Os accidentes no trabalho e a sua reparação: a contribuição de evaristo de moraes

AutorMarco Fridolin Sommer Santos
Páginas285-297

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Na atualidade, o direito acidentário do trabalho vive um momento paradoxal de efervescência e crise, provocado pelo ressurgimento de um debate secular em torno de dilemas clássicos relacionados aos direitos sociais: a) Estado Liberal versus Estado Social; b) Liberdade versus Solidariedade; c) Codificação versus Descodificação; d) Culpa versus Risco; e) Responsabilidade Civil versus Seguridade Social; f) Seguro Facultativo versus Seguro Obrigatório; g) Seguro Privado versus Seguro Público; h) Previdência versus Assistência Social; i) Etc. Sob o ponto de vista doutrinário, na origem da recepção dos direitos sociais no Direito Brasileiro, encontram-se dois livros de autoria de Evaristo de Moraes: a) “Apontamentos de direito operário”; b) “Os accidentes no trabalho e a sua reparação”.

O advento da Revolução Industrial, a urbanização e a massificação determinaram a multiplicação dos acidentes, no trânsito de trens, de navios, de automóveis, no ambiente de trabalho, etc., desencadeados pelo fenômeno do maquinismo. A nova realidade ensejou a necessidade de modificação dos pressupostos da responsabilidade civil, num tempo em que inexistia o Direito à Seguridade Social. No Brasil, após a queda do Império, em virtude da abolição do regime escravocrata, Evaristo de Moraes foi um dos primeiros cidadãos brasileiros a defender a implementação de direitos sociais. Não por acaso, pois, conforme registro de Evaristo de Moraes Filho, “desde 1890 Evaristo ingressara no incipiente movimento socialista, filiando-se ao Partido Operário...”1.

No início do século XX, o espaço para a discussão das emergentes questões operárias fora criado com a fundação do jornal Correio da Manhã. Nele, a partir de 1903, Evaristo de Moraes publicou diversos artigos, com base nos quais editou o primeiro livro jurídico dedicado aos direitos sociais no Brasil: “Apontamentos de direito operário”, de 1905. A repercussão foi tanta que o deputado Medeiros e Albuquerque, em 1904, já havia apresentado o primeiro projeto de lei acidentária. A ele se seguiram os projetos de Gracco Cardoso (1908) e do Senador Adolpho Gordo (1915), finalmente aprovado pelo Decreto n. 3.724/19.

A primeira lei de acidentes do trabalho, o Decreto Legislativo n. 3.724 de 15 de janeiro de 1919, representou um significativo avanço para o direito brasileiro. As ideias

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que moveram tal evolução foram inicialmente difundidas no direito brasileiro por Evaristo de Moraes. No capítulo I, da obra “Apontamentos de direito operário”, Evaristo de Moraes critica a liberdade de mercado como princípio regulador exclusivo das relações de trabalho, defendendo a necessidade de intervenção “legislativa” do Estado com o objetivo de “abrir caminho a alguns institutos jurídicos, especialmente destinados às classes trabalhadoras e à modificação das suas condições de existência”2. Mais adiante, Evaristo de Moraes reforça a necessidade de instituição dos direitos sociais, nos seguintes termos:

“Surgiram para o Direito, nos tempos d´agora, no meio das opressões industriais e das lutas de classes, problemas novos, que respeitam à situação da criatura humana diante da propriedade e da autoridade” (...), só a intervenção enérgica do Estado, mediante providências legislativas, pode estabelecer justas condições para o contrato de trabalho”3.

No livro “Os accidentes no trabalho e a sua reparação”, Evaristo de Moraes aprofundou o discurso. No capítulo I, sob o título “nova orientação econômica-jurídica”, Evaristo de Moraes identifica novamente o uso da legislação especial como instrumento de inter-venção do Estado. Transcreve-se:

“A teoria econômico-jurídica de que derivou a legislação, hoje vencedora, está ligada ao mais importante dos problemas sociais do nosso tempo: ao da intervenção do Estado nas relações entre industriais e operários.”

“Não se justificaria a legislação especial, protetora dos operários, em face dos princípios da Economia Política ortodoxa. Para tal resultado, foi preciso modificar, a pouco e pouco, a orientação doutrinária, na sua maneira de encarar a questão econômica, negando-se as pretensas virtudes do falso liberalismo. Verificou-se a insuficiência do princípio individualístico, que dera de si quanto possível e que já não atendia as necessidades sempre crescentes das classes proletárias.”

“Realizara a Revolução Francesa, no terreno econômico, as teorias do liberalismo individualístico que a levaram, no terreno político, à declaração dos direitos do homem. Àqueles tempos libertadores cumpria, em verdade, não tolerar o operário sujeito ao despotismo da regulamentação medieval”4.

Em sua análise, ao mesmo tempo em que reconhece a importância da Revolução Francesa para a defesa dos direitos humanos, Evaristo de Moraes critica “a insuficiência do princípio individualístico” (...) “que já não atendia as necessidades crescentes da classe operária”. Num segundo momento, formula críticas à incidência do direito comum nas relações de trabalho, que, de certa forma, justificam a descodificação do direito privado a partir da legislação especial. Transcreve-se:

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“Alvoreceu o século XIX sob o princípio da ampla liberdade do trabalho, subordinando o operário ao direito comum, que se supunha garantidor do seu bem estar e da sua independência”5.

(...)

“É interessante observar que, em um ponto, se encontram harmonizados os economistas clássicos, ou ortodoxos, os sociólogos estreitamente darwinistas e os anarquistas. Todos, una voce, repelem a intervenção protetora do Estado, chegando a querer se o reduza a uma espécie de função policial; os últimos porque lhe negam o próprio direito à existência. Todos ferrenhos individualistas, si bem que orientados diferentemente quanto ao final conflito humano, esperam da liberdade, na luta, a harmonia paradisíaca, acreditando que os lobos fraternizarão com os cordeiros, PELA SIMPLES AÇÃO DAS FORÇAS NATURAIS!”

“Os fatos gritam contra eles, mas eles não mudam, tal é a fé que os domina e que lhes esconde a realidade ambiente”6.

Não obstante as críticas ao liberalismo clássico, Evaristo de Moraes faz questão de sublinhar que não se opõe ao princípio da liberdade de iniciativa econômica. Defende, pois, a sua manutenção, sob a intervenção protetora do Estado. Transcreve-se:

“Mal ajuizaria a nosso respeito que, em vista do exposto, supusesse cairmos no exagero contrário e sermos extremado coletivista, tudo esperando da ação absorvente e monopolizadora do Estado.”

(...)

“Do concurso conjugado das atividades dos dois organismos — o individual e o coletivo — resulta o progresso, a civilização, a felicidade, a qual mais não significa que a supressão possível de todo o sofrimento inútil... 7”.

(...)

“Não é o Estado, nesta teoria intermédia, simples espectador que assiste inoperante, ao desdobrar das cenas do drama social-econômico. Ele intervém, quando os atores se afastam desordenadamente do caminho que deve levar ao desenlace conforme a justiça; modera-lhes os caprichos e as pretensões, no interesse de todos, e assim, compensa, com a sua ação harmonizadora, os impulsos egoísticos dos indivíduos.”

“Daí nasce a teoria que confere ao Estado funções de tutela, de socorro, e de educação, em favor dos fracos, sem negar a livre expansão das forças individuais quando lícita e moralmente exercidas.”

Em síntese, Evaristo de Moraes critica a ideologia do trabalho livre, sob a incidência do direito comum nas relações de trabalho, sem “cair no exagero contrário e ser extrema-

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do coletivista, tudo esperando da ação absorvente e monopolizadora do Estado”8. Com base nisso, demonstra a necessidade de intervenção do Estado, com “funções de tutela”, para corrigir suas distorções e iniquidades. No Brasil, a intervenção do Estado se fez presente mediante providências legislativas, primeiramente por meio do Decreto Legislativo
n. 3.724 de 15 de janeiro de 1919, que instituiu um regime especial de acidentes do trabalho. Afinal de contas, como refere Evaristo de Moraes, a legislação acidentária constitui “uma das mais características manifestações desta doutrina que sanciona a intervenção do Estado nas relações entre o industrialismo e o operariado”9.

No art. 159, do Código Civil de Beviláqua, o fato individual ou próprio e a culpa constituíam o fundamento único da responsabilidade civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”. A autonomia do regime especial de acidentes do trabalho instituído pelo Decreto Legislativo n. 3.724/19 foi construída sob o novo fundamento da teoria do risco profissional.

Em nível doutrinário, a recepção no direito brasileiro da teoria do risco profissional, deu-se primeiramente por meio da obra “Apontamentos de direito operário”. Na sua obra, ainda que sucintamente, Evaristo de Moraes descreve a evolução da culpa ao risco, passando pela teoria da culpa contratual, formulada em 1884 pelo jurista belga Sainctelette10:

“Há 30 anos não havia a menor discordância entre os civilistas acerca da maneira de entender a responsabilidade dos patrões para com os operários, quanto estes, nas fábricas, minas, lugares de depósito, etc., vitimados por acidentes eram prejudicados na saúde ou na vida. Existia, sustentavam todos, um caso de culpa delituosa (...). (...) A falsidade desse conceito foi demonstrada, primeiramente, (se não nos enganamos) por Sainctelette jurisconsulto belga. (...) Ele deixou fora de dúvida que o operário e o patrão, quando se ligam pelo contrato de trabalho, contraem obrigações especialíssimas, dentre as quais não é menos importante a da segurança material, que o empregador deve dar ao empregado. (...) Daí resulta que a culpa do patrão para com o empregado é resultante do contrato”11.

Posteriormente, Evaristo de Moraes observa que a culpa como fundamento da responsabilidade civil do empregador, tanto delitual quanto contratual, obstaculizava a tutela em juízo dos trabalhadores...

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