Agora por nós mesmos': mulheres, mães e 'violências

AutorRafael Reis da Luz - Hebe Signorini Gonçalves - Paulo de Tássio Borges da Silva
CargoMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil - Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, Pedagogo na Prefeitura Municipal da Serra, Espírito Santo, Serra, ES, Brasil
Páginas118-137
1807-1384.2014v11n2p118
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não
Adaptada.
“AGORA POR NÓS MESMOS”: MULHERES, MÃES E “VIOLÊNCIAS”
Rafael Reis da Luz
1
Hebe Signorini Gonçalves2
Paulo de Tássio Borges da Silva3
Resumo:
O artigo discute o Projeto Cine Pipoca, dispositivo do Centro de Referência de
Mulheres da Maré Carminha Rosa (CRMM-CR), da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). A atividade consiste na exibição de filmes usados como
disparadores de discussões temáticas e, na edição em análise, problematizamos a
discussão de “Cinco vezes favela: agora por nós mesmos”. Para as mulheres
presentes no grupo de discussão, todas mães, o ato de bater aparece como legítimo
e necessário para a criação e educação dos filhos, especialmente quando visa à
proteção da violência urbana. Sem ignorar a questão moral posta aí, o artigo propõe
uma reflexão acerca da conjugação entre violência doméstica, violência urbana e
papéis sociais de gênero, valendo-se de referenciais psicológicos, antropológicos e
sociológicos. O artigo indica que a moderna unificação de sentidos da violência
recusa formas de maternagem culturalmente edificadas, negando-lhes legitimidade
cultural; a análise contrasta ainda processos de coletivização culturais e os
pretendidos no próprio dispositivo grupal.
Palavras-chave: Mulheres. Gênero. Violência Familiar. Favela.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Em 1962, cinco renomados diretores do cinema brasileiro reuniram curta-
metragens em que retratavam sua visão das favelas cariocas: daí o nome da
produção, Cinco vezes Favela. Em 2010, um daqueles diretores retoma e renova o
projeto original convidando cinco moradores a fazerem-se cineastas e apresentarem
1 Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-
mail: reisdaluz@hotmail.com
2 Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora do
Instituto de Psicologia e do Curso de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, membro associado do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre a Infância e
Adolescência Contemporâneas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: hebe@globo.com
3 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, Pedagogo na Prefeitura Municipal da
Serra, Espírito Santo, Serra, ES, Brasil. E-mail: paulodetassiosilva@yahoo.com.br
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R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.11, n.2, p.118-137, Jul-Dez. 2014
o mesmo mundo a partir de seu próprio olhar. Produzido por Cacá Diegues, o longa-
metragem apresenta cinco histórias independentes, baseadas em fatos reais, cada
qual mostrando a vida de diferentes personagens em diferentes situações. A obra
que resulta daí Cinco vezes favela, agora por nós mesmos conduz o espectador
a uma perspectiva êmica, em que a vida, os valores e os dramas subjetivos falam de
si mesmos, na primeira pessoa. O artigo aqui apresentado vale-se desse movimento
para buscar a impressão que a obra produz nos moradores de favelas, cujas vidas
são ali representadas. Assim, o artigo traz uma reflexão produzida a partir do debate
conduzido no Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa (CRMM-
CR), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Esse debate em particular enfocou práticas punitivas corporais das quais as
mulheres frequentemente se valem, na criação e educação de seus filhos. Cientes
de que essas práticas não apenas são recursos naturalizados como se conectam ao
lugar da mulher na estrutura familiar, vinculados, portanto, à problemática de gênero,
queríamos problematizar não apenas a tolerância à violência nas relações
familiares, mas também a funcionalidade desta, em especial no contexto de famílias
de comunidades atravessadas pela violência urbana, e o lugar da maternagem
4
nesse processo. Além disso, o texto quer se constituir num convite à reflexão sobre
o trabalho com grupos enquanto estratégia de desindividualização e transformação.
No debate relatado ao longo do artigo, as mulheres argumentam que seus
filhos precisam ser educados de modo a estarem sempre distantes e conscientes da
sedução do crime, sendo necessário por isso mantê-los sob constante vigilância. O
castigo corporal, para essas mulheres, constitui recurso legítimo e necessário
sempre que a vigilância deixa entrever a necessidade de intervir, o que revela uma
questão cultural importante que confronta diretamente as normativas e convenções
a respeito da violência contra crianças e adolescentes, filiadas a uma concepção de
proteção da infância que nem sempre dialoga com significações culturais e
comunitárias que se colam aos assim chamados eventos violentos.
4 Utilizamos o termo maternagem no presente estudo para referirmo-nos às práticas de maternidade,
ao exercício do cuidado.

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