Ad Argumentandum Sísifo Pede a Palavra

AutorMarilis de Castro Muller
CargoAdvogada pós-graduada (Centro Universitário de Curitiba e especializada pela UNIBRASIL - APEJ) e em Direito Material e Processual do Trabalho
Páginas8-18

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1. Introdução

Questão que vem ga-nhando destaque no âmbito laboral é a da saúde mental do trabalhador. Da-dos contidos no anuário Estatístico da Previdência Social de 2015 apontam que, de 2004 a 2013, hou-ve um crescimento de 1.964% nas concessões de auxílio-doença por doença-mental relacionada ao tra-balho.

O ministro presidente da 7ª Turma do Tribunal Superior do Traba-lho, Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, comentando um processo de relatoria do ministro Claudio Bran-dão, sobre transtornos mentais e condições de trabalho, afirmou que para ele essa é "uma das questões mais relevantes que envolvem a relação de trabalho em seu aspecto existencial porque é de difícil aferição na prática". A notícia foi veiculada no site do TST, por ocasião do I Simpósio de Transtornos Mentais no Tribunal Superior do Trabalho, realizado em dezembro de 2016.

A dificuldade reside no fato de uma doença mental ser ou não enquadrada como doença profissional ou do trabalho, o que enseja distintos tratamentos nos âmbitos trabalhista e previdenciário, resul-

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tando num maior ou menor amparo ao trabalhador, o que compreende tempo de carência para aferição do benefício, estabilidade no emprego após sua alta, obrigação de recolhi-mentos fundiários e indenizações por danos materiais e morais.

A legislação previdenciária já apresentou algum avanço ao instituir o nexo técnico epidemiológico, a inversão da prova em benefício do trabalhador e ao reconhecer al-gumas doenças mentais como sen-do doenças do trabalho (causadas por agentes químicos, condições laborais, organização de horário), mas não progrediu o suficiente no tocante ao enquadramento da depressão.

Este artigo tem o objetivo de chamar a atenção para a depressão no trabalho e demonstrar que há argumentos relevantes e suficien-tes para provocar uma atualização da legislação previdenciária. Os decretos regulamentadores da Lei 8.213/99 apresentam, em seus anexos, uma listagem na qual a depres-são figura como doença do trabalho, mas tão somente nos casos em que é provocada por agentes químicos. São omissos, no entanto, por não apontar as condições e a organiza-ção do trabalho como fatores tão ou até mais relevantes que os agentes químicos para o desencadeamento da doença. Pretende-se então suprir essa lacuna com apontamentos que possam melhor instrumentalizar perícias e decisões, e abrir espaço para maior discricionariedade aos julgadores na apreciação de laudos.

Para o mundo do trabalho, entretanto, mais significativo do que classificar as doenças mentais, em específico a depressão, como doenças do trabalho ou ocupacionais, é evitá-las, o que pode ser feito a partir da compreensão sobre as relações de prazer e sofrimento na atividade laboral que tanto podem induzir o sujeito trabalhador à autorrealização ou a uma psicopatologia.

O trabalho deve ser examinado em sua integralidade, em seus aspectos econômico, político, social e psicossocial, a fim de que as es-tratégias empreendidas sobre o cor-po e a subjetividade do trabalhador para a maior lucratividade patronal e desencadeadoras de toda ordem de patologias, fiquem no passado, e se inaugure um tempo em que o trabalho, lugar de construção iden-titária, seja também de prazer, re-conhecimento e autorrealização.

2. O trabalho de Sísifo

Sísifo

hoje agora me decido depois amanhã hesito o dia detém meu passo a noite cala meu grito deuses ondeficéu existeficéu existefideuses ondefium eco que faz perguntas um espelho que responde e eu Sísifo tardo triste a tilintar as correntes de dilemas renitentes lá me vou sem vez nem voz rolar a pedra dos mudos pela montanha dos sós

(José Paulo Paes ? 1926-1998)

Ao invés de examinar a rela-ção trabalho fidoença mental/de-pressão a partir do caso concreto apreciado pelos ministros Cláudio Brandão e Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, a refiexão partirá do hipotético trabalho-punição no mito de Sísifo, que bem ilustra o problema enfrentado.

"Os deuses tinham condenado Sísifo a rolar um rochedo incessantemente até o cimo de uma montanha, de onde a pedra caía de novo por seu próprio peso. Eles tinham pensado, com suas razões, que não existe punição mais terrível do que o traba-lho inútil e sem esperança" (Camus, 1942, p. 51 apud BISPO, M.F.M. e ROSA, R.S.2013).1

Sísifo representa, numa perspectiva foucaultiana2, o corpo su-jeitado do trabalhador a um poder organizacional que o obriga ao exercício rotineiro de atividades mecânicas, repetitivas, exaurientes, com o fim único de otimizar a produção. O alvo do poder organizacional é o corpo de Sísifo, adestrado de forma a conseguir sua máxima utilidade econômica, com o mínimo de resistência e revolta.

O modelo, centrado na economia do corpo para otimização de resultados, nega a subjetividade de Sísifo ao alijá-lo do processo de concepção do trabalho, restringin-do-o à sua execução. É neste momento, em que sua subjetividade é negada, que, paradoxalmente, ele pode se reconhecer como sujeito de sua própria vida. Na mesmice dos dias e das horas é que pode tomar consciência do absurdo da condição que lhe é exigida.

Para o existencialista Camus, Sísifo, diante do absurdo da con-dição humana, tem duas alternativas que, no entanto, afirmam este absurdo: de forma positiva, pelo enfrentamento e opção pela vida, num gesto de revolta; e de forma negativa, pelo suicídio, que é a representação do fracasso do existente pela autoaniquilação.

O caminho que leva a uma ou a outra resposta - de enfrentamento ou de suicídio, simbólico (inclusi-ve no assujeitamento) ou não fié de ampla tessitura, paradoxal e carregado de sentimentos.

Nem sempre o percurso é matizado e Sísifo tanto pode perder o viço diante do breu existencial que o confronta, quanto dar novo sentido à própria existência.

Sísifo, tão igual e tão distinto dos seus pares trabalhadores

No mundo do trabalho, entretan-to, não visitado por Camus, o indivíduo, antes mesmo de uma tomada

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de consciência que o impulsione à ação, pode se assujeitar à condição que lhe é imposta, aniquilando sua identidade e vindo a adoecer.

Sísifo adoece. Depressão. Não tendo mais condições de realizar suas atividades profissionais, pre-cisa ser licenciado para tratamento A partir desse momento Sísifo se vê envolto na discussão acerca do nexo causal entre a doença e o ambiente, as condições e a organiza-ção do trabalho.

3. O processo

No âmbito previdenciário o trabalhador faz jus, conforme sua doença, a dois tipos de licença: au-xílio-doença e auxílio-doença acidentário. A primeira é concedida ao trabalhador acometido por enfermidade desvinculada ao trabalho, e a segunda se destina, necessaria-mente, ao trabalhador com víncu-lo empregatício (empregado), por doença produzida ou desencadeada pelo exercício de um trabalho específico, assim elencado pelo Minis-tério do Trabalho e da Previdência Social, ou que tenha resultado das condições especiais em que o tra-balho foi executado. Diversamente do auxílio-doença comum, o acidentário prescinde de carência para concessão, gera direito à estabili-dade no trabalho por doze meses a contar do término da licença e também o dever, para o empregador, de recolhimento fundiário.

No âmbito trabalhista, compro-vado o liame da doença com o tra-balho, importa a responsabilização civil do empregador, e o direito à percepção, pelo trabalhador, de in-denização por danos morais e materiais.

Diante deste cenário, Sísifo vai à luta buscando obter seu auxílio-doença acidentário e a indenização por danos materiais e morais.

Ele busca, administrativamente, o auxílio-doença acidentário perante a seguridade social com fulcro nos artigos 19, 20, II, 21-A, da lei previdenciária 8.213/99 e, como a decisão administrativa oriunda da previdência oficial não vincula de forma absoluta a apreciação de determinado evento pelo judiciário trabalhista, busca neste as indenizações por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente de trabalho, com base na Súmula Vinculante 22 do STF, que lhe fixa a competência para tanto. Fundamenta ambos os procedimentos nos artigos 7º, XXII, 196 e 225 da Constituição Federal que preveem, o primeiro, o direito do trabalhador à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de norma de saúde, higiene e segurança; o segundo, a saúde como direito do trabalhador e dever do Estado, que deve garantir mediante políticas sociais e econômicas a redução de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços; e, o terceiro, o direito a um meio ambiente finele incluído o laboral fiequilibrado.

A legislação previdenciária não é suficiente o bastante para carac-terizar a depressão de Sísifo como doença ocupacional, e consequentemente como acidente do traba-lho, de vez que em si mesma há uma lacuna que deve ser suprida pela melhor interpretação.

O inciso II do artigo 20 da Lei 8.213/99 designa a doença do tra-balho como aquela adquirida ou desencadeada em função de con-dições especiais em que o trabalho é realizado, e que com ele diretamente se relacione. O artigo 21-A prevê que a constatação do nexo técnico epidemiológico se dê mediante perícia do INSS, em conformidade com o que dispuser o regulamento.

O regulamento a que alude foi editado através do Decreto 3.048 de 1999, alterado pelo Decreto 6.042/07 e posteriormente pelo Decreto 6.957, de 9 de setembro de 2009, e versa sobre o liame epide-miológico; entretanto, não elenca, em seus anexos, as condições e a organização do trabalho como cau-sas desencadeantes da depressão, apontando como tal unicamente os agentes químicos.

O Decreto 3.048/99 e os subsequentes representam algum avanço na...

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