Acesso à justiça e mediação: superando obstáculos no direito das famílias

AutorNewton Teixeira Carvalho
Ocupação do AutorJuiz de Direito Familiarista. Mestre em Direito Processual Civil. Professor de Direito de Família, Processo Civil e Pró-Reitor de Pesquisa da Escola Superior Dom Hélder Câmara. Conselheiro Consultivo do IBDFAM-MG.
Páginas291-301

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A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em ver novas paisagens, mas em ter novos olhos (Marcel Proust).

1. Introdução

O conflito é fenômeno inerente às relações humanas. Sempre existiu e jamais deixará de existir. Porém, solucioná-lo, o mais rapidamente possível e, de preferência, sem a intervenção de terceiros e até mesmo do Poder Judiciário, é cabal demonstração de maturidade, de prevalência do diálogo, mesmo nos momentos de crises.

Entretanto, nem sempre é possível a busca da solução diretamente pelas próprias partes envolvidas, em razão de bloqueios vários, dentre eles a desconfiança, que surgem entre as pessoas em conflito. Com razão, portanto, Eduardo de Vasconcelos1 ao afirmar que "o conflito é dissenso. Decorre de expectativas, valores e interesses contrariados. Embora seja contingência da condição humana, e, portanto, algo natural, numa disputa conflituosa costuma-se tratar a outra parte como adversária, infiel ou inimiga. Cada uma das partes da disputa tende a concentrar todo o raciocínio e elementos de prova na busca de novos fundamentos para reforçar a sua posição unilateral, na tentativa de enfraquecer ou destruir os argumentos da outra parte. Esse estado emocional estimula as polaridades e dificulta a percepção do interesse comum".

A cessação desse estado beligerante, surgido principalmente em razão da falência do diálogo, passaria, primeiramente, pelos meios alternativos de resolução de conflitos, através da intervenção de uma terceira pessoa neutra, cujo objetivo principal seria tentar o reinício imediato do diálogo, pelas próprias partes, com posterior composição entre elas, estacando o dissenso.

Porém, nós os brasileiros temos uma cultura demandista. Acabado o diálogo, a primeira coisa em que pesamos, infelizmente, é no acionamento do Poder Judiciário, inclusive como demonstração de força e poder.

Assim, a Justiça Brasileira continuará assoberbada e, por conseguinte, rotulada de morosa. A distribuição de ações é bem superior ao número de processos finalizados. Em juízo, em razão do devido processo legal, as ações não podem ser solucionadas imediatamente. Há necessidade de produção de provas, recursos etc.

Os meios alternativos de resolução de conflitos, extra e judicialmente, têm por escopo evitar ou

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diminuir o tempo de tramitação das ações no Poder Judiciário. Para tanto, mister sejam quebrados paradigmas, que sejam superados obstáculos, isto é, que as pessoas não vejam o Judiciário como a única tábua de salvação, numa cômoda terceirização de problemas, e que também o Estado, principalmente no direito das famílias, permita o prevalecimento da vontade das partes, deixando de intrometer, indevidamente, nas vidas das pessoas, tratando-as como se fossem incapazes de agir e pensar por conta própria.

O princípio da boa-fé há de prevalecer em todas as relações humanas, principalmente no direito das Famílias.

Portanto, discutiremos neste trabalho um novo direito das famílias, através da qual a mediação será de suma importância na retomada do diálogo pelas partes em conflito, bem como demonstraremos que, para tanto, necessário é que, pelo menos, relativizemos, ao máximo, velhos, surrados e tradicionais conceitos, como as chamadas ações de estado, os direitos indisponíveis, a proibir reconhecimento, renúncia ou transação entre as partes, sem levar em consideração a especificidade do caso.

Demonstraremos que a mediação, após alguma resistência, é hoje fundamental e indispensável nas Varas de Famílias de Belo Horizonte, como alternativa de composição de litígio e como retomada do diálogo pelas próprias partes em dissenso que sepultam, em definitivo, seus desencontros, numa demonstração de superação e de retomada de consciência. Perdas existirão sempre. Necessário é a absorção delas o mais rapidamente possível e ir adiante, deixando para trás mais um ritual de passagem, como o é, por exemplo, o divórcio, dente várias outras ações familiarista.

Com relação ao Judiciário, não podemos olvidar, conforme esclarece Maria Berenice Dias2 que "a sentença raramente produz o efeito apaziguador desejado pela justiça. Principalmente nos processos que envolvem vínculos afetivos, em que as partes estão repletas de temores, queixas e mágoas, sentimentos de amor e ódio se confundem. A resposta judicial jamais responde aos anseios de quem busca muito mais resgatar prejuízos emocionais pelo sofrimento de sonhos acabados do que reparações patrimoniais ou compensações de ordem econômica. Independentemente do término do processo judicial, subsiste o sentimento de impotência dos componentes do litígio familiar além dos limites jurídicos. O confortante sentido de justiça e de missão cumprida dos profissionais quando alcançam um acordo dá lugar à sensação de insatisfação diante do desdobramento das relações conflituosas.".

Assim, a solução do litígio, o mais rapidamente possível, é o objetivo imediato de todos nós, militantes no Direito das Famílias. Os meios alternativos, com certeza, contribuem, sobremaneira, para o encerramento do conflito, de maneira simplificada, a bem das partes envolvidas e, por conseguinte, de toda a sociedade.

Também discutiremos, no transcorrer deste trabalho, sobre o nascimento da mediação na Justiça Mineira, sua aceitação perante os jurisdicionados e quais as perpectivas de sua implantação em todo o território de Minas Gerais.

2. Visão histórica do direito das famílias

A Constituição Republicana de 1988 revolucionou o direito das famílias. Até então, o casamento era considerado como algo sagrado e sobrepunha a tudo e a todos. Basta relembrar que antes da nossa atual Constituição o filho advindo de relacionamento fora do casamento, não podia ofertar ação investigatória de paternidade, enquanto persistisse o casamento de seu suposto pai.

Esta mesma Constituição equiparou, em seu art. 227, § 7º, os filhos adotivos aos advindos da filiação biológica, proibindo designações discriminatórias. O Código Civil, no art. 1.596, em face da determinação constitucional antes aludida, atribuiu aos filhos adotivos os mesmos direitos e deveres dos concebidos pelos próprios pais.

Portanto, após a Constituição Federal de 1988 não é mais correto aludir a parentesco legítimo (advindo do casamento) e ilegítimo (aflorados de relações sexuais fora do casamento). O conservadorismo era tão sério e sempre em prejuízo da prole, a ponto de o filho ser considerado natural (pais que não tinham impedimento para casamento e que, entretanto, não se casavam) ou adulterino (de pessoas que não podiam casar, eis que uma já era casada) e filhos incestuosos (nascidos de parentes próximos). Essas discriminações preconceituosas foram extirpadas de nosso ordenamento jurídico pelo art. 227, § 6º da Constituição Federal. O filho, sem a odiosa adjetivação, passa a ser mais importante do que o casamento, a partir de então considerado apenas mais uma dentre as várias entidades familiares também constitucionalmente garantidas.

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O filho adotivo, até então, herdava a metade do que tinha direito, se do casamento e posteriormente à adoção adviesse prole.

Acerca da adoção Doutrina Paulo Lobo3, em perfeita sintonia com a norma constitucional: "que não há mais parentesco adotivo, pois, após a consumação da adoção por decisão judicial, o filho é igual aos demais consanguíneos dos pais que o adotaram, rompendo-se integralmente os laços com a família de origem.".

Também foram consideradas outras formas de entidades familiares, além do casamento. A união estável, reconhecida somente nos Tribunais, foi final-mente positiva pela Constituição de 1988. Admitida foi a família monoparental4.

Antes mesmo de o Supremo Tribunal reconhecer o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, também como entidade familiar, pelos princípios constitucionais, dentre eles o da dignidade da pessoa humana, o da igualdade e direito à diferença, o da liberdade às relações familiares e o da afetividade, na Doutrina, bem como na jurisprudência, aludida entidade já era reconhecida, desde a Constituição de 1988.

Elisabeth Rodinesco5, acerca da homossexualidade, ainda tabu e vista, por alguns, como valor negativo neste país, citando Freud, esclarece: "A homossexualidade, escreve em 19356, não é evidentemente uma vantagem, mas nada existe nela de que se deva ter vergonha, não é nem um vício nem um aviltamento, e seríamos incapazes de qualificá-la como doença; nós a consideramos como uma variação da função sexual provocada por uma interrupção do desenvolvimento sexual. Diversos indivíduos altamente respeitáveis, dos tempos antigos e modernos, foram homossexuais, e dentre eles encontramos alguns dos homens mais grandiosos (Platão, Michelangelo, Leonardo da Vinci etc.)."

Respeitemos, pois, a liberdade sexual.

Sobre os princípios constitucionais, esclarece Paulo Lobo7, "que um dos maiores avanços do direito brasileiro, principalmente após a Constituição de 1988, é a consagração da força normativa dos princípios constitucionais explícitos, superando o efeito simbólico que a Doutrina tradicional a eles destinava.".

Portanto, hoje existem inúmeras entidades familiares. Outras ainda surgirão. Nada está acabado, em razão do dinamismo dos fatos, mormente no Direito das Famílias, a não esperar a burocracia legislativa. No direito das Famílias, quando a Lei surge, regra geral já está superada, em razão da demora na tramitação do projeto de Lei na Casa Legislativa.

Ademais, o bom direito é o que regulamenta os fatos e não, como geralmente acontece, que os criam, inclusive plagiando legislação alienígena, totalmente alheia à nossa cultura, aos nossos costumes e à nossa realidade, razão da ausência de efetividade de várias de nossas...

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