Acordo de leniência: a delação premiada como instrumento de combate ao cartel

AutorMarco Aurélio Gumieri Valério
Páginas188-201

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Introdução

A defesa da concorrência não é um fim em si mesmo, mas um meio pelo qual se busca criar uma economia eficiente, em que os consumidores disponham da maior variedade de produtos pelos preços menores possíveis. Em consequência, toda a coleti-vidade desfruta do bem-estar gerado. Uma economia forte e competitiva é condição essencial para o desenvolvimento sustentável em longo prazo.

Nesse ambiente, as empresas deparam-se com incentivos adequados para aumentar a produtividade e introduzir novos e melhores produtos e serviços no mercado.

Os cartéis são acordos ou práticas concertadas entre concorrentes. Envolvem parte substancial do mercado relevante para fixação de preços, divisão de mercados, estabelecimento de cotas ou restrição da produção e adoção de posturas pré-combi-nadas em licitação pública.

A forma clássica, por implicar em aumento de preço e limitação da oferta, de um lado, e nenhum benefício económico compensatório, de outro, é considerada a mais grave infração à ordem económica, atingindo níveis próximos dos de monopólio. Causa graves prejuízos aos consumidores, tornando produtos ou serviços inacessíveis a alguns e caros a outros.

Segundo Afonso Arinos de Mello Franco Neto, "a prova de ação de cartéis é feita mais frequentemente através de indícios de ação concertada do que pela comprovação de existência de acordos formais. Tal regra se aplica em todos os países que adotam o sistema de proteção antitruste, tendo em vista que dificilmente encontrar-se-á documento formal assinado entre os partícipes da conduta, afirmando as condições do ajuste".1

Fatores estruturais podem favorecer sua constituição, como o alto grau de con-

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centração do mercado, a existência de barreiras à entrada de novos competidores, a homogeneidade de produtos ou serviços, além de condições estáveis de custos e demandas.

Julgados do CADE apontam que o indício mais marcante de coordenação é o nivelamento de preços ou a adoção de tabelas estabelecidas em comum acordo ou exaradas por entidades de classe.2

Dois estudos demonstram o poder dessas organizações: o primeiro estimou que o montante de comércio afetado por 16 (dezesseis) cartéis de âmbito internacional excedeu os US$ 55 bilhões de dólares em 2001; e o segundo mostrou que o valor das importações feitas por países subdesenvolvidos de produtos potencialmente afetados por cartéis em 1997 chegou à casa dos US$ 51,1 bilhões de dólares, cifra quase 30% maior do que o total de ajuda oficial a todos os países subdesenvolvidos no mesmo ano.3

No Brasil, a despeito de não haver dados disponíveis, além dos cartéis internacionais, outros inúmeros com atividades apenas no mercado brasileiro agem de encontro às práticas de mercado e causam sérios e, muitas vezes, irreparáveis prejuízos à economia e aos consumidores, razão pela qual se faz imprescindível a atuação da autoridade antitruste a fim de coibir suas ações e penalizar seus integrantes.

Entre os novos instrumentos que se destacam no combate aos cartéis está o programa de leniência.

Por meio de um acordo, atenua-se a pena do participante que colaborar com a autoridade antitruste para condenar o cartel. Questões éticas e morais à parte, essa possibilidade aumenta as chances de se descobrir e de se punir um cartel, além de gerar instabilidade e suscitar desconfiança entre seus membros. Em consequência, aumentam os custos de monitoramento e a possibilidade de adoção de estratégias não cooperativas entre eles.4

O ponto 1 analisa o programa estadunidense, europeu e brasileiro de leniência, além de comparar as respectivas legislações. O ponto 2 mostra, com base em simulação da teoria dos jogos, as vantagens e desvantagens do programa de leniência e, por fim, o ponto 3 apresenta um estudo de caso do primeiro acordo de leniência celebrado no Brasil.

1. Programa de leniência
1. 1 Aspectos gerais

Segundo Gesner Oliveira e Grandino Rodas, o acordo de leniência é a "transação entre o Estado e o delator que, em troca de informações que viabilizem a instauração, a celeridade e a melhor fundamentação do processo, possibilita um abrandamento ou extinção da sanção em que este incorreria, em virtude de haver também participado na conduta ilegal denunciada".5

O temor causado pela imposição de penas severas a ilícitos concorrenciais favorece a adesão ao programa de leniência, pois o delator é premiado com a diminuição ou até mesmo a extinção de sua penalidade.

Vários países, independentemente de suas tradições jurídicas, se decommon law ou de civil law incorporaram a delação premiada e, mais precisamente, o programa de leniência em suas legislações antitruste.

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No Brasil, o acordo de leniência foi incorporado ao ordenamento jurídico por meio da Medida Provisória n. 2.055, de 11 de agosto de 2000,6 transformada posteriormente na Lei n. 10.149, de 21 de dezembro de 2000, que acrescentou à Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994, os arts. 35-B e 35-C.7 A regulamentação do instituto deu-se pelos arts. 28 a 36 da Portaria do Ministério da Justiça n. 849, de 22 de setembro de 2000, substituída pela Portaria n. 4, de 5 de janeiro de 2006.8

1. 2 Modelo estadunidense

Os Estados Unidos da América têm um programa de leniência (The USAmnesty Program) desde 1978.

Se uma empresa acordar com a autoridade antitruste daquele país, a Comissão Federal de Comércio (Federal Tmde Com-mission - FTC), e fosse a primeira do cartel a delatá-lo antes que se iniciasse uma investigação, ou que não houvesse possibilidade de uma investigação começar, a ela poderia ser concedida anistia (amnesty) das multas e de um processo criminal.

O maior problema do então programa de leniência estadunidense era a discricio-nariedade do Departamento de Justiça (Department of Justice — DoJ) na hora de conceder a anistia, assim, uma empresa interessada no programa não teria como prever as vantagens que poderia obter desesti-mulando sua adesão.

Em 1993 o programa de leniência foi revisto, destacando-se três modificações: (a) se uma empresa delatar o cartel antes do início de uma investigação e preencher todos os requisitos do programa, incluindo o de ser a primeira, a anistia é concedida automaticamente, afastando-se qualquer discricionariedade; (b) mesmo que a invés- ( tigação tenha sido iniciada, se a empresa preencher determinados requisitos, incluindo o de ser a primeira, ainda pode ser anis-tiada, todavia, submete-se à discricionariedade da autoridade antitruste; e (c) se uma empresa qualificar-se para a anistia automática, então todos os diretores, executivos e empregados que, juntamente, resolvem cooperar com as investigações tam-r bém serão agraciados.9

Essas mudanças aumentaram o nume-, ro de acordos de leniência assinados nos EUA. De 1978 até 1993 a média de celebração de acordos foi de aproximadamente uma por ano, enquanto que, a partir, de 1993 o número de celebrações subiu para uma por mês, sendo que, entre outubro dé 2002 a março de 2003, a quantidade de adesões ao programa de leniência pulou para três por mês. As multas coletadas graças a concessões de anistias entre 1997 e 2002 totalizaram US$ 1,5 bilhão e a maioria das investigações de alçada internacional começou ou avançou a partir da celebração do acordo de leniência. No regime anterior, o Departamento de Justiça (Department of Justice - DoJ) não conseguiu levar aos tribunais um único cartel internacional.10

O programa de leniência estadunidense tem ainda uma cláusula conhecida como de restituição (restituíion clause), referente à obrigação da empresa agraciada com a anistia indenizar monetariamente as pessoas lesadas pela atuação do cartel, especialmente os consumidores.11

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Por fim, deve-se destacar que, nos EUA, a prática de cartel constitui crime, sujeitando seus infratores, pessoas naturais, ao pagamento de multas e a penas de prisão.

1. 3 Modelo europeu

No ano de 1996, a União Europeia também adotou o seu programa de leniência (Leniency Notice).

Ao contrário do modelo estadunidense, que concede a anistia apenas à primeira empresa que trair o cartel e delatá-lo à autoridade antitruste, o europeu segue uma abordagem de escalonamento das multas: (a) se a empresa for a primeira a trair e a delatar o cartel antes de qualquer investigação, garantirá para si uma redução da multa na ordem de 75 a 100% do valor total; (b) se a empresa for a primeira a trair è a delatar o cartel, mas a investigação já estiver em curso, a redução da multa será em torno de 50 a 75% do valor total; e (c) se a empresa não for a primeira a trair e a delatar o cartel, mas colaborar com a investigação e não contestar as alegações de que é alvo, garantirá para si uma redução da multa que pode ser de 10% a 50% do valor total. A exata redução do valor das multas fica sob a discricionariedade da Comissão Europeia.12

Os resultados atingidos pelo programa de leniência europeu são satisfatórios. De 1996 a 2002, esse instituto foi responsável por produzir 16 casos em que a Comissão Europeia tomou uma decisão formal, alcançando multas que totalizaram € 2,240 bilhões.

Esse resultado pode ter sofrido influência do aumento dos recursos e da criação, em 1998, de uma unidade especializada no combate aos cartéis, além disso, as empresas podem ter dado conta de que a probabilidade de um cartel ser detectado aumentou, preferindo, então traí-lo e entregá-lo às autoridades.

Em 2002, o programa de leniência europeu sofreu modificações no intuito de diminuir a discricionariedade da Comissão...

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