O Direito Achado no Lixo: de Carolina ao MNCR ? Trabalhadores à Cata dos Elementos Contributivos para um Direito Social Possível e Desejável

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas359-374

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1. Introdução

Até há bem pouco tempo, a atividade de coleta de recicláveis no Brasil era realizada de duas formas. Na primeira delas, o catador de papéis, trabalhador que viabiliza a existência das diversas cadeias produtivas de reciclagem, percorre as ruas da cidade, geralmente utilizando um carrinho feito em madeira, perscrutando, normalmente, o meio fio, as lixeiras e os sacos plásticos à cata de tudo aquilo que possa ser comercializado para garantir sua sobrevivência. A outra maneira de recolher materiais para a reciclagem se dá pela atuação em lixões, espaços a céu aberto nos quais são dispostos, pela administração pública municipal, todos os restos que a sociedade entende como inservíveis. Ali, os catadores mantêm-se à espera dos muitos caminhões que despejam a carga coletada da qual, utilizando-se ganchos perfurantes, os trabalhadores retiram aqueles materiais passíveis de comercialização.

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De maneira análoga, Rodríguez (2002) ao discutir a atividade de coleta de recicláveis em Bogotá, na Colômbia, acresce aquelas duas modalidades de recolhimento de materiais recicláveis, com uma terceira forma, a saber, a recuperação na fonte, ou seja, nos edifícios residenciais ou de escritórios. Para o autor, no entanto, apesar de esta última ser a modalidade mais favorável ao trabalhador e não obstante sua organização, dificilmente ela é praticada, pois “[...] a imagem generalizada do reciclador como indigente perigoso — como “descartável” — torna o acesso às fontes algo muito difícil” (RODRÍGUEZ, 2002, p. 343). No Brasil, esta terceira modalidade de realização da coleta de materiais recicláveis tornou-se uma possibilidade viável a partir da criação de empreendimentos de geração de trabalho e renda que reúnem catadores de papel e que, informais ou organizados, em sua maioria, pela forma da associação (SOUZA, 2005)1 foram popularizados como “cooperativa de reciclagem”. Não obstante a identificação das ações como cooperativa de reciclagem, só haverá superação das condições degradantes se a precariedade, sintetizada no uso da “carrocinha”, presente, sobretudo, na etapa de coleta dos resíduos, for superada de forma a concorrer para a inserção socioeconômica do trabalhador. E, para que sejam, social e economicamente, viáveis constituindo-se em empreendimentos econômicos solidários (GAIGER, 1999), necessariamente, tais ações deverão avançar na cadeia produtiva da indústria da reciclagem e ir além da simples coleta e comercialização. Para tanto, terão que enfrentar os fatores limitantes ou criar circuitos alternativos às diversas cadeias produtivas. Mas como esse avanço se daria?

Primeiramente, a resposta a esta questão deve ser buscada nas próprias ações organizadas, ou seja, nos empreendimentos estruturados a partir dos anos de 1990 e que passaram a compor a paisagem urbana central. Nestes espaços, trata-se de reconhecer e resgatar a figura do catador de papel como trabalhador que contribui, na atualidade, para o enfrentamento de questões como o crescimento, determinado pela lógica do consumo, na produção de lixo. Para que seja frutífero, esse resgate deve se dar em perspectiva histórica, pois foi o catador de papel o agente responsável pelo Brasil ter encontrado matéria-prima em quantidade e custo compatíveis com as condições impostas para entrarmos na modernidade, ou, dito de outra forma, para que o país pudesse implantar suas indústrias de base e, consequentemente, se desenvolver foi preciso a figura do catador de papel, agente econômico, histórico e social cuja ação viabilizou a produção secundária de metal, alternativa ao processo de redução do minério, graças à sucata recuperada em meio urbano. Feito esse resgate positivo da figura do trabalhador da catação, tanto em perspectiva histórica quanto na atualidade, resta estabelecer a interdisciplinaridade entre a sociologia e o direito do trabalho para que, no campo de ações específico desta última disciplina se encontrem as bases para estabelecer os mecanismos jurídicos necessários para o reconhecimento, por parte do Estado, do protagonismo do catador de papel no desenvolvimento nacional.

2. Elementos para uma teoria geral do direito do trabalho

Durante as últimas décadas, especialmente os anos iniciais de 1990 e até bem pouco tempo, assistimos a um espetacular ataque ao Direito do Trabalho. Sob os argumentos de que o mundo no qual a fábrica, locus de organização da classe trabalhadora na luta contra o capital, mudou cedendo espaço para a tecnologia, dimensão privilegiada na determinação das relações de mercado e apoiados no fato de que tendo chegado à presidência, o trabalhador esteja organizado, decreta-se a ineficácia, ou melhor, o anacronismo do Direito do Trabalho como elemento de proteção

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dos trabalhadores. Aqueles que defendem o fim do Direito do Trabalho fazem referência a fatos como, por exemplo, o advento da lei dos pobres, século XVIII — início do XIX, como dado objetivo do surgimento do direito do trabalho. Segundo Souto Maior, de característica lógico-formal, tais argumentos alimentam-se de uma das principais características que definem e contribuem para a sobrevivência do sistema capitalista: a desinformação. Com o agravante de a desinformação como traço constituinte da sociedade atual ocorrer não só em torno de questões fundamentais para a sociedade como o direito do trabalho, mas também em relação a todo e qualquer elemento que concorra para a compreensão das verdadeiras condições — exploração do trabalhador, degradação da natureza, desrespeito à autonomia política, social, religiosa dos povos, etc. — sob as quais a lógica capitalista do lucro a qualquer custo se justifica e perpetua entre nós.

Neste sentido, o curso que ora se encerra deixa em mim a sensação do dever cumprido quanto à máxima de “afastar-se das ideias pré-concebidas e iniciar um estudo desimpedido sobre o Direito do Trabalho”. Para Souto Maior, o direito do trabalho pode até deixar de existir, já que faz parte da sociedade capitalista e como tal é mais um elemento-parte de sua arquitetura. Porém, sua supressão somente deveria ser orquestrada ou compreendida em face da superação do capitalismo enquanto modo de produção de mercadorias estruturante da própria vida ou a partir do conhecimento da realidade, de um amplo debate e de proposições claras a partir daí. Enquanto isso não ocorre, Souto Maior alerta para o fato de que a visão histórica na explicação do surgimento do Direito do Trabalho sem consideração às revoluções burguesas, ao papel desempenhado pelo Estado e à ordem jurídica como elementos estruturantes do capitalismo, representa uma leitura perigosa.

O percurso escolhido pelo docente para atingir tal fim, ou seja, realizar este estudo desimpedido mesclou diversas formas de abordagem da realidade social como, por exemplo, o cinema, a literatura, a produção da literatura acadêmica contemporânea, a história e o próprio marco legal para sustentar que o surgimento do Direito do Trabalho como dimensão legal não decorre da intervenção do estado em defesa dos “coitadinhos”. Aqui vale destacar a questão: Que Estado é aquele que intervém para criar o direito do trabalho? São elementos de destaque na constituição da resposta, a abordagem do período de transição entre a sociedade feudal e a sociedade moderna que apresentou as corporações de ofício como forma antecedente da relação CAPITAL X TRABALHO representada pela união entre comerciantes para, dentre outras coisas, promover a defesa do mercado e a proteção do grupo. Essas uniões assemelhavam-se ao modelo de um sindicato de empregadores que, na ausência do Estado, se davam atribuições de um poder constituído.

As Revoluções Industrial e Francesa, “dois lados de um mesmo processo, qual seja, a instalação definitiva da sociedade capitalista” (MARTINS, 1990), foram apresentadas, cada uma com sua ênfase particular, como elementos que criaram as condições estruturais na Inglaterra com o advento não só da máquina a vapor, mas pelo surgimento do antagonismo de classe que colocou em lados opostos uma burguesia ascendente e o campesinato despossuído das condições mínimas para sua sobrevivência. Enquanto que a Revolução Francesa representou mais uma forma de derrubar o Antigo Regime e acabar com os privilégios do clero e da nobreza, ou seja, vencer a resistência e o conservadorismo das elites visando inaugurar na sociedade francesa os pressupostos da nova ordem social pela implantação dos elementos políticos, culturais e de ordem legal encarnados nos princípios da igualdade, da liberdade e da fraternidade e definidores do Estado liberal nascente como resultante da luta contra o antigo regime. Na Inglaterra, ganham destaque ações como os cercamentos que se tornam um aspecto-chave na aceleração do processo de despossessão do servo da gleba durante a passagem para a nova ordem social. Nesta luta, mulheres e crianças são os primeiros alvos da nova forma de organização da vida, posto não serem detentores de conhecimento e de meios para resistirem ao nascente modelo de produção. Num primeiro momento, a revolta dos trabalhadores contra os modos de vida que lhes são impostos volta-se contra as máquinas vistas como os inimigos do trabalhador. Esse o caráter que define o movimento...

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