Ação rescisória baseada em violação de norma jurídica

AutorLuiz Guilherme Marinoni
CargoProfessor Titular da Universidade Federal do Paraná
Páginas259-300
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Revista Judiciária do Paraná – Ano XIV – n. 17 – Maio 2019
Ação rescisória baseada em violação de norma
jurídica
Luiz Guilherme Marinoni1
Professor Titular da Universidade Federal do Paraná
1. Violar manifestamente norma jurídica
1.1 Da violação de literal disposição de lei à violação de
norma jurídica
O . , V,     armava que a decisão de mérito
podia ser rescindida em caso de violação de “literal disposição de lei. A
norma correspondente do Código de Processo Civil de 2015 – art. 966,
V – diz que a decisão de mérito pode ser rescindida quando “violar
manifestamente norma jurídica”.
Salta aos olhos da comparação entre os dois artigos a relação entre
“literal disposição de lei” e “norma jurídica”. Seria possível imaginar
que o legislador aludiu a “norma jurídica” para evidenciar que a ação
rescisória não é cabível apenas em caso de violação de lei, mas também
na hipótese de violação de princípio ou de norma consuetudinária.
Essa ideia não é apenas simplista, mas antes de tudo reducionista da
complexidade de uma questão teórica da mais alta importância.
A comparação entre “literal disposição de lei” e “norma jurídica”
permite uma íntima relação da norma do inciso V do art. 966 com a
evolução da teoria da interpretação. Seria muito improducente, em ter-
mos de aperfeiçoamento do direito, alterar a legislação processual sem
libertá-la de teorias jurídicas ultrapassadas, mantendo-a refém de con-
ceitos que não mais devem ser utilizados. A ideia de “violação de literal
disposição de lei” é própria a uma cultura jurídica que já não mais exis-
te, ou melhor, a uma teoria da interpretação que há muito se mostrou
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incapaz de dar conta da realidade da atividade do intérprete e do juiz.
Exatamente por isso, ler o inciso V do art. 966 como se apenas houvesse
trocado disposição de lei por norma jurídica – ou estivesse falando de
lei em sentido mais amplo – é deixar de identicar um problema teó-
rico que nunca permitiu o uso adequado da ação rescisória e, mais do
que isso, não contribuir para o desenvolvimento do direito.
1.2 Violação à literal disposição de lei como fenômeno
típico do “formalismo interpretativo”
A teoria formalista da interpretação – também chamada cognitiva
– tem sustentação nos princípios do Estado legislativo, em que a tarefa
do juiz se submetia à do legislador. Para essa teoria, a interpretação, en-
quanto atividade, tem natureza cognitiva. Investiga-se para descrever.
O juiz, ao interpretar, investiga o signicado do texto legal e então o
descreve
2
.
Entende-se que a “norma jurídica” está implícita no texto legal. O
juiz interpreta para armar o que está gravado no texto. Esse tipo de
interpretação tem ao seu lado as ideias de completude e coerência do
direito. Portanto, o juiz não atua com qualquer discricionariedade. Ao
decidir, sempre está preso a uma norma preexistente. De modo que a in-
terpretação, enquanto produto, é um mero enunciado descritivo, sujei-
to ao teste da verdade e falsidade; há apenas uma interpretação correta3.
Na teoria formalista a interpretação está presa à norma que está no
texto legal. A decisão é inteiramente determinada pela lei para que os
valores do Estado legislativo sejam observados. A estrita aplicação da
lei é o sustentáculo da segurança jurídica. Na verdade, como adverte
Jerzy Wróblewski, se a interpretação judicial está vinculada à lei, a deci-
são consegue ser tão estável e segura quanto ela, podendo-se dizer, a
mesmo, que a lei é quem decide o caso concreto4.
Trata-se de posicionamento hermenêutico historicamente associado
aos trabalhos da Escola da Exegese, desenvolvidos no século posterior
à publicação do Código Civil francês. Nesse período, motivados pela
desconança em relação aos juízes
5
e amparados na ideia de respeito à
vontade histórica do legislador
6
, os exegetas contrariaram a orientação
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dos redatores do Código Civil francês
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e declararam que ao Judiciário
caberia pronunciar as palavras da lei para dar solução aos casos.
Embora desacreditada, essa teoria ainda está presente no pensa-
mento jurídico comum e no estilo da fundamentação das decisões judi-
ciais. É realmente curioso o fascínio que a teoria formalista ainda exer-
ce sobre os tribunais e alguns institutos. Adverte Riccardo Guastini que
a teoria pode ser relacionada à própria corte de cassação8. Sem dúvida,
caso a função das cortes supremas seja resumida à tutela do legislador
ou da lei, a sua tarefa interpretativa encon-
trará lugar confortável dentro do modelo
formalista. Não é demais lembrar, aliás, que
muito embora hoje exista consciência teó-
rica de que a função das cortes supremas
de civil law só pode ser a de atribuir senti-
do ao direito, algumas cortes supremas de
países de direito altamente desenvolvido –
como por exemplo a Itália – ainda tentam
exercer a função que foi concebida para a
cassação por aqueles que a viam a partir da
teoria formalista da interpretação9.
Assim, não deve haver surpresa ao se perceber que o pensamento ju-
rídico ainda é povoado pela ideia de que o juiz pode “violar literal dispo-
sição de lei”, como se a lei tivesse um conteúdo – a norma – que pudesse
ser determinado ou como se a interpretação “correta” pudesse declará-lo.
Note-se que só é possível pensar em violação de lei ou de disposição
de lei quando se supõe que a lei contém a norma que deve ser aplica-
da pelo juiz. Quando se admite que a interpretação tem a função de
declarar ou revelar a norma preexistente ao próprio conito, a decisão
judicial que invoca a lei, mas revela e aplica outra norma, logicamente
viola a lei. Portanto, o mesmo motivo que admite que se diga que a de-
cisão, diante do formalismo interpretativo, é sujeita ao teste da verdade
e da falsidade é o que permite armar que a decisão pode violar a lei.
Há violação da lei quando a interpretação é falsa, porque destoante da
norma que sempre esteve contida na lei.
A teoria formalista
da interpretação –
também chamada
cognitiva – tem
sustentação nos
princípios do
Estado legislativo,
em que a tarefa do
juiz se submetia à
do legislador
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