O acesso à justiça como pro moção do bemestar e da 'vida boa': uma transformação possível?

AutorMiracy Barbosa de Sousa Gustin
Ocupação do AutorProfessora Associada da Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais (Aposentada). Professora do Corpo Permanente do Programa de pós-graduação em Direito - UFMG
Páginas51-57

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1. Considerações iniciais

Conceitos iniciais devem ser apresentados para que o leitor não relacione alguns conceitos com definições, às vezes simplórias, de nosso cotidiano de senso comum. Uma delas se refere ao conceito do que seja uma vida voltada para a felicidade e para o "bom viver". Inúmeras vezes, quando em produções diversas se refere à felicidade e ao bem-estar humano pode parecer a alguns leitores mais desavisados como algo piegas ou até mesmo religioso. Aqui essas supostas "religiosidade" ou "pieguice" estarão relacionadas a uma noção de "bom viver" daquelas camadas sociais mais desprovidas de todos os bens que tornam um homem ou uma mulher felizes e com bem-estar: aqueles grupos sociais que vivem em completa exclusão, os desprovidos da sorte.

Dworkin, em seu artigo "What is a good life"1, ao distinguir ética de moral, afirma que as normas morais, tradicionalmente, prescreveriam como devemos tratar os demais, aqueles que constituem nossa alteridade; as normas éticas se destinariam aos modos segundo os quais devemos viver ou conviver com nosso próprio eu. Em seu livro Justice for Hedgehogs2,o autor apresenta um conceito de norma ética relacionado ao bem viver e à vida boa. Para ele, contudo, as responsabilidades morais não deveriam ser entendidas em qualquer sentido ou aleatoriamente desde que benéficas para nós. Esta meta, para ele, parece ser contrária ao espírito da moralidade, pois a moralidade não pressupõe um entendimento a partir de benefícios que o ser moral traga para si mesmo. Dever-se-ia distinguir, portanto, entre os conteúdos dos princípios morais que são categóricos de suas justificativas que deveriam se referir aos interesses de longo prazo daqueles indivíduos detentores desses mesmos interesses? Para Dworkin, essas seriam concepções que poderiam ser consideradas como conservadoras. Ou seja, não é possível, em sua concepção, explicar a importância de uma "boa vida" exceto em uma situação em que se tem consciência de como a construção de uma boa vida contribui para o bem viver. Assim ele se expressa:

"Nós somos animais autoconscientes que possuem pulsões, instintos, gostos e preferências. Não há qualquer mistério nas razões pelas quais gostaríamos de satisfazer essas pulsões e servir a tais gostos. Mas pode parecer misterioso por que deveríamos desejar uma vida que seja boa em um sentido mais crítico: uma vida da qual possamos nos orgulhar por tê-la vivido quando as pulsões são saciadas ou mesmo quando não o forem. Podemos explicar essa ambição

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apenas quando reconhecemos que temos uma responsabilidade de viver bem e acre-ditar que viver bem significa criar uma vida que não é simplesmente agradável, mas boa naquele sentido crítico (DWORKIN, R. 2011: p. 2)".3

Afirma o autor que deveremos atribuir um sentido crítico às nossas vidas, um orgulho de viver. Mas, o indivíduo isolado, distanciado de quaisquer outros indivíduos ou grupos, afastado da humanidade e de sua própria humanidade, necessitaria desse orgulho de viver? Talvez sim, mas ao mesmo tempo uma negativa. Cada pessoa seria responsável por suas características genéticas ou talentos inatos? Indaga Dworkin com outras palavras. Serei eu, de forma isolada, responsável por meu destino em determinada sociedade? Ao mesmo tempo em que atribuo um querer que dirige minhas pulsões e instintos, como externamente eu poderia tratar as questões relacionadas à igualdade, à liberdade, à democracia e ao direito de se ter e de se atribuir direitos? Todos esses valores inevitavelmente constituirão a justiça como promoção do bem viver. E qual seria a relação da promoção de bem-estar e desse bem viver e da vida boa com as condições que os homens e mulheres têm ao se inserirem no mundo do trabalho?

Primeiro, um conceito bastante usual e simples. O que seria para nós o trabalho humano? Algo mecânico e afastado dos prazeres da vida? Ou seria, conforme as palavras de "Carlitos", no filme "O grande ditador"4, ao afirmar de forma dramática:

"O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém, desviamo-nos dele. [...] Criamos a época da produção veloz, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz em grande escala, tem provocado a escassez. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humani-dade; mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura! [...]".

Nesse já conhecido discurso do aclamado filme de Chaplin, o antinazismo é menos aparente do que uma concepção de vida e das amarguras do trabalho humano, dependente da velocidade intensa e da relação imediata com a escassez, não só material, porém de uma razão humana que nega sentimento e doçura de viver. Aqui não se vê a farsa ou a ironia que a película trabalha bem, não apenas em palavras, mas em gestos e expressões faciais e corporais. Vê-se o drama da vida humana. E, muito especialmente, o drama do trabalho humano, inúmeras vezes forçado, não acobertado pela legislação ou intensamente dramático quanto à intensidade de sua realização, a questão da jornada dupla de trabalho, na maioria das vezes do atarefamento feminino. Mulheres e homens, especialmente as primeiras, que após oito horas de trabalho intenso retornam a suas moradias e continuam com uma jornada extra, permanentemente invisível à sociedade e, inclusive, à sua própria família ou vizinhança. Por qual tipo de justiça estão eles acobertados?

2. Justiça como promoção de bem estar e de "bem viver"

Indaga-se, inicialmente, sobre algo bastante fácil de responder: deve-se preferir uma sociedade justa e igualitária ou uma sociedade de desigualdades e de injustiças evidentes e simbólicas? Sem dúvida esta indagação não possui resposta imediata e simples. Para respondê-la teremos que fazê-lo à vista de determinados parâmetros. E esses parâmetros são as condições de justiça de outras sociedades e, até comparando o acesso à justiça de outros grupos em uma mesma sociedade.

Suponha-se, conjeturando, haver sociedades onde o acesso a bens, serviços e a questões supostamente subjetivas como o bem viver e a felicidade são elementos igualmente distribuídos e realizados para e por todos. Ainda não as há de forma plena. Se houvesse a possibilidade de se colocar as sociedades mundiais em uma linha com limites opostos, de um lado as primeiras - sociedades com pleno acesso à justiça pessoal e coletiva - e do outro, aquelas que lhes são antagônicas, poder-se-ia observar que todas elas se localizariam entre esses dois pontos de forma diferenciada: algumas mais próximas do primeiro ponto, outras do segundo e, ainda outras

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equidistantes dos dois limites opostos. Depreende- -se, portanto, que não se pode pensar em uma justiça em sentido absoluto, em um único ponto, mas consensual em termos de valores ideais de justiça segundo parâmetros socioculturais.

Pode-se afirmar que a justiça é boa por si? Isto só ocorrerá quando ela for passível de ser avaliada no sentido de bem estar e da "vida boa" conforme a concepção ou os parâmetros e princípios consensualizados entre os principais agentes de determinados...

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