A responsabilidade por comissão por omissão dos administradores e gestores empresariais

AutorPedro Correia Gonçalves
CargoJurista. Graduado em Direito pela Universidade Católica Portuguesa e Pós-Graduado em Direito Penal Económico, também pela mesma Universidade (2006/2007). Aprovado no Curso de Mestrado e de Doutoramento em Direito Penal é atualmente Doutorando em Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade Católica
Páginas150-173

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Introdução

Alfred Montapert, na sua obra “A Suprema Filosofia do Homem”, veio explicar que “oportunidade” é apenas outra palavra para designar “responsabilidade”. Nada de mais verdadeiro quando em causa está a responsabilidade dos administradores e dos gestores empresariais que, pela oportunidade de exercerem cargos de grande importância e elevado prestígio, assumem, também por isso, um amplo conjunto de deveres e de responsabilidades. Tema complexo que levanta uma série de problemas, entre os quais, averiguar até que ponto os velhos critérios de imputação da responsabilidade penal estão ou não aptos a responder à chamada “criminalidade de empresa”, não tem constituído objecto frequente de reflexão da doutrina. Por isso, Klaus Tiedemann afirma que quando o problema se centra no âmbito da empresa a discussão dá lugar, frequentemente, ao silêncio2.

Os problemas especiais que a responsabilidade penal dos órgãos de administração e de gestão, doravante órgãos de direcção, da empresa levanta só podem ser verdadeiramente compreendidos se tiver em linha de conta, em primeiro lugar, que a criação do Direito Penal, e com ele dos seus critérios de imputação, ocorreu no âmbito de um contexto social diametralmente oposto ao de hoje. De facto, enquanto os sucessos da empresa dependem de uma estrutura organizativa complexa, que se caracteriza por uma ampla divisão do trabalho e assenta no princípio da hierarquia, o Direito Penal clássico formou-se à luz ou sob a ideia de um solitário social, de um fora da lei, de um proscrito e do seu anarquismo,Page 151individualismo, espontaneidade e desorganização3. Por isso se fala na tal crise do Direito Penal. E fala-se na crise do Direito Penal, porque a dogmática penal criada a partir da concepção do delito que constitui uma abstracção de uma conduta de um sujeito individual, que vulnera um bem individual e que origina uma só vítima, encontra-se com sérias dificuldades para solucionar casos tão complexos como os levantados pela criminalidade de empresa4. Em boa verdade, o conceito de acção, conceito fundamental e basilar do Direito Penal, foi definido, consequentemente, de forma totalmente individualista, como “comportamento corporal voluntário5. Por outro lado, a teoria final da acção de Hans Welzel que, apesar das críticas que mereceu, marcou de sobremaneira o sistema jurídico-penal actual, veio reforçar e sublinhar esse ponto de vista individualista através da acentuação da vontade de realização final do indivíduo como coluna vertebral da acção6. Em consequênciaPage 152disso, o Código Penal português, assim como tantos outros, entre os quais salientamos o Código Penal brasileiro, declaram como autor de um delito, em primeira linha, aquele que comete o acto por ele mesmo, isto é, com as suas próprias mãos7.

Em nosso entender, este conceito de responsabilidade que vigora no seio do Direito Penal prescinde, em essência, da realidade dos desenvolvimentos empresariais porque aí, quer a identidade do movimento corporal, quer a influência nos acontecimentos, pressupostos no conceito de acção tanto final como causal, transformam-se no seio da realidade organizada da empresa. Com efeito, não podemos esquecer que a empresa consiste numa estrutura organizada, organização essa baseada, como já referimos, no princípio da divisão do trabalho e no princípio da hierarquia. Ora, atendendo a este tipo de estrutura facilmente se compreende que a conduta puramente executiva – a do sujeito subordinado que por si só ou em conjunto com outros produz o facto ilícito – nem sempre é a mais relevante. Por este motivo, com a punição em exclusivo deste último não se respeitam as finalidades político-criminais que devem ser perseguidas. Mais importante é, geralmente, o papel daqueles que estão situados hierarquicamente acima e que detêm o controlo da pessoa colectiva. E aqui reside precisamente o chamado “fenómeno de excisão” que tem lugar na estrutura hierarquicamente organizada da empresa, entre os sujeitos que executam materialmente o facto ilícito e os sujeitos efectivamente responsáveis pela decisão criminal, “que são quem traçou o plano executivo”8. Por isso, Schünemann afirma que como consecuencia del principio de descentralización, característico en la organización de la empresa moderna, y de la transformación de la función de poder y de decisión de las altas instancias, por él condicionada, la “organización de la responsabilidad” – por decirlo con una expresión tópica – amenaza con convertirse en la “organizada irresponsabilidad”, lo que desde un punto de vista jurídico-penal se expresa a través de un cambio de la imputación del hecho hacia abajo, si no hacia los miembros de la organización que están más abajo, ya que sólo ellos llevan aPage 153cabo por sí mismos la actuación tipificada en el supuesto de hecho penal o administrativo9.

Como resolver esta questão? Como punir o “homem de trás”? Naquilo que nos importa, como puni-lo pelas suas omissões? Uma certeza já a temos: a de que, como afirma Elena Ceballos, as figuras clássicas da autoria e da participação como formas de fundamentar a responsabilidade criminal “saltan en pedazos10 quando se tenta aplicá-las às estruturas hierarquicamente organizadas.

A resposta às questões levantadas implica, em primeiro lugar, a necessidade de se resolver o problema que se prende com a questão de saber quais os critérios de imputação que devem ser utilizados, critérios esses que, em nossa opinião, devem respeitar integralmente o princípio da culpabilidade e rejeitar terminantemente qualquer forma de responsabilidade objectiva pois não se pode aceitar que alguém seja considerado como responsável por um delito apenas porque desempenha uma determinada função ou ocupa um lugar cimeiro dentro da hierarquia empresarial. Diga-se, no entanto, que a opinião sufragada pela maioria da doutrina francesa vai precisamente no sentido do reconhecimento de uma responsabilidade objectiva por parte do “chef d’entreprise” (administrador da empresa)11. Neste sentido se pronunciam Alain Coeuret e Elisabeth Fortis, segundo os quais, “o administrador da empresa é titular de uma obrigação legal de vigilância sobre o seu pessoal. O não respeito da regulamentação por parte de um dos seus subordinados não é mais do que a revelação da sua própria carência e justificará a sua condenação penal ”12. Por outro lado, utilizando um argumento baseado no precedente, entende a maioria dos autores franceses que “o administrador da empresa deverá ser considerado como autor moral da infracção”13.

1 A responsabilidade por comissão por omissão dos administradores e gestores empresariais
1. 1 A estrutura empresarial e a figura da “autoria mediata”

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Em 1913, Woodrow Wilson, vigésimo oitavo Presidente dos Estados Unidos da América, afirmou que “durante algum tempo as empresas desempenharam um pequeno papel no âmbito da Economia, mas hoje desempenham o papel principal e a grande maioria dos homens trabalha nessas empresas”14. Se esta afirmação já fazia todo o sentido na primeira década do século XX, podemos dizer hoje que mantém ainda toda a sua actualidade. De facto, a empresa “passou a ser roupagem na veste da qual o homem age e participa de forma quase exasperada na sociedade civil”15. Por isso, os chamados “white collar crimen” (crimes de colarinho branco) e a criminalidade de empresa constituem hoje um dos temas mais actuais e complexos do Direito Penal, não só devido ao crescente número de delitos cometidos a partir das Empresas, mas também às complexas questões doutrinais e probatórias16 que este tipo de criminalidade levanta. E esses problemas devem-se, em grande medida, à organização interna das empresas que, como bem se sabe, é cada vez mais intrincada. Esta realidade vem então interpelar o Direito Penal, questionando-o se, no âmbito da criminalidade de empresa, onde se vive uma determinada cultura com valores próprios17, onde os trabalhadores dispõem de uma escassa resistência face à insuficiente informação que possuem e, por vezes, um total desconhecimento do alcance das suas condutas o que os leva em certas ocasiões a actuar, como afirma Schünemann, “de um modo altruísta e no interesse da casa18, continua a fazer sentido punir única e exclusivamente a conduta puramente executiva, ou seja, quem executa o facto ilícito por si mesmo. Daí que se venha defender, e cada vez mais com maior acuidade, a necessidade de se punir também os órgãos de direcção da empresa que, em virtude da sua situação privilegiada em termos hierárquicos, possuem a totalidade da informação e os meios suficientes e necessários para pôr em marcha, se assim o desejarem, o iter criminis. E o que dizer daqueles casos em que os trabalhadores cometem um determinado facto ilícito porque os órgãos de direcção olvidam, por completo, os seus deveres de vigilância e de boa gestão? Reside aqui o problema de saber até que ponto se pode responsabilizar os administradores e gestores empresariais pelos factos ilícitos cometidos pelos seus subordinados jáPage 155que aqueles não executam qualquer acto material. E a questão da organização interna da empresa tem um papel relevante nesta discussão, na medida em que, para se alcançar a responsabilização do superior hierárquico, se começa do escalão inferior da pirâmide hierárquica empresarial até se chegar ao seu topo, onde se pode encontrar o verdadeiro responsável pelo facto ilícito cometido (imputación hacia arriba). Como se caracteriza então a empresa do ponto de vista interno? De forma lapidar, afirme-se que a actual estrutura...

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