Acesso à justiça como garantia institucional: mais uma inconstitucionalidade da 'reforma trabalhista

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas461-466

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Introdução

Abordaremos no presente artigo uma das inúmeras inconstitucionalidades que podem ser encontradas no texto da Lei n. 13.467/2017, a denominada “reforma trabalhista”. Procuraremos mostrar como a nova disciplina da assistência judiciária gratuita, na forma em que se encontra prevista na nova legislação, acarreta uma situação de inconstitucionalidade decorrente da violação de garantias institucionais que são inerentes ao constitucionalismo brasileiro contemporâneo. A inconstitucionalidade é flagrante e os desdobramentos são particularmente preocupantes. O que está em jogo, ao final, é a própria autonomia da Justiça do Trabalho como órgão componente de um sistema de justiça voltado à proteção de direitos sociais.

O papel da Justiça do Trabalho nas constituições brasileiras

Por razões históricas particulares, o surgimento da Justiça do Trabalho no Brasil é marcado por um contexto que extrapola a dimensão do mundo do trabalho. Não que a questão trabalhista não fosse, em si, decisiva. Num país repleto de desigualdades, que estava num processo de modernização, a criação de normas protetivas no âmbito do trabalho, seguida pela institucionalização de estruturas político-burocráticas que pudessem conferir concretude às políticas de expansão da tutela ao trabalhador, é um fenômeno importante para a definição dos rumos que essa modernização tomaria. Não se deve, portanto, jamais relegar a um segundo plano o fato de que, nas décadas de 1930 e 1940, organizou-se um conjunto de instituições – ainda no plano do Poder Executivo – voltado à implantação de políticas sociais que reconheciam o trabalhador como sujeito de direitos.

O que deve ser enfatizado é a circunstância de que, na história brasileira, a aquisição de direitos relacionados ao mundo do trabalho acabou por significar ainda mais. A condição de trabalhador passou também a ser associada à titularidade de direitos de cidadania. Isso porque, num desdobramento histórico marcadamente diverso ao experimentado em outros países que construiriam redes de proteção aos trabalhadores e instituições voltadas a esse papel protetivo, no Brasil a aquisição de direitos sociais não ocorreu num contexto de democracia política.

Se num país como a Inglaterra houve a sucessiva conquista de direitos civis, políticos e sociais, consoante a clássica narrativa de T.H. Marshall, no Brasil a temporalidade dos processos de aquisição de direitos foi outra. Em meio a um período de 15 anos, ou seja, de 1930 a 1945, foi transformado o arcabouço normativo e institucional da República, que passou por um processo de modernização seletiva marcado por expansão de atividades estatais e ampliação do campo do direito do trabalho. Em tal período, contudo, não houve propriamente uma experiência democrática. Como se sabe, a única constituição democrática que foi promulgada naquele período – a de 1934 –, ainda que inovadora em muitos aspectos, teve uma vigência curta e acidentada. Durou pouco mais de três anos, tendo sido substituída pela constituição outorgada em 1937, e mesmo durante sua vigência houve uma série de suspensões da ordem constitucional, decorrentes dos desdobramentos da Intentona Comunista e da criação do Tribunal de Segurança Nacional. Com a entrada em vigor da carta de 1937, houve o fechamento do Congresso, o exercício de poderes ditatoriais pelo Presidente da República e a repressão política se ampliou.

E, ao mesmo tempo em que a repressão se ampliava, pros-seguiam as medidas de institucionalização da proteção ao trabalhador no Brasil, com a edição, em 1943, da Consolidação das Leis do Trabalho. Assim, a descrição acima invocada, que postula a aquisição gradativa de direitos civis, políticos e sociais, não se revela útil para descrever a experiência brasileira no campo do direito do trabalho. Esses direitos foram obtidos em outra chave, já que a designação e institucionalização de direitos sociais ocorreu num período em que havia substancial redução do campo dos direitos civis e políticos.

Por essas razões, a obtenção de proteção jurídica e institucional ao mundo do trabalho passou a significar também a obtenção de cidadania. Ser trabalhador, em regra com um documento distintivo dessa condição – a carteira de trabalho – e sob a proteção de um ente sindical, equivalia a ser cidadão, a participar da vida política do país, a ser beneficiário de um movimento de inclusão.

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Não é necessário ressaltar, aqui, as ambiguidades dessa política de modernização. Controlada, de modo sistemático, pelo alto, ou seja, pelas camadas dirigentes da classe política, a formação do direito do trabalho nas décadas de 1930 e 1940 não foi um movimento universalizante. Muitos setores da sociedade, como os trabalhadores rurais e os domésticos, não foram beneficiários das políticas de inclusão. Nesse sentido, tratou-se de uma modernização seletiva, controlada e pouco democrática. A presença do Estado no reconhecimento e fiscalização do trabalho das entidades sindicais é mais um sintoma dessa condição, ou seja, da ambiguidade na concessão de direitos e possibilidades de ação e na existência de um rigoroso sistema de controle dos entes representativos dos trabalhadores – limitados pela unicidade sindical, presos ao financiamento estatal e sujeitos à intensa fiscalização do Ministério do Trabalho2.

Porém, de toda forma, tratou-se de uma modernização. Isso quer dizer que houve uma transformação importante na sociedade brasileira. Setores antes afastados de qualquer participação na vida social e política do País passaram a ser reconhecidos. Direitos inerentes à condição de trabalhador tiveram que ser estipulados. E foi necessário conferir eficácia e concretude a um ramo do Poder Público encarregado de aplicar e interpretar normas laborais em contextos de conflito (individual e coletivo). É essa a origem da Justiça do Trabalho.

Já na década de 1920, ainda na Primeira República, surgem entes administrativos, como o Conselho Nacional do Trabalho, destinados à resolução de conflitos entre trabalhadores e empregadores. Esses órgãos ganham, contudo, maior impulso com a aceleração do tempo da modernização, o que virá a ocorrer apenas na década de 1930.

E é exatamente da década de 1930 que começa o movimento de constitucionalização da Justiça do Trabalho. Nos dois documentos constitucionais editados naquela década há expressa previsão a respeito de um ramo do Poder Judiciário especializado na resolução de controvérsias ligadas ao mundo do trabalho.

A Constituição de 1934 já estabelecia que “Para dirimir questões entre empregadores e empregados, regidas pela legislação social, fica instituída a Justiça do Trabalho” (art. 122). Por sua vez, a Constituição de 1937 previa que “Para dirimir os conflitos oriundos das relações entre empregadores e empregados, reguladas na legislação social, é instituída a Justiça do Trabalho” (art. 139)3. No plano concreto, boa parte do aparato institucional voltado à proteção do trabalhador ainda permaneceu sob a égide do Executivo, o que foi se atenuando com a gradativa institucionalização da Justiça do Trabalho, que foi gradativamente sendo incorporada ao Poder Judiciário, como se percebe pelo Decreto n. 1.237, de 2 de maio de 1939, pelo Decreto-lei n. 1.346, de 13 de junho de 1939 e pelo Decreto-lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943.

A inserção definitiva da Justiça do Trabalho no Poder Judiciário ocorreria apenas com a promulgação e vigência da Constituição da República de 1946, que estabeleceu:

Art. 122 – Os órgãos da Justiça do Trabalho são os seguintes:

I – Tribunal Superior do Trabalho;

II – Tribunais Regionais do Trabalho;

III – Juntas ou Juízes de Conciliação e Julgamento.

§ 1º As decisões do Tribunal Superior do Trabalho, com sede na capital da República, são irrecorríveis, salvo se contrariarem a Constituição, quando caberá recurso para o Supremo Tribunal Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 16, de 1965)

§ 2º...

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