Ação judicial da sabesp contra o estado de São Paulo - Estudo de caso de uma companhia aberta em litígio com seu acionista controlador

AutorLuís Felipe F. Kietzmann
Páginas151-163

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1. Introdução

Causa perplexidade a informação de que a SABESP, empresa de saneamento fundada em 1973 e desde então controlada pelo Estado de São Paulo, tenha proposto ação judicial de cobrança em face do seu acionista controlador. O presente estudo presta-se à análise desse caso, visando a entender sua origem e sua relação com diversos institutos do direito societário e do mercado de capitais.

2. Síntese societária da SABESP

A Cia. de Saneamento Básico do Estado de São Paulo/SABESP é sociedade de economia mista, fundada pelo Poder Executivo do Estado de São Paulo, mediante autorização da Lei estadual 119, de 29.6.1973.1Pode-se considerar o advento do Plano Nacional de Saneamento/PLANASA, instituído pelo Decreto-lei 949, de 13.10.1969, como marco inicial para constituição da SABESP. O PLANASA pretendia eliminar o déficit de saneamento por meio da criação de sociedades de economia mista (com controle majoritário dos Estados) que pudessem ter acesso aos recursos disponibilizados para o setor de saneamento, sobretudo do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço/FGTS. Conforme a Fundação Energia e Saneamento,2 tratava-se de uma concepção centralizadora e de organização dos serviços públicos em bases empresariais. Assim, diversos Estados

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criaram sua respectiva empresa de saneamento para operar serviços de fornecimento de água e coleta de esgoto nos Municípios, por meio de regime de concessão.

A SABESP resultou da fusão entre as estatais Cia. Metropolitana de Água de São Paulo/COMASP e Cia. Metropolitana de Saneamento de São Paulo/SANESP, da absorção da totalidade do patrimônio da Superintendência de Água e Esgotos da Capital/SAEC e de parte dos patrimônios da Cia. de Saneamento da Baixada Santista/SBS, Cia. Regional de Água e Esgotos do Vale do Ribeira/SANEVALE e do Fomento Estadual do Saneamento Básico/FESB.

Conforme Lei estadual 8.523, de 29.12.1993, com redação alterada pela Lei estadual 11.454, de 2.9.2003, o Poder Executivo do Estado de São Paulo foi autorizado a alienar ações de propriedade da Fazenda do Estado representativas do capital social da SABESP. Contudo, a Fazenda do Estado deve manter a quantidade mínima correspondente a mais da metade das ações com direito a voto do capital social da companhia, de modo a assegurar sua condição de acionista controladora.

Com efeito, a SABESP abriu seu capital em 1994, e em 2002 passou a ter suas ações negociadas no segmento do Novo Mercado da Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros de São Paulo/BM&FBovespa e na Bolsa de Nova York/NYSE, na forma de American Depositary Receipt. Conforme seu Estatuto Social, de 23.4.2012, o capital social da SABESP é de R$ 6.203.688.565,23, total-mente subscrito e integralizado, dividido em 227.836.623 ações ordinárias. O capital divide-se em 50,3% de titularidade da Fazendo do Estado de São Paulo e 24,8% e 24,9% de acionistas da BM&FBovespa e da NYSE, respectivamente.3

3. Controvérsia entre a SABESP e o Estado de São Paulo
3. 1 Origens da controvérsia entre a SABESP e o Estado de São Paulo

Quando da constituição da SABESP, em 1973, vigorava a Lei estadual 4.819, de 26.8.1958, posteriormente revogada pela Lei estadual 200, de 13.5.1974, que assegurava aos servidores das autarquias e sociedades anônimas em que o Estado fosse detentor da maioria das ações benefícios de salário-família, complementação de aposentadoria e concessão de pensão e de licença-prêmio, que eram assegurados aos demais servidores públicos do Estado de São Paulo ("acréscimos sociais e previdenciários").

Tendo sido benefícios instituídos pelo Estado de São Paulo em favor de funcionários de autarquias e sociedades anônimas que este controlasse, a SABESP entendeu que era o próprio Estado o titular dessas obrigações de pagamento. Nesse sentido, apontou que a lei estadual inclusive previu a criação de "Fundo de Assistência Social do Estado", o qual teria por objetivo assegurar a concessão dos acréscimos sociais e previdenciários bem como a reserva de um orçamento especial da Secretaria da Fazenda para essa finalidade.4A SABESP alegou, contudo, que fora historica-

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mente "orientada" pelo Estado de São Paulo a arcar diretamente com os encargos decorrentes da Lei estadual 4.819, de 26.8.1958.

Ao longo das décadas de 1970 e 1980 a controvérsia entre SABESP e Estado de São Paulo relacionada aos benefícios decorrentes da Lei estadual 4.819, de 26.8.1958, estava mais relacionada à extensão do que à responsabilidade pelos pagamentos, que seguiam sendo realizados diretamente pela SABESP. Dentre inúmeros outros pontos, se discutia, por exemplo, se a disposição contida na Lei Estadual de nº. 200, de 13 de maio de 1974, que revogou a Lei estadual 4.819, de 26.8.1958, no sentido de que os beneficiários até aquela data manteriam os direitos adquiridos aproveitaria aos funcionários da SABESP provenientes de empresas ou autarquias cuja lei de criação vedasse tais concessões.

A partir dos registros que a SABESP apresentou quando do ingresso de ação judicial contra o Estado de São Paulo, é possível extrair diversas informações sobre o imbróglio. De início se destaca que o assunto era de fato complexo, relacionado à necessidade de a SABESP e o Estado de São Paulo acomodarem benefícios de funcionários advindos de diversas empresas e autarquias públicas que constituíram a companhia. Verifica-se que a partir da criação da SABESP o tema dos benefícios relacionados à Lei estadual 4.819, de 26.8.1958, foi objeto de diversas discussões entre SABESP e Procuradoria-Geral do Estado, bem como de normas esparsas da companhia; até que em 1.9.1994 a SABESP editou sua chamada Norma Interna 56, pela qual consolidou as regras relativas a salário-família, complementação de aposentadoria e concessão de pensão e de licença-prêmio aplicáveis a servidores e pensionistas.

A controvérsia, contudo, estava longe de chegar ao fim. Em assembleia-geral extraordinária da SABESP, de 21.11.1996, o Estado de São Paulo, por meio da sua Procuradora do Estado, requereu que constasse em ata que a SABESP estava proibida de "interpretar" a Lei estadual 4.819, de 26.8.1958, bem como de "criar, ampliar ou inserir" qualquer dispositivo relativo aos benefícios da licença-prêmio e da complementação de aposentadoria em regulamento interno.5

Nesse contexto, a SABESP submeteu referida Norma Interna 56 para o Estado de São Paulo, ao quê a Procuradoria teria reiniciado a discussão acerca dos critérios para concessão desses benefícios, culminando em uma série de novas orientações sobre o assunto.

Em 2003 a SABESP e a Fazenda do Estado de São Paulo estavam adotando iniciativas para, grosso modo, revisar a concessão desses benefícios. Em resposta, a Associação de Aposentados e Pensionistas da SABESP/AAPS propôs ação civil pública em face de ambas, obtendo tutela judicial para manutenção dos acréscimos sociais e previdenciários na forma que vinham sendo realizados - em observância estrita, portanto, à referida Norma Interna 56 da SABESP. A sentença foi proferida nesse sentido em 30.3.2005 e posteriormente confirmada pelo TRT. Assim, ressalvada eventual reversão do julgado, as controvérsias relativas à extensão da Lei estadual 4.819, de 26.8.1958, para a SABESP restaram prejudicadas por força de decisão judicial, permanecendo a companhia obrigada a arcar diretamente com os benefícios, nos termos da sua norma interna.

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3. 2 Histórico de negociação e transação entre as partes

Como visto anteriormente, desde a constituição da SABESP em 1973 e ao longo das décadas de 1970 e 1980 não se verifica que tenha havido discussão significativa entre a SABESP e o Estado de São Paulo acerca da titularidade da obrigação de pagamento dos benefícios decorrentes da Lei estadual 4.819, de 26.8.1958, em que pese à SABESP alegar em sua ação judicial que nunca teria deixado de pleitear compensação pelos pagamentos realizados.

A década de 1980 foi marcada por forte recessão econômica, e o modelo centralizado criado pelo Plano Nacional de Saneamento/ PLANASA, instituído pelo Decreto-lei 949, de 13.10.1969, cedeu espaço à descentralização e à livre concorrência. A Lei de Concessões Públicas foi revisada, e os serviços públicos de água e esgoto não mais seriam restritos às empresas estatais, admitindo-se o ingresso de outros operadores, por meio de licitação. De acordo com a Fundação Energia e Saneamento,6a SABESP enfrentou uma crise no período, não conseguindo abastecer todos os habitantes da Região Metropolitana de São Paulo, estressando sua relação com as Prefeituras e acumulando prejuízos.

Esse foi o pano de fundo para a abertura do capital social da SABESP, em 1994. Nesse momento a companhia buscava sanear suas contas e obter independência dos recursos públicos. Esse processo foi essencial para o amadurecimento societário da SABESP; é bastante representativo que em 1997 - apenas três anos após a abertura do seu capital, portanto - a companhia tenha firmado "Protocolo de Entendimentos" com o Estado de São Paulo pelo qual, pela primeira vez de que se tem notícia, as partes formalizaram que envidariam esforços para segregar seus respectivos débitos e créditos;7ou seja: evitando e corrigindo situações que poderiam provocar "confusão patrimonial" entre elas.

Naquele momento, além da discussão sobre o reembolso dos pagamentos realizados pela SABESP relativos aos acréscimos sociais e previdenciários, o Estado de São Paulo acumulava dívida...

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