Actuarial criminal policy: biopolitical contours of criminal exclusion/ Politica criminal atuarial: contornos biopoliticos da exclusao penal.

AutorWermuth, Maiquel Angelo Dezordi

1 Consideracoes iniciais

As novas tecnologias apresentam aos discursos e as praticas punitivas a possibilidade sedutora de alcancar, com um grau de eficiencia outrora inimaginavel, o objetivo principal das politicas criminais contemporaneas--inseridas em um contexto marcado pela preocupacao com a seguranca em detrimento das liberdades individuais: o controle seletivo de determinados estratos sociais considerados "incorrigiveis" ou, dependendo do grau de franqueza do discurso, "irrelevantes".

A denominada Politica Criminal Atuarial apresenta-se como background para o pensar de um conjunto de solucoes para o fenomeno da criminalidade, apoiadas na logica economica (atuarismo). A partir de numeros e estatisticas, a nocao de eficiencia que subjaz a perspectiva atuarial encontra nas novas tecnologias o instrumental ideal para que a persecucao penal apresente o maximo de resultados com o minimo de dispendio (economico) necessario.

Ocorre que, a partir dessa nocao de eficiencia insita a perspectiva atuarial, revela-se um tensionamento--em diferentes niveis--das garantias fundamentais dos cidadaos, tanto daqueles que sao perseguidos efetivamente pelo sistema punitivo quanto dos que se encontram imersos em uma sociedade da vigilAncia, compondo bancos de dados ou, ainda, sendo constantemente monitorados por cAmeras nos espacos publicos sem ao menos ter consciencia disso. E justamente aqui que se revela a problematica que orienta a discussao empreendida no presente artigo: a partir do descortinamento da Politica Criminal Atuarial e da utilizacao cada vez mais frequente, na seara das praticas punitivas, das novas tecnologias, estaria suplantada a nocao de um modelo de Direito Penal de corte liberal--assentado na protecao do individuo em face do arbitrio punitivo estatal--em nome de um Direito Penal da exclusao de determinados individuos ou grupos considerados de risco--com notas caracteristicas de um Direito Penal do autor?

O objetivo principal do texto e, em um primeiro momento, analisar a Politica Criminal atuarial e sua logica de atuacao, a partir das contribuicoes das novas tecnologias (bancos de dados e de perfis geneticos, monitoramento eletronico, escaneres opticos, etc) para, em um segundo momento, buscar explicitar os contornos biopoliticos da tensao seguranca versus liberdade, procurando evidenciar que, implicito na ideia de eficiencia que subjaz a logica atuarial, esta o controle de determinados estratos sociais que se apresentam enquanto meras vidas nuas, ou seja, vidas que podem ser impunemente eliminadas do tecido societal (o que permite uma aproximacao com a figura do homo sacer, resgatada do direito romano arcaico pelo pensamento do filosofo italiano Giorgio Agamben para ilustrar a situacao de determinados sujeitos na contemporaneidade).

O metodo utilizado na presente pesquisa e o fenomenologico-hermeneutico, desenvolvido nas obras de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer. A fenomenologia hermeneutica busca relacionar o sujeito (pesquisador) com o objeto (pesquisa), por entender que nao ha como o pesquisador situar-se para alem do objeto pesquisado, nao podendo elevar-se para fora dele, estando, dessa forma, o sujeito relacionado com o objeto. Assim, o presente trabalho utiliza-se de tal metodo de compreensao justamente por entender que a pesquisa ora realizada nao se encontra afastada do pesquisador, visto que, este se encontra inserido em uma realidade social em que os fatos analisados na presente pesquisa (implementacao da politica criminal atuarial, novas tecnologias, etc) existem.

A fenomenologia "constitutiva" heideggeriana desconstroi o conceito do sentido de "ser" (ontico, de equiparacao entre o ser e o ente) da tradicao metafisica, definindo a possibilidade da compreensao do sentido de "ser" pela tradicao filosofica atraves da linguagem (de ser nao mais como fundamento). A partir da atribuicao do sentido de ser, Heidegger considera o processo (circulo) hermeneutico como metodo de pesquisa ontologico da compreensao (do ser), de constituicao da experiencia humana (vivencias) como processo interpretativo.

2 Minority report e a politica criminal atuarial: rumo a um Direito Penal da exclusao?

E cada vez mais evidente, nos discursos criminologicos da contemporaneidade, a compreensao do crime como resultado de um erro de calculo, como uma especie de falha na antecipacao do risco inerente a uma determinada situacao --a exemplo dos discursos do tipo "lei e ordem" analisados por Wacquant (2001). Ao contrario das teorias criminologicas classicas--que compreendiam o crime como uma desautorizacao do soberano--e das teorias sociologicas--que enxergavam o fenomeno da criminalidade como fruto de uma especie de "determinismo social"--, aquilo a que Garapon (2010) denomina de "modelo neoliberal" de criminologia deixa de se ocupar com o tempo presente, cedendo lugar ao futuro, antecipado e planejado nas suas mais obscuras possibilidades. A crescente sensacao de inseguranca que caracteriza as "cidades-pAnico" (VIRILIO, 2011) contemporAneas exerce uma influencia muito notavel sobre o sistema penal, condicionando demandas de punitividade que determinam sua crescente centralidade no marco das politicas publicas e acentuam a tensao permanente que subjaz a encruzilhada entre liberdade e seguranca (BRANDARIZ GARCIA, 2014).

Como no conto Minority Report, de Philip K. Dick (2002)--que retrata um futuro no qual nao ha mais crimes, uma vez que eles sao previstos antes de acontecer e os responsaveis presos antes de comete-los--evidencia-se a obsolescencia dos discursos normalizadores e ressocializadores no Ambito penal, que passam a ser tratados como meras quimeras e, portanto, absolutamente disfuncionais para orientar o controle social na contemporaneidade.

Nesse marco, a ideia de superacao da criminalidade nao faz mais sentido, de forma que se torna igualmente ilogico desenhar a Politica Criminal operando sobre o infrator individual, a partir de teses sobre as causas do delito, pretendendo incidir sobre as disfuncoes que geram essas condutas criminosas. A preocupacao central, na logica atuarial, passa a ser detectar e, a partir disso, redesenhar situacoes consideradas criminogenas, de modo a reduzir as oportunidades para que o crime viceje. Em outras palavras, a Politica Criminal passa a se orientar mais pela ideia de conter o temor da criminalidade do que efetivamente reduzir as taxas de delinquencia (BRANDARIZ GARCIA, 2007; 2014a).

Trata-se, em suma, de um modelo que poderia ser denominado de "modelo performativo" de Politica Criminal, assentado sob uma logica de "preeminencia de los medios respecto de los fines", uma vez que "los nuevos indicadores de exito tienden a concentrarse mas en rendimientos que en resultados", ou seja, "mas en lo que las instancias del sistema penal hacen que en los beneficios sociales que producen -en terminos de prevencion del delito o de conformacion de un modelo garantista-." (BRANDARIZ GARCIA, 2014a).

Nesse contexto, a Politica Criminal Atuarial revela-se como resultado da transicao de um modelo que buscava punir para retribuir, intimidar ou reabilitar individuos--conforme a doutrina classica de justificacao da pena seguida--para um modelo que tem por objetivo a utilizacao da pena para o controle sistematico de determinados grupos que passam a ser considerados "de risco", mediante estrategias de neutralizacao, principalmente, dos seus membros "salientes". Essa incapacitacao seletiva seria responsavel pelo maior beneficio politico-criminal com o menor custo economico possivel (DIETER, 2013).

Em outras palavras: uma politica criminal que parte da ideia de economia de recursos escassos deve ser capaz de eleger os grupos humanos que requerem um controle prioritario. Isso significa que nao se pode deixar de relacionar a Politica Criminal atuarial com a crescente preocupacao neoliberal com o "gasto publico", que tem determinado que os custos do sistema penal comecem a aparecer como uma variavel determinante no desenho das politicas de prevencao e controle. Essa logica vem a substituir a racionalidade welfarista, que legitimava e orientava as politicas publicas fundamentalmente a partir da perspectiva da sua utilidade para solucionar problemas sociais, o que no Ambito punitivo outorgava prioridade a atencao as causas coletivas da criminalidade (BRANDARIZ GARCIA, 2014a). Verifica-se, nesse sentido, a ocorrencia de um "giro punitivo" que se inicia na segunda metade do seculo XX: abandona-se cada vez mais a cultura penal assistencial em nome de um sistema sancionatorio pautado no castigo, na incapacitacao seletiva e na protecao social (GARLAND, 2008).

Na logica atuarial parte-se da premissa de que e sempre possivel a identificacao, em um determinado contexto social, de um numero de delinquentes que e relativamente pequeno, mas que invariavelmente sao os responsaveis pela maior parte dos delitos cometidos. A partir dessa deteccao, e possivel predizer, a partir de dados estatisticos, que esses individuos continuarao delinquindo, de modo que a sua neutralizacao ou incapacitacao pelo tempo maximo possivel provocara, reflexamente, uma reducao consideravel nos indices de criminalidade. O raciocinio e matematico:

segregar dois anos cinco delinquentes cuja taxa previsivel de delinquencia e de quatro delitos por ano, gera uma "economia" para a sociedade de 40 delitos e lhe custam 10 anos de prisao. Em contrapartida, se esse mesmo custo de 10 anos de prisao se emprega para segregar cinco anos dois delinquentes, cuja taxa prevista de delinquencia e de 20 delitos por ano, a "economia" social e de 200 delitos; e assim, sucessivamente (SILVA SANCHEZ, 2013, p. 170-171).

Desaparece, no contexto da politica criminal atuarial, qualquer preocupacao com os fatores sociologicos ou ate mesmo patologicos que estao por detras da criminalidade. A logica que subjaz ao discurso atuarial e estritamente economica: diante da constatacao de que existem poucos delinquentes habituais de existencia inevitavel e natureza...

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