O acolhimento familiar no Direito Muçulmano

AutorHidemberg Alves da Frota
CargoAdvogado
Páginas23-29

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1 Introdução

Considerada a religião que mais cresce no globo, o islamismo possui entendimento próprio sobre a adoção, bastante divergente da compreensão abraçada pelo Direito e pela cultura do Ocidente, porquanto o Islã enxerga nela instituto detrimentoso aos interesses e direitos da criança adotiva e das suas famílias natural e adotiva.

Em substituição à prática da adoção, o Direito muçulmano defende a aplicação do instituto da kafala, forma de acolhimento familiar que propicia assistência material e espiritual à criança sem esta perder o vínculo com os pais biológicos e sua herança cultural.

Este artigo esquadrinha os predicamentos essenciais do kafala delineados pelo Direito muçulmano, esboça as modalidades de acolhimento familiar autorizadas pelo Islã e colhe, da experiência jurídico-social brasileira e estrangeira, os parâmetros para compatibilizar o aludido instituto islâmico com as balizas e a essência do Direito de Família ocidental, máxime a ordem familiarista brasileira.

2 Os Fundamentos do Modelo Muçulmano de Acolhimento Familiar

Segundo Cambiotti (2005), o Profeta Maomé "proibiu os pactos de sangue entre pessoas que não fossem da mesma família e em geral não era favorável ao estabelecimento de ditos laços por meios contratuais ou judiciais". O Alcorão (33: 4-5) é taxativo:

4 Deus não pôs no peito do homem dois corações; tampouco fez com que vossas esposas, as quais repudiais através do zihar, fossem para vós como vossas mães, nem tampouco que vossos filhos adotivos fossem como vossos próprios filhos. Estas são vãs palavras das vossas bocas. E Deus disse a verdade, e Ele mostra a (verdadeira) senda.

5 Dai-lhes os sobrenomes dos seus verdadeiros pais; isto é mais eqüitativo ante Deus. Contudo, se não lhes conheceis os pais, sabei que eles são vossos irmãos, na religião, e vossos tutelados. Porém, se vos equivocardes, não sereis recriminados; (o que conta) são as intenções de vossos corações; sabei que Deus é Indulgente, Misericordiosíssimo. (ALCORÃO, 2005)

Em razão disso, no Direito muçulmano não existe a adoção como se conhece no Ocidente, mas há o acolhimento familiar nominado kafala (UNICEF, 1998, p. 3). O acolhido não é filho do casal acolhedor, mas tão-somente seu irmão na fé muçulmana (MIRZA, 2005; GHAFFAR, 2005).

No kafala se estabelece uma relação pela qual o casal voluntariamente acolhe em seu lar criança com quem não possui laços biológicos de filiação, que será por eles assistida com o carinho e a atenção que se dedica a um filho, sem, no entanto, sê-lo.

Com efeito, define-se o kafala como "acolhimento legal, cuja finalidade é proteger o menor, não se criando vínculos de filiação entre o menor e as pessoas a quem ele é entregue" (RODRÍGUEZ VÁZQUEZ, 2005).

Por não ser considerado filho do casal acolhedor, falece ao acolhido direito ao nome da família acolhedora (CAMBIOTTI, 2005) e direito à legítima, ainda que se trate de órfão (ALI, 2005) ou abandonado (FAHMY, 2005). Contudo, autoriza-se a doação do acolhedor ao acolhido e o direito deste à parte disponível da herança daquele (ALI, 2005), equivalente a um terço no Direito muçulmano (USAMI, 2005).

Na visão do Islã, trata-se de ato virtuoso, caridade de magna estatura, agasalhar em seu lar a criança alijada do ambiente familiar, haja vista o Profeta Maomé, órfão de pai e mãe, ter sido criado, primeiro, pelo avô Abdul Muttalib e, depois, pelo tio Abu Talib. Estatui o Alcorão (2:220):

220 Nesta vida e na outra, consultar-te-ão a respeito

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dos órfãos; dize-lhes: Fazer-lhes o bem é o melhor. E se misturardes vossos assuntos com os deles, serão vossos irmãos; sabei que Deus distingue o corrupto do benfeitor. Porém, se Deus quisesse, tervos-ia afligido, porque é Poderoso, Prudentíssimo. (ALCORÃO, 2005)

Importa frisar: aos olhos do Direito muçulmano, registrar-se como sua a prole biológica de outrem significaria falsear a ordem social (GHAFFAR, 2005).

A adoção à moda ocidental cortaria os laços do adotado com sua família biológica, em prejuízo de sua identidade cultural (AHMAD, 2005). Na sucessão do pai adotivo, acarretaria ciúmes entre os filhos biológicos e o adotado, assim como maltrato ao direito dos descendentes biológicos e da esposa à legítima, que teriam de compartilhar com o adotado (GHAFFAR, 2005).

A adoção preconizada pelo Direito ocidental se mostraria inócua, porquanto consubstanciaria ficção jurídica inapta, quer para alterar a realidade fática, quer para modificar a constituição genética do adotado e dos pais adotivos ou, ainda, para fazer aquele compartilhar os genes destes, suas características físicas, psíquicas e mentais, que só poderiam ser herdadas por filhos biológicos (GHAFFAR, 2005).

Mais do que uma incongruência com o mundo real, a adoção ao estilo ocidental consistiria em ultraje ao princípio da legitimidade, direito inalienável do muçulmano "ter um pai e apenas um pai" (GHAFFAR, 2005), corolário do dever marital de fidelidade e monogamia, normas de substrato moral a evitarem dúvidas e ambigüidades no corpo social relacionadas à paternidade e à filiação. Almejando salvaguardar a linhagem, o Direito muçulmano proíbe a inseminação artificial se o sêmen não for do marido (GHAFFAR, 2005) e bane métodos artificiais de concepção como a doação de óvulos e o uso de mães de aluguel e de bancos de leite humano (FAHMY, 2005).

Sendo o direito inalienável à vida o direito fundamental de maior relevo da criança islâmica, afigura-se como o segundo mais importante direito do infante muçulmano o de saber a identidade de seus pais biológicos. Desconhecida a sua filiação (inclusive o nome da família biológica), deve o acolhido ser designado na comunidade por "irmão na fé" ou "cliente" (no sentido de estar sob o amparo de um protetor), ou seja, mawali (FAHMY, 2005; VAN HEERDEN, 1998, p. 83; ALLEN, 2005).

Em verdade, no kafala o papel desempenhado pelo casal acolhedor menos se parece com o de pais adotivos e mais se assemelha com o mister de típicos tutores (AHMAD, 2005; SYED, 1998, p. 373), com a diferença de que tal "tutela" cria uma causa impeditiva de casamento (dirimente absoluto) entre a "tutora" e o "tutelado" e não mera causa suspensiva, como ocorre no Direito de Família pátrio (art. 1.523, IV, do CCB/02).

Possibilita-se ao "tutelado" casar com a filha dos "tutores" (RIZVI, 2005) e ao acolhedor se permite casar com a ex-esposa do acolhido (AHMAD, 2005; GHAFFAR, 2005). Por outro lado, a menina acolhida deve vestir o hijab (cachecol) na presença do acolhedor e dos filhos deste; a acolhedora e suas filhas devem vesti-lo na presença do menino acolhido (RIZVI, 2005), o qual não pode estar sozinho em mesmo compartimento com nenhuma das mulheres da família acolhedora (SHABAZZ, 2005).

No Direito muçulmano, o acolhimento familiar só gera relação jurídica semifamilial quando a criança acolhida, abaixo de dois anos de idade, é amamentada diretamente pela acolhedora, pelo período mínimo de um dia e uma noite. Nesse caso, evidencia-se desnecessário o hijab e se veda o casamento do acolhido com a filha da acolhedora. No entanto, permanece o acolhido sem direito à legítima do acolhedor (RIZVI, 2005). No Egito, os orfanatos têm estimulado o aleitamento por mães inférteis interessadas em acolher, junto com seu marido, o órfão escolhido (ARAB WOMEN CONNECT, 2005).

3 As Modalidades Muçulmanas de Acolhimento Familiar

O Direito muçulmano classifica as espécies de acolhimento familiar em fechado e aberto, desencorajando o primeiro e incentivando o segundo (ABDULLAH, 2005).

No acolhimento familiar fechado, o acolhido perde contato com a família natural e só a retoma se revogado o acolhimento (v.g., pais biológicos, após tratamento terapêutico, abandonam, em definitivo, o consumo de tóxicos e restabelecem a higidez mental suficiente para assistir seu filho e com ele conviver em ambiência familiar, sob o mesmo teto) (ABDULLAH, 2005).

Já no acolhimento familiar aberto, o acolhido não só mantém a interação com seus familiares biológicos, como também pode, atingida determinada idade, optar por continuar no lar acolhedor ou retornar à casa dos pais naturais, a compartilharem com os acolhedores a guarda do acolhido. A vantagem...

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