Acordo de acionistas: panorama atual do instituto no direito brasileiro e propostas para a reforma de sua disciplina legal

AutorCelso Barbi Filho
Páginas30-55

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É com imenso pesar que, na homenagem póstuma representada pela publicação deste artigo, o Conselho de Redação da RDM compartilha com os leitores a notícia do falecimento do nosso colaborador, o prezado e jovem colega Celso Barbi Filho, ocorrido em 24 de maio deste ano, vítima de trágico acidente aéreo.

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG, na turma de 1988, agraciado com a medalha "Barão do Rio Branco", como o aluno de maior destaque, veio a obter os títulos de Mestre (1993) e de Doutor em Direito Comercial (2000) pela Faculdade de Direito da UFMG, tendo exercido a função de professor daquela disciplina em algumas faculdades de direito de Belo Horizonte (MG). Recentemente chegou ao cargo de Professor-Adjunto Doutor da Faculdade de Direito da UFMG. Exerceu a função de coordenador de Direito Empresarial e de professor da Escola Superior de Advocacia da capital mineira.

Além da militância como advogado, exerceu com raro brilhantismo, no serviço público, os cargos de Procurador da Câmara Municipal de Belo Horizonte e de Procurador do Estado de Minas Gerais.

Deixou inúmeros trabalhos jurídicos de grande valor em revistas especializadas - entre as quais a RDM -, tendo feito grandes amigos no Instituto "Tullio Ascarelli", que o admiravam pelo seu conhecimento e pela imensa simpatia e afabilidade que sempre o distinguiram, decorrente de personalidade bem formada no seio da família em que despontou seu pai, o saudoso advogado e sempre mestre Celso Agrícola Barbi. A sua mãe, D. Maria Carmen e aos seus irmãos, ficam aqui registrados os sentimentos dos colegas do Celso.

Em suas obras destacam-se os livros Acordo de Acionistas e A Dissolução Parcial da Sociedade por Quotas de Responsabilidade Limitada, que correspondem, respectivamente, à sua dissertação de mestrado e à tese de doutoramento, esta no prelo, conduzidas sob a orientação segura do emérito comer-cialista das Minas Gerais, Professor Osmar Brina Corrêa Lima.

Mal tendo completado trinta e cinco anos, o desaparecimento de Celso Barbi Filho deixa um enorme vazio no cenário jurídico nacional, sentido por tantos quantos puderam enriquecer-se com tudo aquilo que eleja havia feito, como, muito mais, por tudo quanto deixou de fazer.

São Paulo, junho de 2001. Mauro Rodrigues Penteado e Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

(Pelo Comité de Redação da RDM)

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1. Introdução

O momento económico atualmente vivido no Brasil e no mundo, com,o fenómeno da tão discutida globalização, vem impulsionando uma série de processos socie tários que atuam diretamente na realidade empresarial, como as privatizações, fusões, aquisições e incorporações. Isso tem pressionado o Legislativo Brasileiro a promover ajustes na disciplina legal das sociedades anónimas, modelo jurídico teorica- mente destinado à grande empresa privada nacional, de modo a adequá-la a essa nova-realidade.

Assim, a vigente Lei da S/A, de n. 6.404, de 15.12.1976, já sofreu uma primeira reforma, promovida pela Lei 9.457, de 15.12:1997, na qual relevantes alterações foram efetivadas no regime jurídico das companhias.

Mas o propósito e a necessidade de se adequar a legislação societária ao contexto empresarial presente não se limitam às modificações efetuadas pela Lei 9.457, de 1997, chamada de "pequena reforma".1 Desse modo, para a próxima e iminente mudança na Lei das S/A um relevante instituto talvez merecesse ser lembrado: o acordo de acionistas.

A eventual conclusão sobre a conveniência de alterações na vigente disciplina legal do acordo de acionistas exige que se faça um panorama geral do instituto em nosso Direito, a fim de se identificar quais seriam essas alterações e porque deveriam ser feitas.

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É a que me proponho neste breve estudo.

2. Noções gerais

A ideia que bem explica a concepção das sociedades anónimas é a de uma estrutura societária capaz de, simultaneamente, concentrar o capital e pulverizar sua titulari-dade. Aqueles que querem desenvolver a atividade empresarial (empreendedores) verificam que não podem prescindir dos que se propõem a investir nessa atividade (investidores), fornecendo recursos necessários à sua viabilização. Ao mesmo tempo, não convém aos empreendedores partilhar a administração com os investidores, sob pena de se subtrair da gestão negociai a unidade e a sintonia a ela indispensáveis.

A sociedade anónima é, pois, o modelo jurídico para a grande empresa privada, que pode viabilizar-se economicamente conciliando, em um instituto jurídico próprio, interesses convergentes, mas distintos, dos acionistas que querem realizar o empreendimento, gerindo-o, e daqueles que apenas desejam investir no negócio, dele auferindo rendimentos, sem se envolver em sua administração.

Com isso, o direcionamento dos múltiplos e diversificados interesses presentes dentro da sociedade anónima possui dois vértices. O primeiro é aquele para o qual todos convergem, qual seja, a affectio socie-tatis, própria justificativa existencial da corporação societária. Já, o segundo são as pretensões e interesses individuais de cada acionista, que, se não comuns a todo o corpo acionário, podem sê-lo em relação a determinado grupo de sócios.

Para a regulamentação e disciplina jurídica desses interesses comuns a determinado grupo de acionistas desenvolveram-se na prática societária ajustes parassociais entre os integrantes de grupos com interesses comuns. Na medida em que sua incidência aumentou, doutrina, jurisprudência e, posteriormente, a legislação tiveram de reconhecer sua existência e os reflexos jurídicos desta.

Assim surgiram os chamados acordos de acionistas, que hoje têm previsão e disciplina próprias no direito positivo brasileiro, pelo art. 118 da Lei 6.404, de 1976.

Não obstante a origem do atual modelo das sociedades anónimas remonte ao período colonial, os acordos de acionistas, em face do refinamento teórico de sua concepção, constituem instituto em certa medida recente. A doutrina italiana registra menções à existência dessa figura no final do século passado e na primeira década deste século.

O acordo de acionistas é essencialmente um contrato, cuja origem e disciplina fundamental estão no direito das obrigações. Suas particularidades decorrem de que ele disciplina direitos e relações dos acionistas de uma mesma companhia entre si mas, ao mesmo tempo, não se confunde com os atos constitutivos da sociedade, sendo, por isso, considerado "parassocial".

Daí por que o acordo de acionistas pode ser conceituado como o contrato entre determinados acionistas de uma mesma companhia, distinto de seus atos constitutivos, e que tem por objeto o exercício dos direitos decorrentes da titularidade de suas ações, especialmente no que tange ao voto e à compra e venda dessas ações.

3. Situação no Direito Estrangeiro

Conforme dito, uma das primeiras notícias doutrinárias que se têm dos acordos de acionistas vem do Direito Italiano. Em artigo de 1904 famoso jurista daquele país anotava a existência de pacto entre membros de uma sociedade comercial de Milão destinado a disciplinar seu procedimento para a hipótese de deliberação sobre pedido de concordata.2

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A tendência inicial no Direito Europeu Continental era pela invalidade desses ajustes, mas tal conclusão referia-se basicamente aos acordos sobre o voto, não se encontrando notícia de restrições à existência ou ilicitude dos contratos sobre compra e venda de ações e preferência para adquiri-las, também chamados de bloqueio.

Além disso, a figura que posteriormente desenvolveu-se na Europa não era propriamente contratual, mas de autêntica corporação ou entidade, denominada sindicato acionário, coordenada por um síndico que representava o grupo nas assembléias-gerais.

Na Itália o entendimento era pela ilegalidade do acordo de voto, à luz do Código de Comércio de 1882. Após isso houve reversão dessa tendência, com destaque para o papel que tiveram nesse processo os estudos de Tullio Ascarelli.3 O Código Civil de 1942 propositadamente omitiu-se sobre o instituto, mesmo na reforma de 1974 sobre as sociedades anónimas. Assim, ficou a critério dos juizes a aferição de validade dos pactos pelo direito obrigacional, tendo em vista o objeto ajustado. E a jurisprudência vem admitindo as convenções de acionistas, elaborando os critérios para se aceitar sua legitimidade.

No Direito Francês encontra-se referência sobre os acordos exclusivamente relativos à compra e venda de ações, chamados sindicai de blocage, em relação aos quais não se opunha restrição. Já, os acordos de voto eram inicialmente repudiados pela própria legislação, conforme disposto em um decreto-lei de 1937. Com o passar do tempo a jurisprudência amainou o rigor dessa rejeição, sendo as convenções de acionistas hoje admitidas, desde que seu objeto não fira princípios básicos, como a inalienabilidade do voto ou a sujeição das minorias. A Lei das Sociedades Comerciais de 1966 foi omissa a respeito, sendo que, mais recentemente, uma lei de 1985 reconheceu expressamente a validade das convenções de voto nos grupos de sociedades. Não obstante, há notícias de alguns precedentes que denunciam vacilações de doutrina e jurisprudência sobre a admissibilidade de determinados conteúdos para o acordo de voto.

No Direito Alemão nem a Lei das Sociedades de 1937 e nem a atual de 1965 prevêem expressamente os acordos de acionistas. Todavia, este último diploma reputa...

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