Acolhimento institucional: familias de origem e a reinstitucionalizacao/Institutional shelter: families of origin and re-institutionalization.

Autorde Paiva, Ilana Lemos

Introducao

As instituicoes de atendimento a populacao infantojuvenil no Brasil sao historicamente caracterizadas pela ausencia de acoes efetivas de cuidado para com as familias visando a protecao ou prevencao do abandono. O Estatuto da Crianca e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990) surge como uma importante ferramenta para orientar o novo paradigma de atendimento as criancas e aos adolescentes, que deve ocorrer com absoluta prioridade e lhes garante o direito: a vida e a saude, a liberdade, ao respeito e a dignidade, a convivencia familiar e comunitaria, a educacao, a cultura, ao esporte e ao lazer, o direito a profissionalizacao e a protecao no trabalho. Alem disso, coloca o Estado como garantidor desses direitos, uma vez que os pais nao podem ser responsabilizados caso descumpram algum desses por falta de recursos materiais. Por outro lado, devem ser incluidos em programas oficiais de acompanhamento a familia, de modo que a separacao das criancas e adolescentes dos seus lares por medida de protecao, em Servico de Acolhimento, somente ocorra como ultimo recurso e em carater provisorio.

Assim, o esforco para reconstruir o vinculo da crianca e do adolescente com a sua familia deve prevalecer em detrimento da logica das internacoes. Quando acolhidos em instituicao, estas devem primar pelo atendimento de forma individualizada e em pequenos grupos, para atenuar o afastamento do convivio familiar e promover a autonomia dos acolhidos. Na impossibilidade da reintegracao familiar, e incentivada a integracao em familia substituta (BRASIL, 1990). Os Servicos de Acolhimento Institucional (SAICAs) podem se dividir em familia acolhedora e acolhimento institucional, que sao colocados como alternativas as instituicoes totais e estao entre as nove medidas de protecao, elencadas no ECA, por ameaca ou violacao dos direitos da crianca ou adolescente.

Nos dois casos, ha um gestor do servico, que se equipara ao guardiao para todos os efeitos de direito. As Orientacoes Tecnicas indicam que a equipe profissional minima dos programas de Acolhimento Institucional deve estar composta por coordenador, equipe tecnica, educador/cuidador residente e auxiliar de educador/cuidador, e e regulamentada pela Norma Operacional Basica de Recursos Humanos do Sistema Unico de Assistencia Social (SUAS) (Resolucao n. 130, de 15 de julho de 2005). No documento tambem ha referencias quanto ao perfil, quantidade e principais atividades desenvolvidas. A equipe tecnica, por sua vez, deve ser multidisciplinar composta minimamente por assistente social e psicologo.

As formas de acesso aos servicos sao especificadas pela Lei n. 12.010, de 2009, que demanda a determinacao do Poder Judiciario com expedicao da Guia de Acolhimento na qual devem estar especificadas sobre a crianca ou adolescente: sua identificacao e a qualificacao completa de seus pais ou responsavel, quando conhecidos, bem como o endereco de residencia dos mesmos; com pontos de referencia; nomes de parentes ou de terceiros interessados em te-los sob sua guarda e os motivos da retirada ou da nao reintegracao ao convivio familiar (artigo 101 [seccion]3). Somente em casos urgentes, o Conselho Tutelar pode proceder a aplicacao da medida, contanto que em um prazo de ate 24 horas o Poder Judiciario seja comunicado.

Tais mudancas na aplicacao da medida protetiva de acolhimento almejam impedir que a crianca ou o adolescente sejam acolhidos indiscriminadamente, ou que, quando acolhidos, sejam vitimas de acoes de destituicao do poder familiar sem que acoes efetivas de superacao da situacao de violencia familiar estejam presentes. Para tanto, ainda e solicitada a elaboracao de um Plano Individual de Atendimento (PIA), visando a reintegracao familiar pela equipe tecnica do servico que deve incluir: os resultados da avaliacao interdisciplinar; os compromissos assumidos pelos pais ou responsavel; e a previsao das atividades a serem desenvolvidas com a crianca ou com o adolescente acolhido e seus pais ou responsavel, com vistas a reintegracao familiar ou, caso seja esta vedada por expressa e fundamentada determinacao judicial, e necessario que tomem as providencias para sua colocacao em familia substituta, sob direta supervisao da autoridade judiciaria (artigo 101 [seccion]5 e [seccion]6).

O PIA deve ser reavaliado a cada seis meses com o objetivo de que a situacao que levou a aplicacao da medida protetiva seja superada e nao se estenda por mais de 18 meses. Tais objetivos, para serem alcancados, necessitam da articulacao do Servico de Acolhimento com o Sistema de Garantia de Direitos de Criancas e Adolescentes (SGDCA), tal como preconizam a Politica Nacional de Assistencia Social (BRASIL, 2004) e as Orientacoes Tecnicas para os Servicos de Acolhimento de criancas e adolescentes (BRASIL, 2009).

O direito a convivencia familiar e comunitaria e um dos pilares do ECA e tem o objetivo de garantir o desenvolvimento pleno do individuo. Entretanto, seculos de culpabilizacao e criminalizacao das familias pobres sao desafios a serem superados, assim como, o carater autossuficiente das instituicoes de atendimento a criancas e adolescentes. Sobre isto, Princeswal (2013, p. 25) afirma que a ideia da incapacidade das familias pobres, gerava uma representacao distorcida dos pais, em que "as maes foram consideradas como prostitutas e os pais como alcoolatras--ambos viciosos, avessos ao trabalho, incapazes de exercer boa influencia moral sobre os filhos e, portanto, culpados". As criancas e os adolescentes, por sua vez, eram submetidos a acoes institucionais que, pelo temor aos "maleficios" do contato com as familias de origem, reduziam ou nao incentivavam o contato com as mesmas, fator reforcado, inclusive, pelo isolamento geografico das instituicoes e carencias socioeconomicas dos pais (ARANTES, 1993; PRINCESWAL, 2013). Ocorria uma violacao nao so do direito a convivencia familiar e comunitaria, mas tambem do direito a propria historia pessoal. Tais situacoes, como veremos adiante, ainda nao foram totalmente superadas.

A literatura aponta, ainda, a solicitacao da medida protetiva de acolhimento de forma apressada pelos conselheiros tutelares, especialmente durante os finais de semana, sem a busca de alternativas, inclusive, sem considerar a familia de origem ou a extensa. Para este quadro contribui a precariedade de registros sobre a historia destas familias e criancas, de forma que, impossibilita planejar, avaliar e aprimorar as acoes empreendidas para superar os motivos que levaram a aplicacao da medida protetiva. Vale salientar que, na vivencia por muito tempo nos servicos de acolhimento, os lacos afetivos com seus pais tendem a se tornar mais frageis e as referencias vao desaparecendo: "Uma vez rompidos os elos familiares e comunitarios, as alternativas se tornam cada vez mais restritas" (PRINCESWAL, 2013, p. 34).

Os levantamentos nacionais mais recentes sobre os motivos do acolhimento de criancas e adolescentes ainda apontam, majoritariamente, para a carencia de recursos materiais da familia ou situacoes correlacionadas a ela, a saber, o uso de alcool e outras drogas pelos pais ou responsaveis, abandono e a negligencia (CONSELHO NACIONAL DO MINISTERIO PUBLICO, 2013; CONSTANTINO, ASSIS, MESQUITA, 2013; SILVA, 2004). Nota-se que tal dado e diferente do imaginario social que associa o acolhimento ao abuso sexual, violencia fisica e ate mesmo a criminalidade dos acolhidos. No campo da infancia e juventude, a opcao a miseria parece continuar sendo a institucionalizacao em servicos que carecem da estrutura minima necessaria para o atendimento e que coexistem com a precaria articulacao do SGDCA.

O atendimento ainda e, assim, contraditorio, ja que as situacoes de vulnerabilidade das suas familias, em geral, motivadoras do acolhimento nao sao superadas. Este contexto facilita a ocorrencia de processos de reinstitucionalizacao de criancas ou adolescentes, que se referem a casos em que, por diferentes motivos, ocorre o fracasso na reinsercao familiar, seguida de nova institucionalizacao do acolhido. Siqueira et al. (2011) apontam que, ao contrario de outros paises, ainda sao raros estudos sobre a reinsercao familiar e a reinstitucionalizacao no Brasil. Sobre isto, concorda-se com Moreira et al. (2013, p. 71) que a ausencia de dados impacta diretamente nas politicas publicas, pois a carencia de registros da historia da familia e do acolhimento, termina por provocar "(...) acoes descontinuas, superpostas e muitas vezes desnecessarias". Em outras palavras, impossibilita planejar, avaliar e aprimorar as acoes empreendidas para superar os motivos que levaram a aplicacao da medida protetiva. A reinstitucionalizacao e tambem relacionada a processos de reinsercao familiar malsucedidos (SIQUEIRA et al., 2011) ou multiplas medidas de acolhimento da crianca ou adolescente (FUKUDA et al., 2013).

O presente estudo teve como objetivo caracterizar a trajetoria de reinstitucionalizacao de criancas e adolescentes em Servicos de Acolhimento, na cidade de Natal/RN, apos tentativa de reintegracao a familia de origem. O estudo utilizou como marco temporal a promulgacao da Lei n. 12.010, de 2009, tambem conhecida como Lei da Convivencia Familiar e Comunitaria. Espera-se, com esse estudo, ampliar o debate sobre os avancos e desafios que ainda persistem no que se refere a protecao de criancas e adolescentes atraves da medida de acolhimento institucional.

Metodo

Para a realizacao deste estudo foi conduzida uma pesquisa documental como procedimento de coleta de dados. As 1a e 2a Varas da Infancia e Juventude da cidade de Natal, no Rio Grande do Norte (RN), consentiram com o acesso as Guias de Acolhimento e Desligamento das criancas e adolescentes, entre os anos de 2010 e 2017. As Guias sao disponibilizadas no Cadastro Nacional de Criancas e Adolescentes Acolhidos (CNCA) do Conselho Nacional de Justica (CNJ) e devem ser geradas por profissionais dos respectivos juizos por ocasiao da aplicacao da medida protetiva de acolhimento, transferencia...

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