Acesso à justiça, exclusão social e auxílio-reclusão: constatações de uma pesquisa empírica

AutorElizabete David Novaes; Maressa Mello de Paula
CargoProfa. Dra. Em Sociologia pela Unesp de Araraquara; Bacharel em Direito pelas Faculdades COC de Ribeirão Preto
Páginas1-12

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1 - Apresentação:

Não há dúvidas de que a temática da exclusão social pode ser estudada sob diversas óticas.12 A Ciência Política, por exemplo, pode estudar a questão a sob o ponto de vista dos Tribunais serem centros de decisões políticas; a Economia pode debruçarse a compreender a questão das custas para se ter acesso a justiça; enquanto a Sociologia pode voltar-se para a problemática da administração da justiça.

Neste trabalho, o que buscamos fazer é uma análise do acesso a justiça a partir de um viés sócio-jurídico, considerando tal acesso um direito fundamental do cidadão, elencado no artigo 50, inciso XXV da Constituição Federal em vigência, segundo o qual: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Neste dispositivo está assegurado o direito de ação, ou seja, o acesso a justiça, sendo reforçado neste referido artigo que a lei não pode excluí-lo.

Para tanto, visamos compreender a problemática do acesso à justiça a partir de um recorte temático, qual seja, o benefício do auxílio-reclusão. Com tal propósito, realizamos uma pesquisa empírica, por meio da qual foram entrevistados alguns familiares de presidiários, selecionados por meio de uma rede de contatos pessoais, que se dispuseram a conceder informações acerca de suas experiências com relação ao auxílio-reclusão. Por uma facilidade pessoal da pesquisadora, os contatos foram feitos preferencialmente na cidade de Bebedouro, onde foi possível conversar com familiares - exclusivamente mulheres, dentre elas quatro esposas e um mãe de presidiários, que nos contaram suas experiências e percepções acerca do benefício em questão. Page 2

As entrevistas foram feitas de maneira não dirigida, por meio de uma conversa na qual as entrevistadas se sentissem confortáveis para se expressarem acerca dessa experiência em suas vidas, verbalizando se e como esse benefício teria sido importante para a manutenção familiar, e se lhes faria falta sua cessão depois que a pessoa que dá causa a esse benefício vier a ser colocada em liberdade.

Consideramos que o acesso a justiça está elencado como direito social de segunda geração, devendo obrigatoriamente ter uma prestação material por parte do Estado para a sua concretização. É preciso, sem dúvida, que tenhamos certa cautela em fazê-lo, visto que a realidade da justiça no Brasil tem as suas especificidades, reflexão que desenvolvemos a seguir.

2 - Discussão teórica acerca da problemática:

Nos países desenvolvidos a questão da acessibilidade está intimamente relacionada com a possibilidade de os Tribunais reconhecerem novos direitos, tais como os das mulheres, dos estrangeiros, dentre outros. Desse modo, nos países desenvolvidos, à justiça torna-se um problema que envolve a possibilidade de exercer a cidadania em face dos novos direitos (BARBIERI, 2007).

No Brasil, por outro lado, o problema concernente a acessibilidade à justiça não é esse, mas sim o de que o nosso país está cercado de miséria e pobreza, e a exclusão social presenciada aqui não é das minorias, como podemos observar nos países desenvolvidos, mas sim, a exclusão social das maiorias.

A questão da exclusão dos mais pobres não é de hoje que vem sendo tratada, muito menos que vem ocorrendo. Trata-se de uma temática antiga que surge em razão das mudanças ocorridas na história.

Há séculos atrás, quando ainda se verificava o sistema de feudos, as pessoas que ali trabalhavam o faziam para obter comida, para ter uma casa e proteção, e as pessoas estavam adaptadas a esse sistema (HUBERMAN, 1987).

Ocorre que com o surgimento das cidades, a expectativa da oportunidade de ter uma vida melhor fora do campo, acaba por atrair muitas pessoas que antes viviam sob o sistema do feudalismo, e elas se vêem obrigadas a encarar a realidade do capitalismo. Entretanto, como nos mostra a história, essa transição não foi pacífica e indolor para as pessoas que sofreram com a saída do campo rumo ao desconhecido das novas cidades:

...o processo de desenvolvimento capitalista ocorre geralmente de um modo um tanto anárquico e irracional, e o deslocamento dos futuros operários do campo para as cidades não é nem automático nem indolor, provocando fenômenos de inserção de alguns dos novos que chegam no interior dos mercados chamado "ilícito"..., e igualmente de rejeição e de hostilidade da parte dos estratos sociais, também operários, precedentes. (DI GIORGI, 2006, p. 23) Page 3

Com essa profunda mudança, os camponeses que não se adaptaram ao novo sistema a eles imposto acabaram por vivenciar muitos conflitos, tendo como uma solução para eles a de serem recolhidos ao cárcere de maneira indefinida, para "pagar pelo mal que eles fizerem a sociedade" (GIORGI, 2006)

Nesse período, o cárcere ainda não apresentava um caráter de ressocialização do preso, mas sim uma maneira de simplesmente tirá-lo do convívio da sociedade. Ocorre, contudo, que depois de certo tempo:

...o cárcere será visto como um resíduo arcaico da passado e serão previstas novas "alternativas" punitivas, "correcionais" e "reeducativas"; ao mesmo tempo, em algum canto do mundo, as primeiras patrulhas em busca de um "canalha" estarão começando a apressar-se, num incansável movimento, em direção aos confins do contrato social/império. (GIORGI, 2006, p.24)

Mas o que podemos perceber é que esse paradigma da pobreza ainda se faz presente até hoje em nossa sociedade, e para melhor compreendermos essa afirmação passaremos a analisar dois textos, escritos em épocas diversas, mas que demonstram a mesma filosofia, a de desprezo por tamanha pobreza que, de modo desabusado, ousa se tornar evidente, deixando contaminado o ambiente metropolitano. (GIORGI, 2006)

Como mostra o citado autor, o que ocorre com o passar do tempo é que na Europa do século XVII e XVIII "as estratégias do poder mudam lentamente, passando de uma função negativa de destruição e eliminação física do desvio, a uma função positiva de recuperação" (DI GIORGI, 2006, p.26), e é com essa mudança que surge a fase do encarceramento. Ao invés de destruir os corpos das pessoas marginalizadas, estas passam a ser encerradas, em locais específicos, como uma forma de punição ao corpo com o intuito de que na sua produtividade na prisão, se evidencie o poder econômico concernente ao capitalismo.

Isto porque, depois do surgimento do capitalismo, os presos começam a ser encarados como uma força de trabalho, não podendo se dar ao luxo de morrer ou de simplesmente nada produzir.

Surge aí a questão da "biopolítica" (GIORGI, 2006, p.27), inaugurando um modelo de controle social disciplinar, que visava dar contornos à fase de expansão industrial. E a partir da primeira metade do século XX essa "articulação entre a disciplina dos corpos e governo das populações se completará, materializando-se no regime econômico da fábrica".

A pena nos mostra duas funções primordiais, a primeira é a de prevenção, sendo o seu objetivo imediato o de dissuadir os criminosos em potencial de violarem as leis, tentando fazer com que as camadas potencialmente criminosas prefiram, por uma consideração racional, não cometer as ações proibidas, para não serem vítimas da punição; Page 4 a segunda é que essas penas variam de acordo com a história guardando...

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