Ação Típica

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas95-132

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3.1. Conceito e elementos estruturais atuação e vontade direcionada

A vida humana - na sua totalidade - se desenvolve mediante nossas atividades, voltadas a objetivos que buscamos realizar. Nada se concretiza, no contexto de nossa existência, se não há uma atuação de nossa parte endereçada a determinado fim. Toda evolução da vida humana resulta de um complexo de ações praticadas. Não há momento, não existe instante, em que o ser humano deixe de realizar uma ação, com o propósito de cumprir certa finalidade ou satisfazer determinada necessidade. Se agora esta obra é examinada pelo leitor, isso se deve a uma ação, que visa a atender a um escopo. Igualmente, se escrevemos, falamos, dormimos, respiramos, andamos, trabalhamos, nos alimentamos... realizamos ações que atendem metas ou satisfazem necessidades especiais. Como acentua Bleger, a conduta humana assenta-se sobre um dualismo ou uma dicotomia corpo-mente, no qual a mente tem existência própria e é o ponto de origem de todas as manifestações corporais, pois o corpo é somente um instrumento ou um veículo do qual se vale a mente para manifestar-se169.

A ação sempre é fruto de uma decisão humana. Por meio da ação, anota Paulo José da Costa Júnior, o querer íntimo transborda e a conduta adquire realidade, ingressando no mundo fenomênico depois de elaborada no mundo intrapsíquico170.

De maneira diversa não sucede com o crime.

Sendo o delito realização humana, é iniludível que obedece ao impulso da vontade, que se exterioriza pela atividade desenvolvida pelo autor. De tal arte, também o crime depende, substancialmente, de uma ação que o concretize e o faça projetar-se do plano meramente abstrato e hipotético (v. n. 1.9) para ganhar existência real e efetiva.

É exatamente em torno da ação que tudo se desenvolve para a inteireza do crime. É ela que concentra todos os demais elementos que integram o delito. Por esse motivo, na definição legal do crime, a ação constitui o núcleo do tipo, id est, seu elemento central e fundamental, em torno do qual se agrupam, agregam e gravitam os demais elementos descritivos.

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A ação típica (a Handlung do direito germânico) é identificável na definição do crime pelo verbo no infinitivo, quando este não seja modalidade complementativa de outro verbo (núcleo) em idêntica forma nominal. Sob esse prisma, matar é a conduta incriminada no art. 121 do CP, subtrair no art. 155, devassar no art. 151, alterar no art. 166, induzir no art. 227, desobedecer no art. 330 etc. Já o verbo no infinitivo a suicidar-se, explicitado no art. 122, é forma complementativa dos núcleos induzir ou instigar, da mesma maneira que causar-lhe, no art. 147, complementa o elemento nuclear ameaçar; praticar ou permitir completam constranger no art. 213; satisfazer, no art. 345, integra o núcleo fazer; entrar ou permanecer complementam o elemento nuclear usar no art. 309..., entre outros tipos similares.

De outro turno, verbos no gerúndio não constituem - via de regra - o núcleo do tipo e indicam, na maioria das vezes, maneira de execução determinada, conferindo ao delito forma vinculada (v. n. 3.2).

Mas, na qualidade de conduta típica incriminada, a ação pressupõe, para progredir de seu modelo abstrato à concreção, a atividade do agente no mundo exterior, meio único para ele realizar o seu propósito.

Nesse aspecto, a ação representa a forma de o sujeito ativo consolidar a sua vontade no plano fenomênico.

É insofismável, portanto, que, sendo a conduta incriminada manifestação do comportamento humano, sofre a influência de uma vontade, que a determina e dirige para a consecução de certo fim.

Como disse Aristóteles, "todo ser humano age visando a um fim", motivo pelo qual o agir humano sempre é finalístico.

O impulso volitivo ou anímico, voltado a um desígnio determinado, revela-se uma característica que não pode ser dissociada da ação. A conduta necessariamente pressupõe um comando ou decisão de parte do agente e não existe, como é de meridiana clareza, quando o movimento é simplesmente mecânico. A ação é obra inteligente, oriunda de ser dotado de razão, motivo pelo qual obedece à orientação da vontade. Não se cuida, pois, de acontecimento cego e incalculável, como os que sucedem por forças da própria natureza, a exemplo da queda de um raio, uma enchente, terremoto, erupção vulcânica... Ao contrário, a conduta típica é um comportamento dirigido, psicologicamente encaminhado pelo sujeito ativo para determinado fim.

Desse modo, não há como não fazer caso - segundo professam os partidários da chamada teoria naturalista da ação - da presença da vontade orientando a atividade desenvolvida pelo agente.

É preciso, destarte, examinar a existência da vontade na conduta exteriorizada, assim como perscrutar da direção desta vontade.

Esta avaliação a respeito do conteúdo subjetivo da ação assume vital importância, não somente para efeito de identificação típica entre o núcleo abstrato do tipo e a conduta praticada no plano físico, como, até, para a constatação da exata figura típica junto à qual se opera a subsunção do episódio.

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Deveras.

Se alguém é flagrado quando, sobre o corpo de certa pessoa, prostrada no solo, a agredia, como tipificar o comportamento delituoso junto às figuras da lesão corporal (art. 129, CP) ou tentativa de estupro (art. 213 c.c. art. 14, n. II, CP) se não for avaliada a direção da vontade do autor? Somente após examinar-se o que ele efetivamente pretendia com a conduta, id est, unicamente ferir ou utilizar de sua força para a prática de ato sexual, será possível concluir para qual modelo típico propenderá a adequação do fato.

Se certa pessoa causa a morte de outra, apenas depois de analisada a intenção do sujeito ativo será tipificável a conduta junto ao crime de homicídio (art. 121, CP) ou lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º, CP).

Se o agente é surpreendido no interior de casa alheia que invadiu, a tipificação de sua conduta na violação de domicílio (art. 150, CP) ou tentativa de furto (art. 155 c.c. art. 14, n. II, CP) só será azada após constatada a finalidade que o animava na ocasião.

De outra parte, sem o exame, no plano da tipicidade, do propósito do agente, não é possível diferenciar o crime de perigo do início da execução de um crime de dano

(v. n. 15.4).

Ainda nesta vereda: a maior gravidade que o homicídio doloso apresenta em relação ao homicídio culposo e o tratamento penal mais severo dado ao primeiro crime comparativamente ao último decorrem exclusivamente da direção da vontade do autor, uma vez que em ambos o resultado é idêntico, qual seja, a morte da vítima.

Dessume-se do exposto que o aspecto volitivo é imanente à conduta típica, é um componente de sua estrutura, da mesma forma que a gema e a clara estão para o ovo.

Por via de consequência, e expressando-se o estado anímico por meio do dolo, culpa ou preterdolo (v. n. 14.1), é inquestionável que estas modalidades volitivas integram, em parte, o tipo no que respeita ao núcleo (v. infra).

Se a vontade finalisticamente dirigida representa um componente estrutural da ação, é indiscutível que a tipicidade não é possível quando, na atuação praticada no mundo exterior, se verifica a supressão ou anulação do elemento volitivo.

Quis dormit non pecat !

Se alguém, em estado hipnótico profundo, cumpre a determinação do hipnotizador para subtrair determinado objeto pertencente a outrem, é translúcido que sua atividade apresenta-se desprovida de volição. Por conseguinte, o crime de furto não lhe pode ser atribuído e só será imputável ao autor da ordem (v. n. 21.13).

Se um sonâmbulo, durante crise acentuada, aproxima-se do parapeito da janela do edifício de apartamentos em que reside e arremessa um vaso à rua, causando a morte - por fratura de crânio - de transeunte que por ali passava, sua atividade física, pela completa carência do impulso anímico, nenhum delito tonaliza.

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No exemplo de Juan Del Rosal, as palavras injuriosas que são ditas por aquele que, dormindo, fala sonhando, carecem de significação jurídica171.

Crime de homicídio culposo, pelo mesmo motivo, não se aperfeiçoa se o motorista sofre, no volante do automóvel, repentino e inesperado desmaio e, como efeito, vem a colher e matar um pedestre com o veículo desgovernado.

Sicrano traz consigo criança de colo. Caminha normalmente. Não obstante, tropeça e cai. A criança, em razão da queda, sofre lesões corporais. Estas, porém, ressentem-se da falta de tipicidade, ante a carência de elemento volitivo no acontecido com Sicrano.

Nos movimentos musculares puramente instintivos ou reflexos, se deles provém um resultado de dano considerado pela lei penal, também não há crime a requestar punição, pela ausência do componente anímico.

Se epilético, no decorrer da convulsão, se debate agitadamente e culmina por atingir e ferir, num movimento mecânico das mãos ou pés, circunstante que se aproximara para prestar-lhe socorro, o episódio é indiferente ao Direito Penal.

Se alguém tropeça e, para não cair, estende os braços à frente procurando ponto de apoio e sustentação para recuperar o equilíbrio, mas atinge, com o movimento instintivo, pessoa próxima e acaba ferindo-a, é irrefragável que nenhum delito tomará configuração jurídica.

Não há tipicidade, na ilustração de Rogério Greco, no caso daquele que, ao colocar o fio de seu aparelho de som em uma tomada, recebe uma descarga elétrica e, num efeito reflexo, ao movimentar seu corpo, atinge outra pessoa, causando-lhe lesões172.

Como remarca Soler, quando alguém atua tão somente como corpo, em estado de inconsciência total, diz-se que não há ação173.

Supressão da vontade...

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