Affects and politics: Spinoza's conception/ A politica e os afetos: a concepcao espinosana.

AutorBraga, Luiz Carlos Montans
  1. Mapa

    O artigo pretende navegar por alguns conceitos espinosanos presentes na Etica, no Tratado Teologico-politico, bem como no Tratado Politico, alinhavando argumentos e definicoes presentes nas tres obras. Tais conceitos se referem ao problema da fundacao e manutencao do campo politico. A solucao espinosana para esta questao e o que o artigo procura apresentar, em forma de ensaio. O metodo e o da analise minuciosa das fontes primarias, a saber, os tres livros citados (em varias edicoes, tendo por base a de C. Gebhardt (1972)), confrontando os conceitos pertinentes a questao com o objetivo de apresentar um ensaio do que seja a solucao espinosana ao problema proposto. Como textos de apoio as fontes primarias, comentadores da obra de Espinosa serao utilizados.

    Para tratar do problema, os conceitos de homem, mente, imitacao afetiva, socialidade, multidao, contrato, poder soberano, direito como potencia e imperium (que em traducao precaria poderia ser compreendido, com muitas ressalvas, por Estado) serao alinhavados a partir das obras de Espinosa acima citadas. De maneira mais desdobrada, procurar-se-a, primeiramente, explicitar a relacao entre os conceitos de imitacao afetiva e a formacao de blocos de mentes. Tais blocos de mentes, que sao blocos de homens e seus desejos em comum, levam a que os homens ajam neste ou naquele sentido. Desse fundamento afetivo comum, possivel em razao da imitacao do desejo do outro, forja-se a socialidade. Estes conceitos possibilitarao que se explique, num segundo momento, por meio das tres obras de Espinosa acima citadas, nao apenas a questao da socialidade, seu mecanismo, mas tambem como dos afetos e da imitacao afetiva decorre a politica.

    Nesse ponto, o da construcao do campo politico em Espinosa, o intento e o de percorrer as teses espinosanas para mostrar a elaboracao de um contratualismo que se funda na imitacao dos afetos e nos blocos de mentes dai advindos. Ou seja, o objetivo e, no interior do problema maior do contratualismo, proprio do periodo em que Espinosa escreveu, explicar os passos da concepcao espinosana para a formacao do campo politico. Pode-se dizer, neste plano introdutorio, que o que ha no autor e um "contratualismo" assim entre aspas--que o faz original no dezessete e em face da tradicao anterior.

    O conceito de multidao e o de imperium serao tambem articulados para explicitar o funcionamento do campo politico segundo o autor. Trata-se de abordagem que diverge da tradicao. Em razao da necessidade de amplo espaco para detalhar os conceitos espinosanos, nao sera possivel, neste artigo, contrapor as teses de Espinosa as de outros autores. Apenas se esbocara, em um dado movimento do texto, uma comparacao com Hobbes, com o intuito de indicar, por contraste, as inovacoes espinosanas na esfera politica.

    Fica para outra ocasiao, pelo motivo acima, uma analise minuciosa da potencia das teses espinosanas para o direito atual e para a reflexao acerca da politica nos tempos contemporaneos. Tais ligacoes entre Espinosa e autores contemporaneos, bem como com as teses contemporaneas, demandariam articulacoes que ainda estao em fase de elaboracao e de pesquisa.

    O objetivo principal do artigo e, pois, o de mostrar como os conceitos espinosanos de homem, mente, afetos, imitacao dos afetos, direito como potencia, multidao, imperium, poder soberano e contrato se articulam em sua obra. O problema da fundacao e manutencao do campo politico e resolvido, a maneira espinosana, pela articulacao dos referidos conceitos. Eis uma hipotese que o artigo apresenta e procura defender em forma de ensaio.

    Atravessa a argumentacao do artigo a hipotese de que as tres obras citadas se somam, nao havendo qualquer contradicao entre elas. O que existe e complementacao de argumentos. As diferencas que se apresentam ocorrem em funcao dos temas divergentes e peculiares a cada uma das obras--as acoes humanas para a Etica, a relacao entre teologia, filosofia e politica no Tratado Teologico-politico, e o tema da politica (formas de Estado, criacao e manutencao da cidade, poder soberano, etc.) no Tratado Politico.

    Por fim, no item 5, o artigo procura tratar de questao que decorre das acima postas, classica na filosofia politica, a saber, a dos regimes politicos (ou, pela pena de Espinosa, a dos generos de estado civil) e de como a solucao espinosana passa pelos conceitos de multidao, imperium, direito como potencia e afetos.

    Passa-se, a seguir, aos caminhos do mapa acima apresentado.

  2. Formar blocos de mentes

    O conceito de imitacao afetiva se funda na Proposicao 27 da Etica III (E III P 27 pp. 195-197) (1). Este conceito e importante para a filosofia politica espinosana, pois ha relacao entre mimetismo afetivo e os conceitos de multidao e cidade esta uma hipotese que sera desdobrada a seguir.

    A imitacao afetiva gera 'blocos de mentes' orientadas num mesmo sentido, seja por meio da comiseracao, afeto derivado da tristeza, seja por meio da emulacao, afeto derivado da alegria, bem como por meio das varias derivacoes afetivas dai decorrentes--benevolencia, apreco ou reconhecimento, indignacao, etc. (E III P 22 Esc p. 191 e E III P 27 Esc p. 197). A imitacao do desejo do outro, que por sua vez e desejo de algo, gera comportamentos sociais, coletivos, os quais nao sao deliberacoes de vontades livres, mas decorrencias do proprio funcionamento do maquinario afetivo. Blocos de mentes orientadas para ca ou para la sao socialidades de maior ou menor potencia, e e este mecanismo, de ponta a ponta natural e de ponta a ponta afetivo, que sera o fundamento e o cimento da socialidade e, por conseguinte, da cidade.

    O conceito de mimese afetiva, acima esbocado, possibilitara trazer a tona uma tese importante. Na Etica se apresenta, ainda que de modo incipiente e laconico, uma elaboracao explicita acerca da politica (E IV P 37 Esc 2 pp. 309-311). Tal elaboracao esta em acordo com teses do Teologico-politico, sobretudo no que se refere ao conceito de um "contratualismo" que se reelabora cotidianamente, numa tensao entre poder soberano, ao qual se cede potencia, e os membros da cidade, que tem as potencias individuais garantidas pelo direito civil. Este, por seu turno, e posto pela potencia do soberano e fundado na lei universal segundo a qual entre dois bens se escolhe o maior e entre dois males o menor. Esta lei da natureza humana se apresenta, no funcionamento da cidade, por meio do par afetivo medo-esperanca, afetos estes que sao fundadores, bem como explicativos da manutencao constante do poder soberano. Com efeito, a esperanca de um bem maior faz que os homens cedam parte de sua potencia ao poder soberano, o qual edita leis que garantem o exercicio das potencias individuais. Porem, tal lei universal da natureza humana, segundo o Teologico-politico, quando apresentada na Etica IV, no momento da introducao da politica no texto espinosano, nao explicita ainda um conceito que tera fundamental importancia na politica e que aparecera abundantemente (2) no Tratado politico (doravante Politico), a saber, o conceito de multidao.

    Isso nao implica que haja contradicao entre os tres textos espinosanos que explicitamente tratam da politica (TTP, Etica, TP), ou mesmo que haja uma falta conceitual na Etica por nao conter o conceito de multidao (3), ou por nao operar com tal conceito. A hipotese deste artigo e a de que os objetos diversos das obras explicam a ausencia ou presenca do conceito, sua maior ou menor importancia na economia desta ou daquela obra especifica. De fato, o objeto explicito, o tema por excelencia, da Etica, e o campo das acoes humanas, que Espinosa explicitara em cinco partes, mostrando desde o fundamento do real, a tese da substancia unica e do imanentismo, na parte I, ate a nocao de beatitude, passivel de ser alcancada pelo sabio, na parte V. Para isso, passa-se pela nocao de afeto e de sua natureza, na parte III, bem como se envereda pela nocao de servidao humana e forca dos afetos, na parte IV, sem deixar de passar pelo tema da natureza e origem da mente, na parte II. Na parte IV, a politica irrompe, e os conceitos de merito e demerito, bem como o de cidade (civitas) e as nocoes de justica ai implicadas, se apresentam como o momento laconico de teses politicas no texto da Etica. E nada ha a estranhar nesse laconismo. Afinal, o tema e a etica, nao a politica, ainda que os fundamentos afetivos da politica, a antropologia espinosana, seja longamente analisada na Etica III, e o texto desta seja recuperado no Politico, ate mesmo explicitamente. O que importa, entretanto, para este artigo, e a ideia de que o desdobramento completo do conceito de multidao--fundamental para o problema da fundacao e manutencao do campo politico na acepcao espinosana--podera ser melhor compreendido a luz da Etica e de seu maquinario conceitual referente aos afetos. Do mesmo modo, o momento da Etica em que Espinosa fala da constituicao do campo politico (E IV P 37 Esc 2 pp. 309-311), bem como as passagens do Teologico-politico em que fala da lei universal inscrita firmemente na natureza humana (TTP XVI p. 237) poderao ser melhor compreendidos a luz do conceito de multidao.

    Tendo como pano de fundo esse quadro geral, passa-se a mostrar como os conceitos de mimese afetiva, proprios da Etica III, bem como o conceito de multidao, proprio sobretudo do Politico, sao conceitos que se articulam e possibilitam um melhor entendimento das teses politicas de Espinosa. O conceito de multidao dara o tom mais original do pensamento politico espinosano ao resolver, pelo vies dos afetos e de sua logica, a questao da fundacao e da manutencao do corpo politico, bem como a questao da importancia da politica como instancia garantidora da alegria como afeto predominante na civitas. De fato, quanto mais alegria no corpo politico, em forma de maior potencia dos membros que o constituem, maior sera, por assim dizer, a eficacia da cidade no que se refere a sua razao de existencia. O limite inverso disso, dira Espinosa, nao se podera chamar...

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