A ADPF 347 e o 'Estado de Coisas Inconstitucional': ativismo dialógico e democratização do controle de constitucionalidade no Brasil

AutorKatya Kozicki - Bianca Maruszczak Schneider Van Der Broocke
CargoProfessora titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e professora associada da Universidade Federal do Paraná - Doutoranda em Direito Socioambiental e Sustentabilidade na PUC-PR
Páginas147-181
A ADPF 347 e o “Estado de Coisas
Inconstitucional”: ativismo dialógico
e democratização do controle de
constitucionalidade no Brasil
The ADPF 347 and the “Unconstitutional State of Aairs”:
dialogic activism and democratization of the
control of constitutionality in Brazil
Katya Kozicki *
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba-PR, Brasil
Bianca Maruszczak Schneider Van Der Broocke **
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba-PR, Brasil
1. Introdução
Recentemente restou declarado pelo Supremo Tribunal Federal o “Estado de
Coisas Inconstitucional” do sistema carcerário brasileiro, quando da análise
da medida cautelar suscitada na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n.° 347/2015. Referido instituto, originário da jurisprudência
da Corte Constitucional da Colômbia, tem sido empregado nesse país para
a solução de demandas que visam dar efetividade a direitos fundamentais
constitucionalmente previstos, por meio da atuação coordenada de diversos
atores políticos, a partir da adoção de “medidas estruturais”.
* Professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e professora associada da Universidade
Federal do Paraná. Doutora em Direito, Política e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina
(2000). Mestra em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993). Gra-
duada em Ciências Econômicas pela Faculdade Católica de Administração e Economia (1998). Graduada
em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1986).
** Doutoranda em Direito Socioambiental e Sustentabilidade na PUC-PR, bolsista CAPES/PROEX. Mestra
em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes (2007). Graduada em Direito pelo Centro Univer-
sitário de Curitiba (2003).
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O emprego desse novo tipo de mecanismo procedimental faz parte de
uma tendência observada tanto em países da América Latina, como em
outras nações em desenvolvimento, que tem como pano de fundo uma
intervenção judicial criativa em casos que se ocupam de violações gene-
ralizadas dos direitos econômicos, sociais e culturais, denominados de “li-
tígios estruturais”. Contudo, a origem desse modelo de ativismo judicial
remonta ao julgamento do emblemático caso Brown v. Board of Education
pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em que, diante do persistente
descumprimento da sentença que punha fim à segregação racial nas esco-
las públicas da região sul, foi proferida nova decisão (Brown II), contendo
ordens estruturais para a reforma em larga escala das instituições que se
encontravam em mau funcionamento, a partir do pressuposto de uma re-
lação de colaboração entre as esferas de poder envolvidas.
Na Colômbia, a sentencia T-025 de 2004, proferida a partir da declara-
ção do ECI dos deslocados internos em razão do conflito armado (despla-
zados), é tida como paradigmática em razão do sucesso na efetiva resolução
do litígio estrutural. Neste caso, a Corte Constitucional emitiu ordens fle-
xíveis, deixando para os entes representativos do Estado a formulação das
políticas públicas para amparo da população vulnerável, bem como reteve
a jurisdição e determinou a realização de Audiências Públicas periódicas,
com a participação dos atores governamentais, organismos da sociedade
civil e cidadãos interessados sobre o tema, para o monitoramento e delibe-
ração contínuos sobre as ações tomadas e o sucesso da sua implementação.
Ao que se vê, além da interação e cooperação institucional, a superação
do ECI pressupõe a participação popular e a deliberação democrática na
tomada de decisão, o que remonta às bases do “novo constitucionalismo
latino-americano” em que se insere a ordem constitucional colombiana.
Ademais, traz a lume o diálogo desse modelo com o do constitucionalismo
democrático proposto por Robert Post e Reva Siegel, que vislumbram no Po-
der Executivo, no Poder Legislativo e, principalmente, na sociedade, foros
igualmente autorizados e relevantes para a interpretação da Constituição,
a legitimar democraticamente a última palavra das Cortes Constitucionais.
Levando-se em conta as feições emprestadas ao procedimento do ECI
pela jurisprudência da Colômbia, incumbirá ao STF, na superação do qua-
dro de inconstitucionalidade em que se encontra há muito o sistema pe-
nitenciário brasileiro, não apenas atuar em cooperação com os demais po-
deres estatais, mas também com representantes do povo, na formulação e
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consequente fiscalização da efetivação de medidas estruturais condizentes
com a salvaguarda dos direitos fundamentais violados.
Diante desse quadro, a questão que se coloca no presente artigo é se
existem meios processuais adequados no sistema jurídico brasileiro para
a adoção de um modelo dialógico pelo Supremo Tribunal Federal, que
priorize a deliberação pública, na superação do “Estado de Coisas Incons-
titucional” arguido e reconhecido na ADPF 347, em prol de um constitu-
cionalismo democrático.
Tendo em vista que o instrumento da Audiência Pública, utilizado com
êxito no monitoramento do cumprimento das ordens contidas na sentencia
T-025/2004 na Colômbia, também tem previsão no sistema jurídico brasi-
leiro, pode-se dizer que o meio processual adequado e compatível com um
constitucionalismo democrático existe. No entanto, a partir da análise da
forma como as audiências públicas se desenvolvem no contexto do con-
trole judicial de constitucionalidade, verifica-se que não há espaço para o
diálogo e a deliberação.
A proposta deste trabalho é traçar o caminho para que se definam as
expectativas para o uso das audiências públicas pelo STF na superação do
ECI, mediante o emprego do método lógico dedutivo, visto que a pesquisa
teve por base a investigação dedutiva da doutrina e jurisprudência sobre
o tema, utilizando-se, principalmente, o material bibliográfico. Para tanto,
no primeiro tópico, procura-se contextualizar a judicialização da política
e o ativismo do Poder Judiciário na concretização dos direitos sociais na
América-Latina e no Brasil, reconhecendo a declaração do ECI como um
dos seus desdobramentos. A fim de definir os contornos desse novo me-
canismo procedimental, empreende-se o estudo das suas origens, sediadas
no conceito “litígio estrutural”.
No segundo tópico do artigo, passa-se à análise do emprego da declara-
ção do ECI pela Corte Constitucional da Colômbia, que tem papel de des-
taque no desenvolvimento de uma jurisprudência ativista na América Lati-
na, principalmente no que tange à concretização dos direitos sociais, sendo
um dos componentes para esse avanço em prol do desenvolvimento social
colombiano, a atuação desse tribunal em litígios estruturais. Nessa toada,
apresenta-se como razões para o seu sucesso na sentencia T-025/2004, a
promoção da prática dialógica entre os ramos do Poder, bem como o pro-
cesso de monitoramento contínuo do cumprimento da sentença com o
favorecimento do debate a uma ampla variedade de atores governamentais
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