Acerca do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Abusivas no Direito da União Europeia

AutorJ. Pegado Liz
CargoConselheiro membro do Comité Económico e Social Europeu (CESE) em representação dos consumidores
Páginas221-290

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1. Introdução

O texto ainda hoje em vigor na UE relativamente à regulamentação a nível comunitário das cláusulas contratuais abusiva é a Diretiva 93/13/ CEE, de 5 de abril de 19931.

Como referido e documentado noutro artigo2, foi tardia e não isenta de dificuldades e de limitações a descoberta e a adoção de uma legislação comunitária relativa às cláusulas contratuais abusivas.

E, no entanto, é de abril de 1975 a primeira referência em documento da Comissão à necessidade de os estados europeus se dotarem de legislação nesta matéria3e de novembro de 1976 a resolução precursora do Conselho da Europa4.

Foi contudo preciso esperar até ao ano de 1984 para que a Comissão apresentasse a sua primeira comunicação sobre as cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores e ainda cerca de mais dez anos para a publicação da Diretiva 93/13/CEE, quando já variados estados-membros à data tinham avançado com as suas próprias iniciativas legislativas, entre os quais Portugal.

Isto espelha bem a dificuldade e o melindre de uma iniciativa legislativa comunitária que, pela primeira vez, mexe no cerne do direito civil dos estadosmembros e relativamente à qual eram divergentes as perspectivas dos sistemas jurídicos já em vigor nesses mesmos estados.

É certo que a doutrina há muito se havia debruçado sobre a questão das cláusulas contratuais gerais, nomeadamente a propósito do desenvolvimento que se havia verificado, a partir dos anos 1950, dos chamados “contratos de adesão”, como os batizou o grande jurisconsulto francês SALEILLES, em 19015, de que as apólices de seguro eram o paradigma6, e das concepções então nascentes relativas ao “direito justo”, ao “equilíbrio contratual” e à proteção da “parte fraca”.

Mas foi efetivamente na década de 1970 que, primeiro na Alemanha7e depois em vários outros países europeus, os ordenamentos jurídicos positivos consagraram disposições legais sobre as chamadas “cláusulas abusivas”8.

Foi com este acervo legislativo e doutrinal e ainda com a jurisprudência que entretanto se ia formando nos estados-membros que a Comissão se teve de defrontar quando decidiu avançar com a sua proposta a nível comunitário nos meados dos anos 1980.

Tal doutrina, europeia e nacional9, primou pelo afeiçoar de conceitos e pelo precisar dos interesses em causa, de que a jurisprudência, nos diversos

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países, iria aplicando aos casos concretos, formando um sólido corpo de decisões, donde era possível extrair uma orientação bem definida e estruturada em cada um deles, mas não coincidente nem convergente.

Foi aquele, aliás, momento raro de confronto de ideias e de opiniões que não pode deixar de se recordar aqui, quando, por iniciativa de um então mais jovem Prof. Mário Frota, reuniu-se em Coimbra, em 1988, um escol ímpar de eminentes juristas e representantes de empresários e de consumidores de todo o mundo no 1º Congresso Europeu das Condições Gerais dos Contratos10.

A primeira proposta da Comissão, feita de compromissos e ambiguidades, indispensáveis para granjear a então necessária unanimidade11, que o Reino Unido tentou até ao último momento impedir, manifestando-se ferozmente quanto à iniciativa, que ia, alegadamente ao arrepio da sua lei nacional sobre os “unfair contract terms”12, foi objeto de acerbas críticas desde logo pelo Parlamento Europeu13.

Também o Comité Económico e Social, congratulando-se embora com a iniciativa da Comissão como forma de “restabelecer o equilíbrio nos contratos celebrados pelos consumidores”, não deixou, para além de várias observações na especialidade, de chamar a atenção para a “inconveniência de aproximar o direito dos contratos enquanto tal” e para o “crescente risco de incerteza jurídica tanto para os consumidores como para os fornecedores, dado o papel essencial dos tribunais em matéria contratual”, os quais, “mesmo baseando-se num instrumento legislativo harmonizado interpretarão de forma diferente disposições idênticas, em função da evolução do direito dos contratos e dos consumidores no respectivo Estado-membro e, de um modo geral, em função da cultura e tradição jurídicas”14.

E também não surpreenderá o fato de a sua transposição se ter arrastado por vários anos15e de ter sido objeto mesmo de vários processos movidos pela Comissão, alguns dos quais chegaram até ao Tribunal de Justiça, por transposição tardia, incompleta ou incorreta16.

É que, um pouco por toda a parte, e em particular nos países cujos ordenamentos jurídicos já consagravam sistemas por vezes bem mais avançados e tecnicamente mais perfeitos do que o constante da diretiva, houve a noção da sua inutilidade ou mesmo do prejuízo da introdução de um instituto jurídico desfasado das realidades nacionais a que os sistemas existentes respondiam melhor do que o novo regime comunitário17.

No entanto, na medida em que o dispositivo comunitário regia exclusivamente para os “contratos celebrados com os consumidores”, podendo assim considerar-se “lei especial”, e principalmente porque consagrava o

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princípio da harmonização mínima18, a diretiva acabou por ser transposta e passou a fazer parte do acervo comunitário em matéria de direito comunitário do consumo.

2. Breve súmula do regime da Diretiva 93/13/CEE
2.1. Finalidade

Apesar das limitações e das circunstâncias que estiveram na sua génese, a Diretiva 93/13/CE acabou por constituir um exemplo de legislação simples e sintética que, em 11 artigos, define, de forma escorreita, um regime jurídico comunitário para uma das áreas mais complexas do direito dos contratos.

O seu objetivo é, desde logo, claramente fixado no seu artigo 1º – a aproximação das disposições legislativas regulamentares e administrativas dos estados-membros relativas às cláusulas abusivas em contratos celebrados entre profissionais e consumidores, objetivo que a diretiva enquadra na necessidade de garantir a progressiva realização do mercado interno, nas “divergências marcantes” das legislações respectivas dos estados-membros e no seu desconhecimento pelos consumidores que os dissuade de efetuar transações diretas noutro Estado que não seja o da sua nacionalidade e nas “distorções de concorrência” entre os profissionais aquando da comercialização noutros Estados-membros.

A Comissão teve corretamente a percepção de que “a utilização de cláusulas que desequilibrem significativamente as relações contratuais entre as partes prejudica não só os interesses da parte que sofre com a utilização destas cláusulas, mas ainda a ordem jurídica e económica. Com efeito, as cláusulas contratuais gerais são vocacionadas para substituir as soluções jurídicas estabelecidas pelo legislador, substituindo, ao mesmo tempo, os padrões de justiça em vigor na comunidade por soluções procuradas de forma unilateral com o propósito de maximizar os interesses particulares de uma das partes”19.

2.2. Campo de aplicação

O campo de aplicação da diretiva é definido por uma disposição positiva e três disposições negativas.

De um lado, ela aplica-se apenas às cláusulas constantes de contratos celebrados entre profissionais e consumidores20, sendo que o “consumidor é definido, de forma restrita, como “pessoa singular” que atue com fins que não pertençam ao âmbito da sua atividade profissional21, e o “profissional” é

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a outra parte que atua “no âmbito da sua atividade profissional, pública ou privada”22.

Por outro lado, ela não se aplica
a cláusulas que tenham sido objeto de negociação individual (art. 3º, nº 1) – sendo importante esclarecer aqui que não se trata, de um lado, do contrato no seu conjunto, que pode ser objecto de negociação, mas apenas das suas clausulas, nem, de outro lado, exclusivamente de contratos de adesão, podendo ser aplicada a contratos feitos para um único consumidor, desde que as clausulas não tenham sido efectivamente negociadas23, sendo certo que é ao profissional que incumbe a prova de que qualquer cláusula normalizada tenha sido negociada individualmente (art. 3º nº 2 III);

– as cláusulas decorrentes de disposições legislativas ou regulamentares imperativas dos Estados-membros ou de disposições ou princípios previstos em convenções internacionais de que os Estados-membros ou a Comunidade sejam parte (art. 1º, n. 2)24;

– a cláusulas que respeitem à definição do preço ou ao objeto principal do contrato, desde que redigidas de maneira clara (art. 4º, n. 2)25.

2.3. Princípios fundamentais

Vários princípios fundamentais presidiram à elaboração desta diretiva, destacando-se, desde logo, o já referido da harmonização mínima (artigo 8º), com isso significando que os estados-membros podiam não só manter as disposições nacionais mais protetoras dos consumidores, como igualmente adotar medidas mais rigorosas, desde que compatíveis com o Tratado e, designadamente, com os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade26.

Outro princípio fundamental é o do equilíbrio...

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