O adicional de penosidade sob a óptica da teoria constitucional contemporânea: a efetivação dos direitos fundamentais

AutorBárbara Natália Lages Lobo
Ocupação do AutorDoutoranda e Mestre em Direito Público pela PUC-MG. Servidora do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Professora de Direito e Processo do Trabalho
Páginas70-82

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1. Introdução

O presente artigo decorre da necessidade de se investigar a efetividade do direito ao recebimento de adicional pelo exercício de atividades penosas. Incluído no rol dos direitos fundamentais dos trabalhadores previstos no art. 7º da Constituição da República de 1988, o adicional de penosidade encontra-se disposto no inciso XXIII do mencionado artigo, figurando ao lado do direito ao pagamento de adicional de insalubridade e periculosidade. Entretanto, diferentemente das atividades perigosas e insalubres que se encontram reguladas pela CLT e por outros atos normativos expedidos pelo Executivo, através do Ministério do Trabalho e Emprego, as atividades penosas não encontram amparo infraconstitucional, o que acarreta a inefetividade do direito e prejuízos irreparáveis aos trabalhadores que se expõem a esse agente danoso a sua saúde.

A responsabilidade civil do Estado por omissão legislativa já foi objeto de estudo desta autora1; passa-se, portanto, à análise prática desta omissão relativamente ao exercício de atividades penosas, sob a óptica do Direito Constitucional Contemporâneo e de suas implicações na novel teoria de aplicabilidade das normas constitucionais.

Inicialmente, verificar-se-á a evolução das teorias de aplicabilidade das normas constitucionais, destacando-se na doutrina nacional aquelas elaboradas por José Afonso da Silva (2000) e Luís Roberto Barroso (2013), aquele como expoente do constitucionalismo brasileiro clássico e este como expoente do constitucionalismo brasileiro contemporâneo (ou neoconstitucionalismo, conforme será visto adiante).

Posteriormente, refletir-se-á sobre as implicações das teorias de aplicabilidade das normas constitucionais sobre a disciplina do adicional de penosidade, mediante análise da conceituação e previsão normativa, bem como as consequências jurisprudenciais da ausência de regulação da matéria pelo Legislativo.

Finalmente, concentra-se o presente artigo na investigação do adicional de penosidade sob a óptica da nova teoria de aplicabilidade das normas constitucionais, do instituto do ativismo judicial neste particular e de soluções possíveis para a imprevisão infraconstitucional do referido direito.

Investigou-se amplamente a teoria constitucional acerca da aplicabilidade das normas constitucionais, tema por muitos já refletido, mas que não perde a atualidade, diante da existência de direitos fundamentais que não são efetivos por ausência de regulação específica.

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No que tange ao estudo do instituto da penosidade, verificou-se a escassez de referências sobre o tema, não se sabe se por desinteresse ou pela completa ineficácia do dispositivo constitucional. O presente artigo se apresenta como uma tentativa de superação desta lacuna doutrinária apresentando uma interessante reflexão sobre o tema.

2. Teorias de aplicabilidade das normas constitucionais

A aplicabilidade das normas constitucionais é o núcleo do estudo da Teoria da Constituição, pois a efetividade da Constituição é o que alicerça a sua importância enquanto documento jurídico. A coesão entre os anseios filosóficos, políticos, econômicos, sociais e culturais da sociedade e a atuação estatal em garantir o caráter normativo imprescinde da efetivação das normas constitucionais. Entretanto a teoria constitucional clássica reconheceu a gradação destas quanto à aplicabilidade, o que acarretou a negativa do reconhecimento de eficácia a vários dispositivos constitucionais. Vejamos.

2. 1 Teoria Constitucional Clássica

A teoria clássica norte-americana bipartia os dispositivos constitucionais em self executing e non self executing ("autoaplicáveis ou autoexecutáveis" e "não autoaplicáveis ou não autoexecutáveis" (BONAVIDES, 2003. p. 241), conforme sua autoaplicação, sendo que as primeiras dispensavam atuação regulatória infraconstitucional, enquanto esta era indispensável para a efetividade dos últimos.

Paulo Bonavides (2003. p. 242) reconhece o teórico norte-americano do século XIX Thomas Cooley como o principal expositor desta teoria, que reconhecia limitação à aplicabilidade das normas constitucionais.

Segundo o autor:

Pode-se dizer que uma disposição constitucional é autoexecutável (self executing) quando nos fornece uma regra mediante a qual se possa fruir e resguardar o direito outorgado, ou executar o dever imposto, e que não é autoaplicável quando meramente indica princípio, sem estabelecer normas, por cujo meio se logre dar a esses princípios vigor de lei. (COOLEY apud BONAVIDES, 2003. p. 242).

Posteriormente, a teoria constitucional alemã do final da década de 1920, seguida pela doutrina constitucional italiana e brasileira, identificou três tipos de normas. Neste artigo, destacar-se-á a doutrina de José Afonso da Silva (2000), elaborada na década de 1960, que se apresenta como a expressão clássica da teoria constitucional nacional, difundida nos cursos e nas doutrinas jurídicas e que norteou e, ainda, direciona grande parte da hermenêutica constitucional pátria.

José Afonso da Silva (2000) consagrou suas conclusões acerca das características das normas constitucionais na obra "Aplicabilidade das Normas Constitucionais", na qual reconheceu o caráter tríplice destas, classificando-as em: normas constitucionais de eficácia plena, normas constitucionais de eficácia contida e normas constitucionais de eficácia limitada, podendo ser estas últimas de princípio institutivo ou de princípio programático.

O autor (SILVA, 2000. p. 81) reconhece a eficácia de todas as normas constitucionais, contudo a plenitude desta eficácia se apresenta variável relativamente à necessidade de sua complementação infraconstitucional para produção de efeitos.

Por considerar insuficiente a doutrina bipartite clássica, José Afonso da Silva (2000) acrescentou à tipologia normativa constitucional as normas de eficácia contida, cujos efeitos serão analisados a seguir.

Tal qual as normas self executing, as normas constitucionais de eficácia plena produzem direta, imediata e integralmente seus efeitos, prescindindo de normatização futura para tanto. É exemplo deste tipo normativo o art. 2º da Constituição da República: "Art. 2º - São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário." (BRASIL, 1988).

As normas de eficácia contida, apesar de possuírem aplicabilidade imediata e direta, carecem da integralidade das normas de eficácia plena, pois são restringíveis por normatização futura. O art. 5º, inciso XIII, da Constituição da República de 1988 (BRASIL, 1988) é exemplo deste tipo de norma: "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer".2

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As normas constitucionais de eficácia limitada são denominadas por José Afonso da Silva (2000. p. 118) como normas constitucionais de princípio, subdividindo-as em normas de princípio institutivo ou organizativo, cuja característica principal "está no fato de indicarem uma legislação futura que lhes complete a eficácia e lhes dê efetiva aplicação" (SILVA, 2000. p. 123). O autor reconhece aqui a discricionariedade do legislador para atuação para regulação daquelas normas de caráter facultativo, muito embora reconheça José Afonso da Silva (2000. p. 128) que algumas dessas normas não possuem tal caráter, sendo impositivas, não permitindo ao legislador a análise da conveniência e oportunidade em sua elaboração.

O próprio constitucionalista (SILVA, 2000. p. 129) reconhece a inefetividade quanto ao caráter coativo do dever de legislação, mesmo após a previsão da ação direta de inconstitucionalidade por omissão pelo art. 103, § 2º, da Constituição da República de 19883, ante a irresponsabilidade do Legislativo, diante de sua inércia e a ausência de imposição de sanção, sob o respaldo do princípio da tripartição de poderes.

Conceber a irresponsabilidade do Legislativo ante a omissão inconstitucional do dever de legislar se apresenta extremamente danoso ao princípio de eficiência da Administração Pública, sendo contrário ao paradigma do Estado Democrático de Direito, pois impeditivo do exercício dos direitos fundamentais.

A segunda categoria das normas constitucionais de princípio é a de princípio programático, decorrente das constituições dirigentes, utilizando-se aqui José Afonso da Silva da concepção de José Joaquim Gomes Canotilho (SILVA, 2000), tal como a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que guarda estreita relação com o paradigma do Estado Social, prevendo atuação estatal futura para a realização de seus fins sociais. Segundo esta teoria, inserem-se aqui os direitos sociais.

Neste ponto, permite-se a inclusão do adicional de penosidade, em conformidade com a teoria clássica de aplicabilidade das normas constitucionais, como norma programática "vinculada ao princípio da legalidade" (SILVA, 2000. p. 147), pois, dependente de lei que a regulamente.

Fundamentados nesta classificação, muitos magistrados e tribunais denegam aos trabalhadores o direito ao adicional de penosidade, conforme será visto em tópico próprio. Entretanto se apresenta urgente a mudança desta interpretação constitucional.

José Afonso da Silva afirma acerca dessas normas que:

Cumpre apenas observar, por fim, que, nesses casos, quando a lei é criada, a norma deixa de ser programática, porque a lei lhe deu concreção prática - desde que, realmente, a lei o tenha feito, pois pode...

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