ADR 3.0 @ Resolução online de conflitos de consumo em Portugal

AutorCátia Marques Cebola
CargoDoutora em Direito, Docente na Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Leiria e Diretora do Centro de Investigação em Estudos Jurídicos (CIEJ) do Instituto Politécnico de Leiria, Portugal
Páginas65-92

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Excertos

"Assumindo a configuração de um website interativo com um único ponto de entrada, pretende-se que consumidores e comerciantes da UE possam resolver eletronicamente os seus litígios através de procedimentos extrajudiciais disponibilizados nas diferentes entidades de RAL registadas nos vários estados-membros"

"A resolução de conflitos de consumo em Portugal, fora do cenário judicial, pode ainda ser promovida junto dos provedores do cliente, dos CIACS, das entidades reguladoras de determinados setores ou dos julgados de paz"

"Cumpre referir que, ao tempo em que escrevemos estas linhas, se discute em Portugal a aprovação de um regulamento uniforme para todos os centros de arbitragem de conflitos de consumo de competência genérica (ou não setoriais)"

"A preocupação pela garantia da qualidade dos serviços prestados ao nível das instâncias extrajudiciais de resolução de conflitos de consumo não é nova na União Europeia"

"O cumprimento do princípio da transparência concretiza-se na divulgação de um conjunto de informações indicadas no artigo 9º da Lei 144/2015, por cada uma das entidades de RAL, designadamente quanto ao seu âmbito de atuação, regras procedimentais ou colaboradores que ali prestem serviços"

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1. Considerações iniciais

Os meios de resolução extrajudicial de conflitos (abreviadamente designados de ADR, em decorrência da expressão inglesa Alternative Dispute Resolution1) ganharam paulatinamente terreno no espaço europeu no âmbito do consumo2, assistindo-se hoje na união europeia a uma verdadeira revolução tecnológica neste âmbito, com a implementação da plataforma eletrónica rll3para a resolução em linha deste tipo de litigiosidade.

Na verdade, a promoção dos meios extrajudiciais para resolução de conflitos de consumo constitui uma aposta clara da ue desde os anos 70 do século passado, com o apoio prestado à implementação da arbitragem (como se verificou em portugal) ou à instituição da figura do "ombudsman" (que granjeia enorme sucesso na esfera de setores como a banca ou os seguros no reino unido ou na irlanda)4.

Procurou-se, desta forma, implementar mecanismos que, assumindo cariz extrajudicial, se dotassem de técnicos e peritos especializados em direito do consumo, capazes de prestar a informação necessária aos consumidores e decidir conflitos nesta sede, atendendo às especificidades que os caracterizam. Pretendeu-se, em suma, assegurar um elevado nível de defesa dos consumidores5, promovendo-se a 1ª geração de ADR na ue.

No início do século XXI assiste-se à criação de redes para a resolução de conflitos de consumo transfronteiriços, como a rede europeia extrajudicial (EEJ-net)6, substituída em 2005 pela atual ECCNET7, ou a Fin-net no plano financeiro8. O objetivo das preditas redes assenta na gestão das reclamações apresentadas por consumidores em cada estado através dos seus centros de coordenação ("clearing house")9, sendo estes responsáveis pela recepção e envio das queixas ao ponto de contato do estado-membro no qual o agente económico tenha o seu estabelecimento, tentando-se desta forma que as partes encontrem a solução para o conflito. O consumidor poderá, assim, a partir do seu próprio país de residência e na sua língua materna, tentar alcançar uma solução para o seu litígio com um agente económico sediado em qualquer estado-membro, obtendo ainda a informação relativa aos seus direitos. A cooperação entre os vários estados-membros visando a

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promoção da resolução extrajudicial de conflitos transfronteiriços em rede deu dimensão ao nível 2.0 dos ADR na ue.

Todavia, a ECC-net e a Fin-net promovem apenas o canal de comunicação entre consumidores e agentes económicos no espaço europeu, mas não asseguram a resolução do conflito. Com efeito, se consumidor e agente económico não acordarem uma solução para o seu litígio, restará ao consumidor socorrer-se dos meios judiciais e extrajudiciais existentes. Haveria, assim, que evoluir para uma maior integração dos procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos de consumo ao nível da ue, o que veio a verificar-se com a Diretiva 2013/11/ue, do parlamento europeu e do Conselho10(a Diretiva ral, como é comumente designada) e o regulamento (ue) 524/2013, do parlamento europeu e do Conselho11(regulamento rll), ambos de 21 de maio de 2013. Este pacote normativo12visou incrementar a resolução de conflitos de consumo em linha nos estados-membros, dando resposta ao crescimento do comércio eletrónico no espaço comunitário e ao consequente aumento da litigiosidade que lhe é inerente13. Estão assim lançadas as bases do nível 3.0 dos ADR na ue, como melhor veremos no presente artigo.

2. A Plataforma de RLL na Ue - virtudes e fragilidades

A Plataforma de RLL14, de resolução de litígios em linha, instituída pelo regulamento rll, encontra-se em funcionamento desde fevereiro de 2016, sendo a sua manutenção e financiamento assegurados pela Comissão europeia15. Assumindo a configuração de um website interativo com um único ponto de entrada, pretende-se que consumidores e comerciantes da ue possam resolver eletronicamente os seus litígios através de procedimentos extrajudiciais disponibilizados nas diferentes entidades de ral registadas nos vários estadosmembros16. Consequentemente, cada estado-membro é responsável por elaborar uma lista de todas as entidades de ral que respeitem os requisitos de qualidade plasmados na Diretiva ral e que passam a constar na plataforma de rll17. As entidades de ral podem conduzir todo o procedimento de resolução online do conflito através da própria

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Plataforma de rll, ou utilizá-la apenas como veículo de recepção e direcionamento da reclamação para a entidade escolhida pelas partes, promovendo-se a resolução do conflito no seio da entidade de ral escolhida e através de meios eletrónicos próprios18.

Os estados-membros são ainda responsáveis pela designação de um ponto de contato de rll, cuja principal função reside na prestação de assistência na resolução de litígios no âmbito da plataforma, designadamente ajudando na apresentação da queixa ou prestando às partes e às entidades de ral informações gerais sobre direitos dos consumidores e sobre o funcionamento da plataforma de rll. Cada ponto de contato deve dispor de dois conselheiros de rll para o exercício das funções que lhe competem19. Em portugal foi designado como ponto de contacto rll o Centro europeu do Consumidor na Direção Geral do Consumidor20. Cabe à Comissão criar uma rede de pontos de contato de rll por forma a permitir a cooperação entre os mesmos e contribuir para que as funções que lhe incumbem sejam levadas a cabo21.

Nos termos do procedimento plasmado no regulamento rll22, consumidores e comerciantes poderão apresentar as suas reclamações de forma gratuita e na sua língua materna, através de um formulário eletrónico, disponível na predita plataforma de rll23. Posteriormente, esta plataforma verifica se a queixa poderá ser tratada e as partes deverão obter acordo sobre a entidade de ral à qual pretendem submeter a resolução do litígio, prestando-se todas as informações sobre a mesma. Se houver acordo entre consumidor e agente económico sobre a entidade de ral, esta deverá concluir o procedimento no prazo de 90 dias a contar da data em que tiver recebido o processo completo de queixa24. Se no prazo de 30 dias após a apresentação do formulário de queixa as partes não lograrem obter acordo relativamente à entidade de ral competente ou, bem assim, se a entidade de ral escolhida de comum acordo por consumidor e agente económico recusar conhecer o litígio25, a queixa será abandonada e o seu autor é informado da possibilidade de contatar um conselheiro de resolução de litígios em linha a fim de obter informações gerais sobre outras vias de recurso26.

Neste particular aspecto reside uma das fragilidades da plataforma de rll. Na verdade, o regulamento rll não prevê um critério

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subsidiário para a situação em que consumidor e agente económico não obtenham acordo relativamente à entidade de ral competente. Assim, bastará que uma das partes recuse a entidade de ral escolhida pela outra, não se logrando consenso nesta questão, para que a queixa tenha de ser abandonada. No âmbito de conflitos transfronteiriços, pertencendo o consumidor e o agente económico a estados-membros distintos, auguramos que seja elevada a potencialidade de desacordo quanto à entidade de ral competente, uma vez que cada sujeito confiará ou tenderá a escolher entidades do seu próprio país. A relutância para permitir que seja uma entidade de ral estrangeira a resolver o conflito pode ser alta. Nesse contexto, e atendendo a que estamos no domínio de conflitos de consumo, poder-se-ia ter consagrado como critério subsidiário, em caso de desacordo entre as partes, a nomeação da entidade de ral que tenha sido escolhida pelo consumidor, à luz da regra prevista em matéria de contratos de consumo quanto à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, plasmada na seção 4 do regulamento (ue) 1215/2012 do parlamento europeu e do Conselho27, de 12 de dezembro.

Face à muito recente disponibilização da plataforma de rll, não é ainda possível analisar o panorama quer ao nível do seu funcionamento, quer ao nível do comportamento de consumidores e agentes económicos perante a possibilidade de resolução de conflitos de consumo online. De todo modo, a plataforma de rll europeia constitui, como...

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