Saúde laboral ? o adicional de insalubridade e o direito fundamental ao meio ambiente de trabalho hígido

AutorLeomar Daroncho
CargoProcurador do Trabalho
Páginas285-304

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Introdução

O nosso modelo de Estado Democrático de Direito elegeu como centro de convergência do ordenamento jurídico a dignidade da pessoa humana, estabelecendo diretriz que, juntamente com o valor social do trabalho, delimita e impõe o direito fundamental ao trabalho digno.

Nesse contexto, a definição ampla da saúde dentro do modelo de trabalho constitucionalmente protegido remete àquele que se desenvolve segundo os parâmetros estabelecidos para o trabalho decente pela Constituição de 1988, no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais.

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Essa constatação, ao mesmo tempo em que qualifica o trabalho constitucionalmente protegido, impõe a análise da compatibilidade das práticas interpretativas usuais com as premissas constitucionais que definem os parâmetros mínimos da regulação do trabalho: direitos fundamentais do trabalho.

Postas essas considerações, surge a seguinte questão: na nossa ordem constitucional, o pagamento do adicional de insalubridade exonera o empregador da responsabilidade pela manutenção do meio ambiente de trabalho hígido?

O enfrentamento da questão proposta, tematizada a partir da hipótese de que o entendimento jurisprudencial dominante comprometeria a efetivi-dade da Constituição, dá-se numa análise crítica e reflexiva referenciada primordialmente na Teoria da Constituição de Dworkin.

A investigação e a leitura crítica do entendimento jurisprudencial dominante se dão na perspectiva da literatura especializada, do Direito Sanitário, do Direito do Trabalho e do Direito Constitucional, com destaque para os autores que promovem a leitura dos direitos sociais a partir e em sintonia com os direitos fundamentais, como propõe o moderno constitucionalismo.

1. A constitucionalização dos direitos sociais
1.1. O valor social do trabalho e a dignidade humana do trabalhador

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece, no art. 6º, que “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Os direitos sociais constituem prestações positivas proporcionadas pelo Estado “direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos” (SILVA, 1998, p. 289). Tais direitos estão ligados ao direito de igualdade e tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais.

Trata-se do reconhecimento dos novos direitos fundamentais: direitos econômicos, sociais e culturais, que — a partir da Constituição de Weimar, de 1919 — incorporaram-se às constituições de diferentes nações, expressando a ideia de que a felicidade dos homens não se alcança apenas contra o Estado, mas, sobretudo, pelo Estado.

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Conforme observado por Sarlet (2003), a abundância, quantitativa e qualitativa, de direitos sociais no texto constitucional confere posição de destaque à Constituição de 1988, tanto na história constitucional brasileira quanto em relação a outras ordens constitucionais.

Noutro giro, Sarlet (2006) anota que o nosso modelo de Estado Democrático de Direito elegeu como centro de convergência do ordenamento jurídico a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição).

Nesse contexto, o trabalho, categorizado como direito humano fundamental, no rol dos direitos sociais, requer que sua exteriorização seja acompanhada da marca da dignidade. É oportuno o registro de que o trabalho digno deve ser compreendido como sendo aquele que se desenvolve dentro dos parâmetros estabelecidos para o trabalho decente (BRITO FILHO, 2004).

Pontue-se que poucas relações são tão propícias à manifestação da desigualdade, inclusive com prejuízos — imediatos ou diferidos — à saúde do trabalhador, como àquelas entabuladas no curso de uma relação de trabalho subordinado.

Desse modo, contextualizando no ambiente e nas relações de trabalho, a dignidade da pessoa humana — protegendo a pessoa do trabalhador contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, e ao mesmo tempo garantindo-lhe as condições existenciais mínimas para uma vida saudável — é uma diretriz constitucional que, juntamente com o valor social do trabalho, também fundamento da República Federativa do Brasil, delimita e impõe o direito fundamental ao trabalho digno o que, por óbvio, também engloba as condições para a preservação de sua incolumidade física e psíquica.

1.2. A saúde e o meio ambiente de trabalho

Ao traçar as linhas básicas do Sistema Único de Saúde — SUS, a Constituição integra o meio ambiente do trabalho ao amplo conceito de meio ambiente a ser protegido (art. 200, VIII).

Destarte, são temas constitucionais tanto a manutenção da saúde do trabalhador quanto a necessidade de que sejam asseguradas as condições de higidez do meio ambiente de trabalho — mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, como medidas compreendidas na promoção e na proteção da saúde — (arts. 6º e 196).

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Dessas disposições deduz-se o conceito de meio ambiente de trabalho como sendo o local em que são desempenhadas atividades laborais, remuneradas ou não, “cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio ambiente e na ausência de agentes que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores” (FIORILLO, 2000, p. 21).

Assim, tal como ocorre com os demais ramos do Direito, as questões primordiais do Direito à Saúde e do Direito do Trabalho, na atualidade, já não encontram solução dentro dos limites estreitos das próprias disciplinas, extravasando, necessariamente, para o terreno constitucional (MENEZES, 2003).

Necessário considerar, ainda, que a saúde, ou mais precisamente o comprometimento da saúde do trabalhador em decorrência das condições de trabalho, é tema de grande relevância, tanto do ponto de vista da saúde pública, na dimensão coletiva, quanto das possibilidades de inclusão do indivíduo no nosso modelo de sociedade, que valoriza de modo especial-mente marcante a produção e a capacidade produtiva.

Sintetizando, é possível afirmar que a saúde do trabalhador, como espécie do direito à saúde constitucionalmente protegido, apresenta-se como direito fundamental inviolável e fora do comércio.

1.3. O direito fundamental ao meio ambiente de trabalho hígido

A preocupação com os possíveis agravos à saúde, em decorrência do trabalho, remonta ao início do século XVIII, quando Bernardino Ramazzini relacionou os riscos à saúde ocasionados por produtos químicos, poeira, metais e outros agentes (RAMAZZINI, 2000).

A noção de insalubridade teve origem na medicina urbana — França, final do século XVIII —, tendo como foco a organização do ambiente das cidades e suas relações com as doenças. Surge, então, a medicina da força de trabalho, que sem excluir as demais e tendo incorporado o assistencialismo, desenvolveu-se paralelamente ao modo de produção capitalista, inicialmente na Inglaterra (FOUCAULT, 1979).

Berlinger (1987) afirma que a doença deve ser considerada como um sinal estatisticamente relevante e precocemente calculável, de alterações do equilíbrio homem-ambiente. O conceito incorpora a compreensão de que alterações na saúde podem ser induzidas pelas transformações produtivas, territoriais, demográficas e culturais, incontroláveis nas suas consequências, sem perder de vista o sofrimento individual e o desvio da normalidade biológica ou social.

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O contrato de trabalho, por sua vez, é uma relação jurídica complexa que encerra deveres anexos de conduta do empregador, dentre os quais se destaca o dever de proteção (DALLEGRAVE NETO, 2007).

Assim, do ponto de vista da dignidade humana do trabalhador, as múltiplas referências constitucionais à saúde ocupacional podem ser sintetizadas no direito a laborar em um meio ambiente do trabalho hígido.

Essa conclusão pode ser deduzida da disposição constitucional que assegurou aos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, caput e inciso
XXII), no capítulo dos direitos fundamentais.

Interessante registrar que a inclusão do direito à saúde do trabalhador no complexo maior formado pelo Direito Sanitário, ao menos no que diz respeito aos destinatários da rede de proteção pública, recupera a origem do sistema de saúde no Brasil que, antes do movimento da reforma sanitária, da década de 1980, limitava-se aos trabalhadores regulares. Registrando a restrição dos beneficiários naquele período, a observação de Delduque (2008, p. 105): “Não faz muito tempo, a saúde era garantida somente àqueles com carteira de trabalho assinada e mediante contribuição ou àqueles que pudessem pagar por ela”.

2. Adicional de insalubridade
2.1. Histórico

A compensação pelo trabalho em condições insalubres surge com o objetivo de melhorar a alimentação do trabalhador, no contexto da Revolução Industrial, no século XVIII.

Silva (2011) relata que com o tempo tanto a Inglaterra — 1760 — quanto os Estados Unidos — 1830 — aboliram o pagamento do adicional. Constatou-se que a melhoria na alimentação não evitava as doenças ocupacionais e os trabalhadores procuravam as atividades...

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