Acidente do trabalho doméstico: repercussões jurídicas à luz da tutela constitucional introduzida com a EC n. 72/2013

AutorFernando Maciel
CargoProcurador Federal em Brasília/DF, Mestre em Prevenção e Proteção de Riscos Laborais pela Universidade de Alcalá de Henares (Espanha)
Páginas93-113

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1. Introdução

Por ocasião da 100ª Conferência Inter-nacional do Trabalho - CTI, realizada em junho de 2011 na cidade de Genebra (Suíça), a Organização Internacional do Trabalho - OIT aprovou a Convenção n. 189 intitulada "Convenção sobre o Trabalho Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos", juntamente com a Recomendação n. 201 que apresentou idêntico título1.

A escolha dessa temática resultou da constatação, em âmbito mundial, de que os trabalhadores domésticos estariam sendo vítimas frequentes de violação dos direitos fundamentais do trabalho, notadamente pela ausência de uma proteção adequada nas legislações nacionais que disciplinam a matéria. Tal circunstância motivou a OIT a colocar em pauta a discussão de medidas tendentes a promover a alteração desse indesejável cenário, visando, assim, contribuir para o estabelecimento de condições decentes de labor para essa categoria de trabalhadores.

Para a OIT, a expressão "trabalho decente" sintetiza a sua missão histórica de promover oportunidades para que homens e mulheres possam ter um trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas, sendo considerados fundamentais, para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável.

Em que pesem a amplitude e relevância das questões abordadas no âmbito das referidas Convenção n. 189 e Recomendação n. 201 da OIT, no presente artigo, pretendemos nos restringir a uma temática bastante específica, consubstanciada na tutela jurídica destinada aos trabalhadores domésticos em matéria de saúde e segurança no trabalho, as quais se encontram disciplinadas nos arts. 13 e 14 da Convenção, bem como no item 19 da Recomendação, in verbis:

Convenção OIT n. 189:

Art. 13

Todo trabalhador doméstico tem direito a um ambiente de trabalho seguro e saudável. Todo Membro, em conformidade com a legislação e a prática nacionais, deverá adotar medidas ei cazes, com devida atenção às características específicas do trabalho doméstico, a fim de assegurar a segurança e saúde no trabalho dos trabalhadores domésticos.

As medidas referidas no parágrafo anterior poderão ser aplicadas progressivamente, em consulta com as organizações mais representativas de empregadores e trabalhadores, assim como com as organizações representativas dos trabalhadores domésticos e com as organizações representativas dos empregadores dos trabalhadores domésticos, quando tais organizações existam.

Art. 14

1. Todo Membro deverá adotar as medidas apropriadas, com a devida atenção às características específicas do trabalho doméstico e atuando em conformidade com a legislação e a prática nacionais, para assegurar que os trabalhadores domésticos se benei ciem de condições não menos favoráveis que aquelas aplicadas aos trabalhadores em geral, com relação à proteção da seguridade social, inclusive no que diz respeito à maternidade.

2. As medidas referidas no parágrafo anterior poderão ser aplicadas progressivamente, em consulta com as organizações mais representativas de empregadores e trabalhadores, assim como com as organizações representativas dos trabalhadores domésticos e com as organizações representativas dos empregadores dos trabalhadores domésticos, quando tais organizações existam. Recomendação OIT n. 201:

19. Os Membros, em consulta com as organizações mais representativas de empregadores

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e de trabalhadores, assim como com organizações representativas dos trabalhadores domésticos e com organizações representativas dos empregadores dos trabalhadores domésticos, quando tais organizações existam, deveriam adotar medidas com a finalidade de, por exemplo:

(a) proteger os trabalhadores domésticos, eliminando ou reduzindo ao mínimo, na medida do que é razoavelmente factível, os perigos e riscos relacionados com o trabalho, com vistas a prevenir acidentes, enfermidades e mortes e promover a segurança e saúde no trabalho nos domicílios que constituam locais de trabalho;

(b) estabelecer um sistema de inspeção sui ciente e apropriado, em conformidade com o disposto no art. 17 da Convenção, e sanções adequadas em caso de infração da legislação do trabalho em matéria de segurança e saúde no trabalho;

(c) instaurar procedimentos para a coleta e publicação de estatísticas sobre enfermidades e acidentes proi ssionais relativos ao trabalho doméstico, assim como outras estatísticas que se considerem úteis para a prevenção dos riscos e acidentes no contexto da segurança e saúde no trabalho;

(d) prestar assistência em matéria de segurança e saúde no trabalho, inclusive sobre aspectos ergonômicos e equipamentos de proteção; e

(e) desenvolver programas de formação e difundir orientações sobre os requisitos em matéria de segurança e saúde no trabalho que sejam específicas para o trabalho doméstico.

A restrição temática ora desenvolvida se justifica pois, conforme estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

- IPEA2, no ano de 2011, as especificidades do trabalho doméstico no Brasil apontam para um grande contingente de pessoas para as quais não estão garantidas todas as garantias trabalhistas e todos os direitos previdenciários, destacando-se, neste último aspecto, a ausência de cobertura para os acidentes de trabalho.

Além disso, referida categoria de trabalhadores sofre com as dificuldades relacionadas a uma efetiva fiscalização no âmbito dos domicílios e, embora formem agrupamentos bastante heterogêneos, na média, têm poucos anos de escolaridade formal e não têm muita informação sobre os diversos fatores de risco relacionados ao exercício de sua atividade.

Com efeito, apesar de a Convenção OIT n. 189 já se encontrar em vigor desde setembro de 20133, o Brasil ainda não procedeu à ratificação do seu texto mediante o formal procedimento de incorporação dos tratados internacionais, de modo que ainda não se encontra vigente no território nacional.

Não obstante isso, alterações introduzidas na Constituição Federal de 1988 por meio da Emenda Constitucional n. 72/2013 sinalizam a preocupação do governo brasileiro em aprimorar a tutela jurídica dos trabalhadores domésticos, de modo especial no que se refere à proteção de sua saúde e integridade física em seu ambiente de trabalho, o que passaremos a analisar nos tópicos que seguem.

2. Tutela constitucional do empregado doméstico antes da EC n 72/2013

Até o advento da Emenda Constitucional n. 72/2013, promulgada em 2 de abril de 2013, vigorava a antiga redação do parágrafo único do art. da CF/1988, o qual preconizava que:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

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(...)

Parágrafo único. São assegurados à categoria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI, VIII, XV, XVII, XVIII, XIX, XXI, e XXIV, bem como a sua integração à previdência social.

Com efeito, a partir desse dispositivo poderíamos concluir que, aos empregados domésticos, eram assegurados os seguintes direitos: salário mínimo (IV); irredutibilidade do salário (VI); décimo terceiro salário (VIII); repouso semanal remunerado (XV); férias anuais (XVII); licença à gestante (XVIII); licença-paternidade (XIX); aviso-prévio (XXI); aposentadoria (XXIV); e integração à Previdência Social.

A partir desse panorama constitucional, a Lei n. 8.213/91 (Lei de Benefícios da Previdência Social - LBPS) assegurava aos domésticos o direito à seguinte cobertura previdenciária: aposentadoria por invalidez (B32); aposentadoria por idade (B41); aposentadoria por tempo de contribuição (B42); auxílio-doença (B31); e salário-maternidade (B80).

Por exclusão, os empregados domésticos NÃO possuíam direito aos benefícios de natureza acidentária, quais sejam: auxílio-doença por acidente do trabalho (B91); auxílio-acidente por acidente do trabalho (B94); aposentadoria por invalidez por acidente do trabalho (B92); bem como a aposentadoria especial (B46), a qual é concedida precocemente por levar em consideração o labor em condições prejudiciais à saúde e integridade física dos trabalhadores.

De acordo com as normas jurídicas vigentes à época, na hipótese de algum empregado doméstico sofrer alguma lesão à sua saúde e/ou integridade física no desempenho de suas atividades, a qual acarretasse a incapacidade laboral e a necessidade da respectiva tutela estatal por meio de algum benefício previdenciário, o enquadramento seria feito na modalidade de "acidente de qualquer natureza, conforme dei nição contida no art. 30, parágrafo único, do Decreto n. 3.048/19994 (Regulamento da Previdência Social - RPS), ensejando, assim, uma prestação social de natureza previdenciária comum (e não tipicamente acidentária).

A doutrina de Zéu Palmeira Sobrinho5 corrobora essa restrição vigente no ordenamento pátrio em matéria de tutela previdenciária destinada aos empregados domésticos, preconizando que:

"O doméstico não faz jus ao auxílio-doença acidentário (código 91) ainda que o seu afastamento tenha sido relacionado a acidente no local de trabalho. Cabe-lhe, porém, postular ao órgão previdenciário o auxílio-doença no código 31."

A seguir julgados do Tribunal Superior do Trabalho - TST e do Superior Tribunal de Justiça - STJ que evidenciam a restrição da tutela previdenciária que vigorava para os...

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