Accountability, transparência e assimetria das relações de visibilidade virtuais: análise dos aspectos antidemocráticos das novas tecnologias da informação e comunicação a partir da ideia de filtro bolha

AutorElias Jacob de Menezes Neto - Jose Luis Bolzan de Morais - Fabrício Germano Alves - Igor da Silva Gomes
CargoMestre e Doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) - Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Páginas62-87

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Accountability, transparência e assimetria das relações de visibilidade virtuais: análise dos aspectos antidemocráticos das novas tecnologias da informação e comunicação a partir da ideia de filtro bolha

Accountability, transparency and asymmetry of virtual visibility relations: analysis of the antidemocratic aspects of the new information and communication technologies from the idea of filter bubble

Elias Jacob de Menezes Neto*
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal/RN, Brasil

Jose Luis Bolzan de Morais**

Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo do Sul/RS, Brasil

Fabrício Germano Alves***

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Caicó/RN, Brasil

Igor da Silva Gomes****

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Natal/RN, Brasi

* Mestre e Doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor adjunto do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, campus de Caicó/RN. Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica e do Laboratório de Governança Pública, ambos da UFRN. E-mail: contato@eliasjacob.com.br.

** Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 1D. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Mestrado e Doutorado. E-mail bolzan@hotmail.com

*** Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutor em Direito pela Universidad del País Vasco. Professor adjunto do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, campus de Caicó/RN. E-mail: fabriciodireito@gmail.com

**** Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro do Laboratório de Governança Pública da UFRN. E-mail: igor_sgomes1210@hotmail.com

Direito, Estado e Sociedade n.53 p. 62 a 87 jul/dez 2018

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1. Introdução

As novas tecnologias da informação e comunicação (TICs) permitem o estabelecimento de novas relações sociais, assim como o surgimento de problemas igualmente novos, o que, consequentemente, faz surgir um espaço vazio de regulamentação que não pode ser preenchido pelo tradicional direito, que, historicamente ligado a uma perspectiva centrada no Estado, se encontra incapaz de preencher essa lacuna.

Nessa linha de raciocínio, em virtude desse vácuo regulatório, ocorre a apropriação do espaço digital pelo poder privado, o que amplia, ainda mais, a coleta, armazenamento e processamento de dados em larga escala (big data). Essa situação, conforme será visto neste artigo, atinge, especificamente, a democracia, que necessita de visibilidade e de accountability, elementos que não são encontrados no atual cenário de uso privado das tecnologias da informação.

Desse modo, buscar-se-á demonstrar que, embora o acesso de dados pessoais por entidades esteja baseado em uma relação de transparência, trata-se de um tipo de visibilidade que é completamente distinta daquela relacionada aos regimes democráticos. Tal fenômeno ocorre porque as TICs possibilitam a formação de uma visibilidade assimétrica, como acontece com um espelho falso: de um lado, Estados e empresas coletam e analisam, cada vez mais, dados sobre as pessoas com finalidades diversas; de outro, aumenta a opacidade sobre como esses dados são capturados e processados.

Assim, em virtude da sua obscuridade, os critérios para utilização desses dados permanecem fora do debate democrático, além de serem elaborados por indivíduos que não foram eleitos democraticamente. Isto torna ainda mais grave o fato de que não existe uma distinção entre quem cria e quem aplica a “lei” desse direito paralelo – nesse caso, simbolizado pelos códigos de computador.

A incerteza gerada por um código de modus operandi desconhecido e que possui autoexecutoriedade, sem a mínima possibilidade de resistência é, sem dúvida, um risco para a democracia.

Além desse problema de visibilidade, as análises de big data viabilizadas pelas novas TICs permitem a criação do chamado “filtro-bolha”, que consiste na construção de um espaço de experiência virtual pasteurizada, onde não há lugar para a construção de perspectivas que divirjam do mundo criado para o usuário. Isso se faz possível através da personalização extrema viabilizada pelas técnicas de data-mining e big data.

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Essas técnicas permitem que entidades diversas consigam avaliar os interesses dos indivíduos, objetivando criarem uma experiência prazerosa e sem atritos no uso da Internet. No entanto, esse “filtro” impede que as pessoas se conectem às outras, inviabilizando a oxigenação de ideias e a pluralidade de perspectivas, tão essenciais à formação de uma esfera pública diversa, o que tem efeitos deletérios para a democracia.

No mesmo sentido, será visto que a proliferação de espaços privados na Internet – invólucros digitais – destrói o seu potencial democrático, uma vez que toda interação do usuário passa a ser feita em ambientes sofisticadamente desenhados para, cada vez mais, coletar informação e exercer contínua influência sobre os indivíduos. Ainda que, em muitos casos, se queira dar um falso ar de democratização desses espaços, trata-se, na realidade, de um simulacro. A democracia passa a ser apenas um produto comercializado pelas empresas de tecnologia como parte integrante do seu portfólio de serviços.

Por essa razão, ficará visível que as relações assimétricas de poder, a ausência de transparência e de accountability – todos eles elementos essenciais à democracia – fazem com que a Internet seja um ambiente antidemocrático, que, ao invés de redistribuir, reforça as relações de poder, concentrando-as nas mãos de entidades privadas, as quais são responsáveis por gerir os mais diversos sistemas operacionais de código fonte fechado, as redes sociais de software proprietário e os e-mails que são utilizados pela maioria dos indivíduos.

2. Democracia, accountability e visibilidade

As maiores disputas de poder da história, afirma Manuel Castells1, tiveram, como objetivo, a conquista da mente das pessoas. Considerando que a revolução da sociedade contemporânea é caracterizada, especialmente, pela revolução na tecnologia da informação e, também, que o modo de fazer política na sociedade contemporânea2está diretamente associado ao tipo e à quantidade de informações disponíveis sobre os indivíduos, as instituições democráticas tradicionais passam, simultaneamente, tanto a

1 CASTELLS, 2010.

2 Por todos, remete-se ao extensivo uso de bancos de dados digitais na campanha presidencial dos EUA em 2012, como pode ser visto no seguinte trabalho: NICKERSON; ROGERS, 2013.

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sofrer com os influxos de novos processos políticos, quanto a utilizar as novas tecnologias da informação para atingir os seus objetivos.

A democracia tem a visibilidade e a accountability como elementos essenciais para a sua existência. A tendência atual das tecnologias da informação demonstra que elas são utilizadas mais como ferramenta de manipulação política e econômica do que como instrumento de emancipação democrática. Tal fato se dá porque a “transparência” democrática, que permite a accountability dos detentores de poder, é diametralmente oposta à visibilidade proporcionada pelas TICs.

Nesse sentido, embora a democracia esteja sendo constantemente rein-ventada em virtude das mudanças do tecido social, ela não pode evitar a accountability dos detentores do poder, que é primordial para a existência de qualquer regime democrático representativo. Sob tal aspecto, Deborah Johnson e Kent Wayland, ao tratarem sobre o tema, afirmam que, embora as relações proporcionadas pelas TICs e a transparência envolvam a visibilidade, a ideia por trás de cada uma delas é diametralmente oposta.

Assim, a visibilidade das TICs não possui, ao contrário da transparência democrática, uma conotação positiva. Isso porque, diferentemente das TICs, “[...] a transparência sugere a operação da democracia, dos poderosos sendo responsabilizados”3.

Como resultado, ainda que seja frequente a aposta na democratização como solução para o crescente número de problemas associados às relações assimétricas de visibilidade proporcionadas pelas TICs – já que a visibilidade democrática poderia, em tese, conter seus impulsos autoritários –, existem diversos fatores que limitam as possibilidades de uma significativa invasão da accountability democrática para dentro das tecnologias da informação.

O primeiro desses fatores limitantes está ligado ao caráter eminentemente técnico dos avanços nessa área, uma vez que eles não surgem no espaço público, mas dentro de laboratórios. Tais avanços dificilmente são debatidos publicamente, sendo diretamente implementados nos diversos âmbitos da vida social sem a possibilidade de controle democrático prévio. Essa situação decorre, também, da menor velocidade do direito, da política e da democracia, incapazes, por sua natureza, de acompanhar a rapidez do desenvolvimento científico e das inovações tecnológicas.

3 JOHNSON; WAYLAND, 2010, p. 26. No original: “[…] transparency suggests the operation of democracy, of the powerful being held accountable.”

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Nesse sentido, é possível afirmar que a democracia “chega tarde”, pois o debate só é oportunizado quando as tecnologias já foram inventadas, implementadas e, portanto, “normalizadas” no âmbito social. Isso ficou claro, por...

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