O Administrador da sociedade limitada e a responsabilidade tributária segundo o Artigo 135, III, do Código Tributário Nacional

AutorMarcio Leandro Wildner
Páginas99-122

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1 Introdução

No dia-a-dia do advogado tributarista1, que defende os interesses tributários do ponto de vista dos contribuintes, uma das coisas que mais desperta a atenção é – além da natural voracidade do Fisco em tempos de perseguição às metas de superávit determinadas pela “política econômica” vigente – o verdadeiro desprezo que alguns magistrados, instados pelas procuradorias fazendárias, têm demonstrado pelos requisitos necessários à responsabilização do administrador da sociedade limitada pelos débitos tributários da pessoa jurídica.

Tais requisitos, apresentados no inciso III do artigo 135 do Código Tributário Nacional, têm ficado de lado, em prol de uma indiscriminada transferên-Page 100cia da responsabilidade tributária da pessoa jurídica para o administrador. E o que é pior: tanto os pedidos de transferência quanto às decisões judiciais que os deferem adotam, como fundamento, o inciso III do artigo 135 do Código Tributário Nacional, sem que se demonstre e comprove a ocorrência dos requisitos lá elencados, quais sejam, o cometimento, pelo administrador, de atos com excesso de poderes, ou afrontosos à lei ou ao contrato social.

N’outras palavras: a responsabilidade tributária da pessoa jurídica, que é a regra, passou a ser exceção, ao passo que a responsabilidade do administrador, que é a exceção, passou a ser regra, numa total subversão do instituto da transferência da responsabilidade tributária. Esta realidade fez surgir o interesse em desenvolver um estudo um pouco mais aprofundado da matéria, de modo a delinear, de forma fundamentada, a excepcionalidade da responsabilidade do administrador, conforme prevista no inciso III do artigo 135 do Código Tributário Nacional.

Inicialmente, aprofunda-se a análise da responsabilidade tributária enquanto fenômeno jurídico, com especial relevo para a configuração da responsabilidade tributária de terceiros no âmbito do Código Tributário Nacional, de vital importância para o estudo aqui apresentado, eis que dela surge a noção de que a responsabilidade excepcional do administrador, mesmo sendo substitutiva – e não subsidiária ou solidária – da responsabilidade do contribuinte originário, é subjetiva, pois depende de comprovação, por parte do Fisco, da ocorrência de atos com excesso de poderes, ou afrontosos à lei ou ao contrato social, realizados pelo administrador.

Depois, são apresentados os argumentos que demonstram de maneira cabal a excepcionalidade da imputação da responsabilidade tributária do administrador da sociedade limitada com base nas disposições do inciso III do artigo 135 do Código Tributário Nacional, fulcrada na distinção não só física mas patrimonial existente entre a pessoa jurídica e seus membros, garantida na legislação e muito bem caracterizada no benefício de ordem para a expropriação patrimonial, mas também na demonstração de que a própria definição de ato afrontoso à lei, ou ao contrato social, do qual o mero não-recolhimento do tributo não é espécie, resta por comprovar a excepcionalidade da imputação da responsabilidade ao administrador, a qual depende, para sua materialização, da distinção entre os atos da pessoa jurídica dos atos do administrador, bem como da existência de prova pré-constituída, cujo ônus assiste ao Fisco, de que o administrador cometeu ato ilícito ou afrontoso à lex do qual resultou benefício próprio, em prejuízo da sociedade.

O enfrentamento do tema não é novo, e certamente muitos continuarão a enfrentá-lo. Porém, mesmo não tendo a pretensão de esgotar a matéria, o esforço se deu na tentativa de lançar algumas luzes sobre a mesma, até como forma de denunciar o verdadeiro descalabro que se tem cometido com base nas disposições do inciso III do artigo 135 do Código Tributário Nacional, sem que os agentes de tal realidade prestem o devido respeito ao real objetivo deste dispositivo legal, que é justo e correto, eis que visa responsabilizar o administradorPage 101 pelos débitos tributários advindos de atos de má-gestão, e não, ao contrário do que pretende a Fazenda Pública, imputar ao administrador a responsabilidade pelo adimplemento de todo e qualquer débito tributário que, porventura, não tenha conseguido realizar no patrimônio da pessoa jurídica contribuinte.

1. 1 Obervações preliminares

Partindo de uma análise ampla do fenômeno social, a figura da responsabilidade in genere não é exclusiva da ciência jurídica, sendo encontrável nos mais variados campos da vida social. Todo e qualquer ato tomado por um indivíduo diante da sociedade na qual está inserido carrega, em seu cerne, a carga da responsabilidade, a qual, dependendo da situação, se reveste dos mais diferentes aspectos, podendo ser jurídica, moral, religiosa, ética, etc. Para os fins deste estudo, somente é de interesse a responsabilidade enquanto fenômeno jurídico, próprio da Ciência do Direito.

Além disso, é relevante fixar que, para o direito tributário, a figura do responsável não se confunde com a do contribuinte; enquanto este é o devedor originário da obrigação tributária, vinculado ao fato gerador, aquele é um terceiro que não possui necessariamente ligação direta com o fato gerador, que responderá pela obrigação no lugar do contribuinte por expressa designação da lei, nos casos e sob as condições nela expostos.

2 Responsabilidade jurídica

O estamento básico para a delimitação da responsabilidade jurídica parte da percepção de que ela é a responsabilidade in genere, introduzida no Direito. Assim, sabendo-se que o Direito é formado por uma ordem jurídica, a responsabilidade em geral traz, na sua essência, uma ofensa à ordem, da qual nasce o dever de reparação. O estudo da responsabilidade enquanto fenômeno jurídico tem a sua gênese, pois, na concepção de que é impossível ao dever jurídico proibir violação, a qual representa uma lesão de direito que, por sua vez, origina a responsabilidade e o direito de ação. Conforme anotou Bernardo Ribeiro de Morais, “na ordem jurídica o vocábulo ‘responsabilidade’ traz também a idéia da pessoa que é chamada para responder por um dano ou prejuízo decorrente da violação da norma jurídica”2. Assim, ao genérico dever jurídico de reparação que advém da violação à ordem jurídica dá-se o nome de responsabilidade jurídica.

A análise da responsabilidade jurídica passa, obrigatoriamente, pela idéia de que ela pode ser examinada sob o enfoque de cada um dos ramos didaticamente autônomos do Direito, fazendo surgir uma responsabilidade jurídicaPage 102 civil, uma responsabilidade jurídica comercial, uma responsabilidade jurídica administrativa, uma responsabilidade jurídica penal, uma responsabilidade jurídica tributária, e assim por diante. Para o desenvolvimento da pesquisa interessa examinar a responsabilidade jurídica tributária, a qual não passa, necessariamente, por uma ofensa a determinada disposição legal, e que, quando passa, o agente de tal ato ilícito não é o terceiro responsável, mas sim, o contribuinte originário, como se demonstrará a seguir.

2. 1 Responsabilidade jurídica tributária: conceito que dispensa a ocorrência de violação à norma

Como visto acima, a responsabilidade jurídica, considerada enquanto gênero, a priori não poderia ser equacionada sem o pressuposto da violação da norma. Sob tal concepção, diferente não seria no caso da responsabilidade jurídica tributária, onde deve haver afronta à norma tributária, de acordo com o entendimento de Bernardo Ribeiro de Morais:

Na hipótese do inadimplemento da obrigação tributária, que ocorre quando o sujeito passivo deixa de efetuar a prestação tributária, a Fazenda Pública fica com o direito de exigir de alguém, do sujeito passivo ou outra pessoa, a aludida prestação. Cabe, à Fazenda Pública, o direito de ser ressarcida ou indenizada (lato senso) em razão do inadimplemento da norma jurídica (violação da norma jurídica). Alguém deve ser responsabilizado pela reparação do prejuízo sofrido pela Fazenda Pública. Temos, então, uma relação jurídica derivada, denominada de responsabilidade tributária, em virtude da qual uma pessoa (responsável) fica adstrita a satisfazer certa prestação, embora não seja devedora originária.3

Assim, na visão deste doutrinador, o responsável tributário é aquele que fica no pólo passivo da relação jurídica derivada que, em razão do inadimplemento do mandamus legal por aquele originalmente alcançado pela obrigação de prestar, e que, por estrita imposição legal, deve assumir as conseqüências do inadimplemento da obrigação tributária.

Nos parâmetros adotados pelo estudioso citado, para que haja a responsabilidade tributária devem concorrer, pois, os seguintes pressupostos...

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