Acesso à justiça: diversidade, efetividade e ressignificação

AutorMila Batista Leite Corrêa da Costa
Ocupação do AutorMestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito Público e em Direito Material e Processual do Trabalho
Páginas173-181

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1. Introdução

Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos.1

Perceber o tema do acesso à justiça pelo veio da virtuosidade é necessidade que se impõe à luz da concepção pós-moderna de democracia e de sociedade plural, dando o tom de reflexão e crítica à função social do processo judicial e do próprio Direito - chamados a responder a nuances sociais e antropológicas de uma sociedade dinâmica, sincrética, constituída de vozes e pretensões variadas. O acesso à justiça é direito fundamental, expresso no texto constitucional brasileiro,2 e o contexto

pós-moderno3, marcado pelo movimento e pela cambiância, exige releitura sociológica do dispositivo para se estabelecer interpretação conforme ditames de justiça social.4

Questão de relevo para reflexão consistente sobre o tema do acesso à justiça e pressuposto fático, jurídico e processual, estruturado por Cappelletti e Garth, é a premissa de que a decisão judicial necessita estar fundamentada em "méritos jurídicos relativos das partes antagônicas, sem relação com diferenças que sejam estranhas ao Direito"5. Essa afirmação deve ser significada com sopesamentos: a fundamentação decisória, utilizada pelo Judiciário, não pode ser construída a partir de embasamentos particularizantes ou da posição social de dado litigante. O processo - e, por conseguinte, a sentença - não deve, entretanto, ser impermeável às variáveis

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subjacentes às relações processuais e, fundamental-mente, sociais.

Ao contrário, o Poder Judiciário e todos os atores envolvidos na trama processual devem estar jurídica e socialmente enquadrados em funções vocacionadas, pensadas para capturar nuances imersas na dinâmica social, como uma espécie de cláusula compromissória: "ou o Judiciário acorda para os reclamos de uma comunidade heterogênea, mas desperta, ou será substituído por alternativas menos dispendiosas, mais rápidas e eficientes de resolução dos conflitos"6.

Embora a Carta Constitucional Brasileira de 1988 tenha representado a preocupação do constituinte com a consignação de um rol de direitos a serem tutelados, o redesenho da estruturação produtiva capitalista, a partir dos anos 70, corrompeu a versão sistêmica até então vigente, pautada no welfare state, propugnando pela formatação de esteios de Estado mínimo, de padrões de abstencionismo, de livre negociação e, finalmente, de flexibilização - pressupostos do paradigma neoliberal. O capitalismo vive, nesse contexto pós-moderno globalizatório, fase de esfacelamento das relações sociais, ressignificação de conceitos democráticos como "acesso à justiça" e "processo judicial" e desconstrução de sentidos e significados do trabalho, alterando a própria percepção dos trabalhadores sobre a individualização do caráter: "o valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros [...]7".

O contexto demanda, em verdade, novo olhar sobre a efetividade e as multifacetadas realidades cotidianas do acesso à justiça, percebido como direito fundamental do cidadão e instrumento de legitimação do próprio Estado Democrático de Direito. A análise será pautada na perspectiva do jurisdicionado e pressupõe sempre, como pano de fundo indispensável, as dinâmicas sociais subjacentes e, principalmente, a influência da estrutura e do meio sobre o indivíduo, permeável à interação simbólica.

2. Sociedade, diversidade e acesso

El término ciudadania implica tanto derechos como obligaciones: derechos contra el ejercício arbitrario del poder estatal y obligaciones en relación con las actividades del Estado; denota un aspecto particular del status social del individuo o grupo.8

A concepção de acesso à justiça deve ser refletida e enquadrada pela perspectiva do jurisdicionado9, da coletividade e dos meios técnicos e teleologicamente pensados para o suprimento e formatação de amparos de acessibilidade sustentável10: para a sociedade, o que é realmente relevante é a efetividade e justiça do Direito como instrumento de tutela11. O acesso à justiça é direito fundamental, constitucionalmente assegurado, que instrui o Estado Democrático de Direito, reverberado por uma sustentação teórica jurídico-sociológica de consolidação do contrato social; não existindo garantia de acesso à justiça, não há processo de construção democrática. A não garantia de acesso ao titular do direito verte graus de ilegitimidade às próprias instituições democráticas: os critérios de inclusão ou exclusão, estabelecidos no contrato, são definidores da legitimidade das próprias relações sociais, econômicas, culturais e jurídicas. "O contrato social é a grande narrativa em que se funda a obrigação política moderna"12.

É a expressão de uma tensão dialética entre regulação social e emancipação social que se reproduz pela polarização constante entre a vontade individual e a vontade geral, entre o interesse particular e o bem comum. O Estado nacional, o direito e a educação cívica sustentam o desenrolar pacífico e democrático dessa polarização num campo social que se designou por sociedade civil13.

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A ideia de revolução democrática da justiça pressupõe a percepção de que, no cerne da sociedade, do ponto de vista sociológico, circulam sistemas jurídicos que fazem parte do cotidiano ordinário do cidadão comum e que não necessariamente correspondem ao sistema jurídico Estatal14, mas que atendem às demandas singularmente construídas em pequenos quadros de realidade. Os grupos sociais têm dinâmicas, sustentações e credos muito particulares, marcados pela oralidade, pelo sincretismo e pela resolução de conflitos, conforme regras internas definidoras e, simultaneamente, esmiuçadoras das dinâmicas coletiva e individualmente construídas na dialogia das relações.

A sociedade, diante dessa realidade plural e, ao mesmo tempo, fragmentada, busca fazer convergências para não solapar a existência de diversidades de interesses e contrastes locais: o Estado e o próprio Direito são, em verdade, tentativas institucionalizadas de construção de linguagens comuns, de costura de nuances - unidade na diversidade, adotando-se concepção gramisciana. Essa amarração deve ser capaz de arregimentar oscilações de sentido produzidas no seio da sociedade para que a frustração reiterada das expectativas democráticas não acarrete desistência da democracia e da perspectiva do Direito como ator essencial na construção de verdadeira justiça social15.

O acesso à justiça é instrumento que tem o condão de atingir diversidade de públicos, marcados pela dispersão, arregimentadores de formações discursivas sustentadas em especificidades e construídas a partir de referências simbólicas peculiares a cada contexto em que são formuladas. A própria noção de acesso é um discurso feito de: valorações e projecções ideológicas, entre o distanciamento e a adesão ou a apologia, entre a paixão e a repulsa, assim como é construído em torno de modelos e de imagens simplificadores e recorrentes que dificultam a sua apreensão como fenômeno cultural e social16.

A pluralidade e a diversidade devem estar explicitadas e reproduzidas nas representações, permanências e transformações construídas sobre o acesso - conceito democrático por excelência. Mas, construir uma cultura democrática é compromisso complexo e obstaculizado quando se considera a existência de muitos distanciamentos entre acesso e multiplicidade de grupos sociais que habitam o subúrbio da democracia. Há um largo distanciamento entre direitos formalmente concedidos e práticas sociais violadoras: e quanto mais elevadas as desigualdades sociais e a consciência social da injustiça, maior o questionamento em torno do papel e real efetividade do Judiciário, em especial, no contexto recente de protagonismo social e político desse Poder e do próprio Direito.

No século XX, nos países latino-americanos, o Poder Judiciário permaneceu silencioso, tendo o juiz função meramente aplicadora da letra da lei, copiada do modelo europeu. O sistema judicial dos países sujeitos ao colonialismo europeu, assim como todo o seu modus operandi, foi fortemente influenciado pelo modelo da metrópole17, tema abordado pelos teóricos do pós-colonialismo18. No Brasil, existe clara preponderância do Poder Executivo no exercício das atribuições políticas, embora não exista exclusividade: o regime presidencialista garante atuação política majoritária ao presidente da República, reverenciada pelo texto constitucional de 1988, ao menos no que se refere às iniciativas.19

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Pode-se dizer que no direito brasileiro as funções políticas repartem-se entre Executivo e Legislativo, com acentuada predominância do primeiro. Ao contrário dos Estados Unidos, onde o Poder judiciário desempenha papel de relevo nessa área, chegando-se a falar em [...] governo dos juízes, no Brasil, sua atuação restringe-se, quase exclusivamente, à atividade jurisdicional, sem grande poder de influência nas decisões políticas do Governo, a não ser pelo seu papel de controle.20

Na década de 80, entretanto, construiu o Poder Judiciário um novo locus de atuação, a partir da consecução de reformas judiciais, da implementação paulatina do Estado de Direito, em muitos países em desenvolvimento e, em especial, da arregimentação sistemática do paradigma neoliberal.21 Assumiu, nesse contexto, um protagonismo forte, lastreado na ressignificação de seus papéis sociais para prover eficiência, justiça e independência, buscando a dignificação das profissões jurídicas, melhor gestão do sistema judicial vigente e reformas processuais abrangentes e efetivamente transformadoras.

O neoliberalismo, emergente do desmantelamento do Estado de Bem-estar Social, em linhas gerais...

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