Invalidação administrativa na Lei Federal n. 9.784/99

AutorProf. Vladimir da Rocha França
CargoMestre em Direito Público pela UFPE
Páginas1-32

Mestre em Direito Público pela UFPE Doutorando em Direito do Estado pela PUC/SP Professor de Direito Administrativo da Universidade Potiguar Advogado em Natal/RN.

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I Introdução

A quebra da legalidade pela pessoa estatal no exercício da função administrativa constitui um dos capítulos mais relevantes da doutrina do direito administrativo. Um dos preceitos jurídicos nucleares da atividade administrativa, o também denominado princípio da juridicidade enseja, para a autoridade administrativa, a potestade de expulsar do ordenamento jurídico o ato administrativo de ilegalidade comprovada.

O advento da Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999, trouxe para a doutrina novos elementos para o debate em torno desse problema. Ela positivou muitas posições teóricas e jurisprudenciais que procuravam diretamente na Constituição e nos princípios jurídicos, soluções para o momento, alcance e limites da invalidação do ato administrativo pela própria administração pública. A carência de uma legislação específica para os atos e processos administrativos obrigou a dogmática do direito administrativo, na sua atividade própria de descrever o Direito Positivo, ao salutar hábito de partir dos preceitos da Lei Fundamental. Sorte nossa, talvez.

Mas agora, preceitos expressamente positivados se apresentam para a doutrina, demandando novas reflexões. Page 2

Nosso objetivo aqui é, sob a perspectiva da dogmática jurídica, discutir o regime jurídico de invalidação dos atos administrativos federais, instituído pela Lei Federal n. 9.784/99. Não em sua integralidade, o que demandaria um trabalho cujos limites fogem ao de um modesto ensaio. Procuraremos tratar de pontos sensíveis da questão; em especial, da invalidação administrativa enquanto competência e como ato jurídico.

Desde logo, devemos advertir que as normas veiculadas por esse diploma legal somente incidem na administração pública federal1. Por força do princípio federativo, os Estados-membros e os Municípios podem editar legislação própria sobre a matéria. Assim fizeram os Estados de Sergipe e de São Paulo. Entendemos que os preceitos da Lei n. 9.784/99 podem ser aplicados por analogia na atividade administrativa dos entes federativos carentes de diplomas de tal natureza.

II Validade, legalidade e eficácia dos atos administrativos
II I. Conceito de ato administrativo

Os atos administrativos são normas jurídicas concretas, postas por declarações unilaterais atribuídas ao Estado, que viabilizam a realização do interesse público no caso específico. São normas que encontram o seu fundamento de juridicidade nas leis e, excepcionalmente, logo de imediato nas normas constitucionais. Também estão sujeitas ao controle de juridicidade que compete ao Poder Judiciário.

A norma jurídica é composta por uma proposição prescritiva estruturada de modo hipotético-condicional, onde a ocorrência de um evento - hipótese normativa ou antecedente normativo - deve implicar, por força de um laço de causalidade jurídica ou imputação2, um dado efeito na realidade demarcada pelo sistema do Direito Positivo3. Ela é construída a partir da conjugação dos enunciados do texto nos quais se institucionaliza a declaração jurídica que origina o comando4.

A expressão "ato administrativo" - tal como "ato jurídico" - padece de ambigüidade. Pode tanto designar a declaração ou enunciação jurídica que Page 3 põe a norma no sistema, bem como a norma posta5. Optamos por reservar-lhe a segunda acepção.

Como toda norma jurídica, os atos administrativos são veiculados por instrumentos introdutores estabelecidos pelo ordenamento jurídico6. O instrumento introdutor institucionaliza a enunciação jurídica, registrando os seus elementos espacial, temporal e pessoal7; bem como, traz indícios do procedimento empregado pelo emissor para expedi-lo. É indispensável para demarcar o fenômeno do ingresso do ato no sistema do Direito Positivo, ou seja, quando passa a ter a qualidade da pertinência; do mesmo modo, tem o importante papel de posicionar o ato dentro da hierarquia normativa.

Sobre a vontade, merece transcrição o seguinte ensinamento de Antônio Carlos Cintra do Amaral8:

"Importa ressaltar que a declaração não se confunde com a vontade. Esta, como fenômeno psíquico, existe, normalmente, nas declarações estatais que têm por sentido um ato administrativo. Mas duas observações podem ser feitas desde logo. A primeira é a de que a vontade se exaure no momento em que surge a declaração. Esgota-se com a declaração. Não sobrevive a esta. A segunda é a de que à declaração estatal pode ser ou não conferido pelo ordenamento jurídico um sentido objetivo normativo. Vale dizer: a declaração pode produzir ou não um ato administrativo".

Por conseguinte, a vontade esgota-se com a declaração, não pertencendo ao conteúdo do ato administrativo, mas sim à gênese desta norma9. O ato administrativo surge com a declaração, quando esta, devidamente institucionalizada no instrumento introdutor, é reconhecida pelo ordenamento jurídico como suficiente para produzir o comando. Isso afasta o silêncio da administração pública do conceito de ato administrativo.

Posto o ato administrativo e reconstituída a enunciação em seu veículo introdutor, é despiciendo a análise da intenção do agente, salvo quando o Page 4 ordenamento jurídico a exige10. Sem valoração, não existe ato administrativo qualquer; contudo, ocorrida a valoração, os elementos psicológicos devem ser desprezados (em regra). No Direito Positivo, o que foi objetivado em linguagem não se desconstitui com a simples mudança da intenção do agente emissor, permanecendo o ato no sistema enquanto outra norma não o retirar11.

Mediante os atos administrativos, há a constituição do fato jurídico administrativo pela declaração da ocorrência de um evento juridicamente relevante, seja porque este evento foi previamente tipificado em norma veiculada por lei, seja por ele ter sido qualificado pela autoridade administrativa em face do interesse público que deve curar. Aliás, isso é a razão pela qual o ato administrativo deve ser classificado como uma norma concreta12. Nesse comando, há a imputação, ao fato jurídico, do efeito de declarar, constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica administrativa.

Uma distinção importante é a que deve ser observada entre evento jurídico administrativo e fato jurídico administrativo13. O evento jurídico administrativo é o acontecimento da realidade - social ou natural - que foi previamente delimitado pela hipótese da norma jurídica ou valorado como relevante pela autoridade, diante do interesse público; já o fato jurídico administrativo, por sua vez, o enunciado produzido pela autoridade administrativa que torna essa ocorrência específica relevante para o Direito Positivo. Sem o relato competente do evento, articulado com os preceitos jurídicos que disciplinam as provas, as relações jurídicas que foram prescritas ficam impedidas de eclodir na realidade jurídica.

Observe-se ainda a admissibilidade de existir evento jurídico sem fato jurídico, bem como fato jurídico sem evento. Na perspectiva da contemporânea teoria da linguagem, não há verdade por correspondência, mas sim por convenção.

Os fatos jurídicos, portanto, consubstanciam-se em enunciados que se referem a eventos ocorridos no espaço e tempo sociais. São focos de imputação de relações jurídicas. Na posição de antecedente normativo, Page 5 integram a estrutura proposicional dos atos, podendo ser desconstituídos se o evento que enunciam tem sua inexistência juridicamente comprovada.

Quanto ao seu conseqüente normativo, no qual se prescreve uma relação jurídica administrativa, os atos administrativos são classificados como individuais ou gerais. Nos atos individuais, os destinatários da prescrição encontram-se especificados; enquanto que nos atos gerais, a prescrição é dirigida a um conjunto numericamente indeterminado de sujeitos.

Servem os atos administrativos para delimitar o campo de atuação da administração pública no caso específico, preparando a atividade material indispensável à satisfação do interesse público14. É vedado à administração pública imediatamente executar materialmente os comandos legais ou constitucionais sem a expedição do ato administrativo, salvo em situações especiais15. Nestas hipóteses, caberá à administração pública expedir um ato administrativo posterior para validar a atuação material.

Os interesse públicos compreendem a dimensão pública dos interesses individuais, constituída pelo Direito Positivo; interesses que os indivíduos mantêm enquanto membros da sociedade, compartilhando-os segundo grau de evolução histórica desse corpo social16. São fixados pelo Direito Positivo quando este tipifica...

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