Planejamento tributário por meio de acordos de bitributação (treaty shopping) - 'caso prévost' e conceito de 'beneficiário efetivo

AutorRodrigo de Freitas
CargoMestrando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP. Advogado em São Paulo
Páginas259-281

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Introdução

No atual contexto econômico das relações internacionais, verifica-se que cada vez mais ganha importância a celebração de acordos de bitributação, uma vez que se torna importante o estabelecimento de regras claras para se eliminar ou reduzir os efeitos da bitributação internacional. Com efeito, ao celebrar esses acordos, os Estados contratantes abrem mão de parte de sua capacidade tributária ativa, repartindo suas competências tributárias sobre determinados rendimentos.

Ocorre que, para se valer dos benefícios tributários previstos nestes acordos, é possível que investidores (não inicialmente abrangidos nos acordos) promovam o planejamento tributário internacional de-nominado treaty shopping, por meio do qual tais investidores constituem uma interposta pessoa em um terceiro país, para fruir os benefícios tributários do acordo por ele celebrado.

Esta prática costuma ser combatida pelos Estados signatários dos acordos, uma vez que estende a aplicação de determinado benefício fiscal a um investidor não abrangido pelo acordo, por não ser residente de nenhum dos Estados contratantes.

No presente trabalho, pretende-se analisar a aplicabilidade das normas internas de controle ao planejamento tributário quando se fala em treaty shopping (medidas unilaterais), bem como analisar as normas de controle geralmente adotadas nos acordos de bitributação que seguem o

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modelo da OCDE (medidas bilaterais), por meio do instituto do "beneficiário efetivo" (beneficial owner).

Como pano de fundo do presente estudo, será analisado o "Caso Prévost" recentemente julgado pela Federal Court of Appeal do Canadá, no qual se discutiu o conceito de beneficiário efetivo e a aplicabilidade das normas internas sobre o controle do planejamento tributário.

1. Análise do "Caso Prévost" - Colocação do problema

Para a análise do planejamento tributário internacional por meio de acordos de bitributação, no que tange ao conceito de beneficiário efetivo, passa-se a analisar o "Caso Prévost" (Prévost Car Inc. v. Her Majesty The Queen - Docket: A-252-08; Citation: 2009 FCA 57), julgado pela Federal Court ofAppel no Canadá, em 26 de fevereiro de 2009.

No caso em tela, foi analisada uma operação de remessa de dividendos por uma subsidiária integral residente no Canadá (Prévost Car Inc. - "Prévost") para sua controladora residente na Holanda (Prévost Holding B. V. - "Holding"). A Holding, por sua vez, repassava a maior parte de seus rendimentos aos seus acio-nistas: (i) a Volvo Bussar Corporation ("Volvo"), residente na Suécia; e (ii) a Henlys Group plc ("Henlys"), residente na Inglaterra.

A alíquota interna do Canadá sobre dividendos distribuídos é de 25% (vinte e cinco por cento). Contudo, nos termos do acordo de bitributação celebrado entre o Canadá e a Holanda, os dividendos remetidos pelo residente de um Estado contratante (Estado da Fonte) ao residente do outro Estado Contratante, somente poderiam ser tributados no Estado da Fonte a no máximo 5% (cinco por cento).

Com feito, no presente caso, os dividendos distribuídos pela Prévost à Holding somente foram tributados pelo imposto de renda na fonte à alíquota de 5%. Confira-se o quadro ilustrativo abaixo:

[VER PDF ADJUNTO]

A regra de repartição de competên-cias no âmbito do acordo, que limita a tributação dos dividendos pelo Estado da

Fonte, como a aplicável ao caso em tela, obedece ao seguinte Modelo da OCDE:1

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  1. Os dividendos pagos por uma sociedade residente de um Estado Contratante a um residente do outro Estado Contratante poderão ser tributados nesse outro Estado.

  2. Entretanto, esses dividendos poderão ser igualmente tributados no Estado Contratante do qual a sociedade que paga os dividendos for residente, em conformidade com a legislação desse Estado, mas, se o beneficiário efetivo dos dividendos é residente do outro Estado Contratante, o imposto assim exigido não poderá exceder:

  1. 5 por cento do montante bruto dos dividendos, se o beneficiário efetivo for uma sociedade (que não uma sociedade de pessoas -partnership) que detenha, diretamente, no mínimo 25 por cento do capital da sociedade que paga os dividendos;

  2. 15 por cento do montante bruto dos dividendos em todos os demais casos.

Portanto, a limitação para a cobrança do imposto pelo Estado da Fonte (no caso 5%) somente será aplicável caso a sociedade que os receber seja o "beneficiário efetivo". No caso em tela, a Coroa (Her Ma-jesty the Queen) entendeu que não se aplicaria o acordo Canadá/Holanda, uma vez que a Holding residente na Holanda seria uma "empresa-canal" (conduit company) para o recebimento de rendimentos por suas controladoras Volvo (residente na Suécia) e Henlys (residente na Inglaterra). Ressalte-se que, não fosse essa Holding localizada na Holanda, a Volvo e Henlys não teriam direito aos benefícios do acordo Canadá/Holanda.

No caso em tela, a Coroa entendeu que o IR/Fonte incidente sobre os dividendos pagos deveria ter sido cobrado às alí-quotas de 15% para a Volvo (nos termos do Acordo Canadá/Suécia) e 10% para a Henlys (nos termos do Acordo Canadá/Inglaterra).

No julgamento proferido pela Federal Court of Appeal, foi analisado (i) o conceito de "beneficiário efetivo" para fins de aplicação do acordo de bitributa-ção, bem como (ii) qual é a importância das normas de direito interno para fins de controle do treaty shopping.

Antes de analisar os argumentos apresentados pelas autoridades canadenses, bem como os fundamentos da decisão proferida pela Corte canadense, passa-se a tecer algumas considerações sobre o conceito de treaty shopping.

2. Conceito de "treaty shopping"

O treaty shopping2 pode ser considerado como uma hipótese de planejamento tributário internacional, por meio da utilização de acordos de bitributação. Este planejamento tributário tem como característica a busca de benefícios concernentes a determinado acordo de bitributação, embora o investidor, beneficiário do rendimento, não seja residente dos Países signatários.3

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Com efeito, no desiderato de obter uma economia fiscal em uma determinada transferência internacional de rendimentos, o investidor cria uma estrutura societária/ negocial com a interposição de uma pessoa ou um estabelecimento permanente entre a fonte do rendimento e o beneficiário efeti-vo, de modo a fruir o benefício tributário decorrente da aplicação de um acordo de bitributação. Assim, este sujeito que em princípio não participaria dos benefícios de um determinado acordo de bitributação, utiliza uma interposta pessoa constituída apenas para se valer do acordo internacional que não seria a ele aplicável.4

Trata-se, portanto, de um problema de "qualificação subjetiva": qualificação de residentes para fins dos acordos de bitributação. O Prof. Heleno Tôrres ressalta a importância de se destacar a natureza subjetiva do problema de qualificação no treaty shopping. Isto para que se possa distingui-lo do rule shopping, que se refere a um problema de "qualificação ob-jetiva".5

No rule shopping, os sujeitos são efe-tivamente beneficiários do acordo de bitributação, mas promovem estratégias para mudar a qualificação de um rendimento e com isso obter uma vantagem fiscal com a aplicação do acordo de bitributação.

Cite-se, por exemplo, o caso de divi-dend stripping, no qual o sujeito aliena uma participação acionária antes da distribuição dos dividendos que seriam devi-dos. Com isso, muda-se a natureza do rendimento recebido para fins de aplicação de um acordo de bitributação (o rendimento que seria recebido a título de dividendos será recebido a título de ganho de capital).

Por outro lado, o planejamento tributário internacional realizado por meio do treaty shopping consiste na aplicação de um acordo de bitributação a determinada transferência internacional de rendimentos, na qual o beneficiário deste rendimento cria uma estrutura que permita a transferência da titularidade desses rendimentos a uma interposta pessoa, residente no Estado contratante.

Apenas a título ilustrativo, confiram-se os seguintes exemplos de estruturas construídas com a finalidade de treaty shopping citadas pelo Prof. Luís Eduardo Schoueri:6

(i) Constituição de "empresa-canal" ou "conduit company":

(a) uma sociedade controlada, residente no País B, paga dividendos para sua controladora residente no País A;

(b) o pagamento de dividendos para a controladora no País A está sujeito à tributação de 30% a título de IR/Fonte no País B (Estado da Fonte);

(c) nos termos do acordo de bitributação celebrado pelo País B com o País C, os dividendos remetidos aos residentes do País C estariam isentos de tributação;

(d) os dividendos recebidos no País C também não estão sujeitos à tributação pela legislação interna deste País;

(e) com efeito, a controladora no País A transfere a participação societária que possui para uma nova companhia subsidiária constituída no País C (NewCo - conduit company);

(f) o pagamento de dividendos para NewCo não são tributados no País B (Estado da Fonte) nos termos do acordo de bitributação celebrado com o País C;

(g) o lucro auferido pela NewCo no País C pode ser acumulado pela Controladora, reinvestido em outros países ou emprestados à própria controladora.

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[VER PDF ADJUNTO]

• Como se percebe do exemplo hipotético apresentado, caso a Empresa Controladora, residente no País A, recebesse os dividendos decorrentes do empréstimo feito à Empresa...

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