa ate as mesas de discussao das universidades, com pretensa cientificidade. Os temas ora abordados despertam paixoes discursivas acerca das questoes agrarias, tais como, desigualdade social, direito de propriedade ou direito a propriedade, a dramatica realidade de conflito coletivo pela posse da terra, entre outras.

Mais. Trata-se de uma questao estrutural que nao so revela uma estratificacao social conjuntural, senao que implica a condenacao de muitos brasileiros a condicao de vulnerabilidade e risco. Portanto, enuncia-se a tarefa da identificacao dos excluidos da terra como categoria social relevante, nascida de um processo de apropriacao privada da propriedade da terra, e, ainda, a tarefa de desvelar e aprofundar o mecanismo juridico que e um dos pontos nevralgicos do processo de estruturacao das desigualdades sociais, exercendo uma funcao simbolica e coercitiva fundamental.

O Direito, considerado no conjunto dos mecanismos ou instrumentos que determinam o aprofundamento do processo de desigualdade social, e, tomado na frieza metodica da percepcao empirica ou positivista, pode revelar um conjunto sistematico de indicadores de risco e hipossuficiencia da classe social campesina por meio de dados cotidianamente coletados da praxis judicante no pais.

Nao obstante, impoe-se a tarefa de sondar elementos internos ao Direito que possuem o condao de determinar a realidade concreta ou externa, quais sejam os mecanismos "intrajuridicos" (institutos juridicos) que, uma vez invocados, via de regra, cumprem o papel de legitimacao de outorga da protecao possessoria ou proprietaria para determinada classe social em detrimento de outra, cuja consequencia e o agravamento da desigualdade social e o acirramento que pode levar a um conflito agrario.

O modelo metodologico escolhido e a hermeneutica historico-dialetica. A hermeneutica permite contextualizar a problematica, pois abre o sentido interpretativo, afastando concepcoes simplistas e superficiais. O metodo historico-dialetico, numa perspectiva sociologica e filosofica, e inconteste, pois revela que a tematica apreciada se da no chao da historia brasileira e aclara as contradicoes entre classes e atores sociais envolvidos no contexto. Com esses instrumentais desvela-se que em relacao ao jus agrarismo a producao legislativa e a praxis do Judiciario optou por nao fixar marcos equidistantes no tratamento das demandas, mutilando a ideia de justica.

Desde uma perspectiva dialetica verifica-se que o processo historico-social de apropriacao da propriedade da terra no Brasil desembocou na formacao do latifundio, que e uma ferida aberta no tecido social. Neste sentido, nao se descuida da afirmacao de que ha uma intensa producao legislativa agraria no contexto da formacao ou conformacao social, isto e, da atuacao e aplicacao do Direito.

Esbocadas as premissas de contextualizacao, objetivamente enuncia-se que o presente artigo se propoe a (1) analisar o processo de apropriacao privada da terra no Brasil desde a perspectiva de concentracao fundiaria e alijamento dos trabalhadores de acesso a esse instrumento de producao, e (2) perscrutar em que medida e por meio de quais mecanismos o Direito pode ser manejado como garantidor e legitimador da desigualdade verificado historicamente na Questao Agraria Brasileira.

  1. A apropriacao da terra no brasil: implicacoes historico-juridicas de um conflito atual

    A historia do Brasil e marcada pela apropriacao indevida, pelo saqueamento das riquezas originarias e pela concentracao da propriedade, inclusive de terras publicas. O presente estudo parte da premissa que nossas mazelas e desigualdades sociais tem como matriz e fonte a distribuicao de terras e a formacao do latifundio. A "mentalidade proprietaria" (2) (GROSSI, 2006, p. 31) nascente no pais se da com uma forma latifundista, que forja uma visao de mundo individualista em detrimento da coletividade.

    Tal constatacao sociologica emerge dos estudos realizados por Florestan Fernandes, Caio Prado Junior, Celso Furtado, dentre outros. Verbi gratia, traz-se conclusao exarada por Celso Furtado: "a concentracao da propriedade da terra esta profundamente enraizada na formacao historica do pais" (FURTADO, 1989, p. 59). Vale asseverar que a questao agraria desde sua genese apresenta distorcoes sociais e juridicas que refletem e influenciam o Direito na seara agraria da atualidade. O que ocorreu no Brasil foi a formacao de extensos latifundios, estabelecendo a segregacao entre possuidores e marginalizados do acesso a terra, tendo como resultado a expropriacao dos instrumentos de producao dos trabalhadores (3).

    A formacao da estrutura de poder que se desenvolve no Brasil e marcada pelo uso da violencia perpetrada pela classe hegemonica, em posicao dialetica, deve-se grifar com toda tinta possivel, a resistencia correspondente do povo brasileiro, como Darcy Ribeiro de forma veemente e desmascara o conflito invisibilizado: "ao contrario do que alega a historiografia oficial, nunca faltou aqui, ate excedeu, o apelo a violencia pela classe dominante como arma fundamental da construcao da historia" (RIBEIRO, 1996, p. 26).

    A construcao da historiografia oficial revela a cristalizacao de uma visao dos vencedores, originariamente "herdadas, incorporadas e assimiladas a partir do processo de colonizacao lusitana" (WOLKMER, 2007, p. 44). No Brasil Colonia, a visao do europeu colonizador e tida como civilizado e dos indigenas como selvagens. No contexto da discussao academica, o que por si so demonstra uma desigualdade da correlacao de forcas, em termos do direito patrio, sobressai a posicao das correntes de pensamento que nao admitem a existencia de um Direito das nacoes indigenas no periodo anterior a colonizacao. Desta forma, constroi-se, ambivalentemente, a deslegitimacao de um Direito indigena e afirma-se a atuacao do colonizador, como portador de um ethos civilizatorio europeizante superior.

    Em posicao diametralmente oposta a estreita postura legalista acerca do Direito, bem como dos historicos oficiais, ha que se afirmar que a forma de organizacao da vida social indigena nas suas especificidades culturais de valoracao e procedimento de resolucao de conflitos constituem de per si em exercicio de um Direito. Carlos Frederico Mares, a este respeito, escreve que "se trata de um direito originario quer dizer que o direito dos indios e anterior ao proprio direito, a propria lei" (MARES, 2006, p. 122).

    Conclui-se, assim, que, nao obstante a visao imposta pela colonizacao, as nacoes indigenas sao portadoras de um modo proprio de resolver os conflitos sociais e os temas atinentes a vida social, no que tange a propriedade, familia, matrimonio, sucessao, delito. Descortina-se, entao, a existencia de um Direito, originalmente patrio, fundado nos mores (costumes) mais profundos e intimos das nacoes indigenas autoctones.

    Nesse passo, necessario reportar a autores, tais como Jacques Tavora Alfonsin, que, na contramao do monismo legalista juridico, defendem a tese da existencia de um "Direito insurgente, eficaz, nao-estatal" (ALFONSIN, 1989, p. 20) verificado tanto nas remotas comunidades indigenas como na experiencia dos negros do Brasil colonial. Portanto, a partir da propagacao de autenticas acoes legais que regulavam as experiencias das nacoes indigenas, excetuando a imposicao das reducoes jesuiticas, bem como as que regulavam as organizacoes quilombolas, pode-se inferir um pluralismo juridico comunitario ainda que se trate de uma experiencia local e como forte conteudo cultural.

    A questao fundiaria brasileira, bem como os canones oficiais, ignoram por completo a titularidade da propriedade indigena originaria. Desta forma, remonta-se a apropriacao da terra no Brasil ao regime de sesmaria, cujas raizes deitam-se ao reinado de D. Fernando I, que, em 1375, criou a Lei de Sesmarias em Portugal, com objetivo de estender a ocupacao de terras abandonadas numa epoca de profunda crise de abastecimento alimentar na Europa, a qual experimentava um paulatino processo de decadencia do modo de producao feudal, que apresentava esgotamento. A determinacao buscava ocupar os lavradios abandonados, impunha a obrigacao de lavradio aos donos das terras ociosas ou a transferencia a terceiros capazes de torna-las produtivas.

    No Brasil as Sesmarias foram utilizadas como instrumento de apropriacao e como instrumento juridico de distribuicao da propriedade com forca de lei. Assim, cumpre uma estrategia do Estado portugues, qual seja a de estender sua pratica colonizadora e garantir a soberania geopolitica sobre o vasto territorio brasileiro. Desta forma, demarca uma presenca oponente as investidas de outros povos...

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