A ação direta de inconstitucionalidade n. 492/DF

AutorAlessandra Damian Cavalcanti
Páginas46-62

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O julgamento da ADI n 492/DF

Este capítulo abordará o tema da negociação coletiva, no âmbito do serviço público no Brasil, tendo como ponto de partida o tratamento conferido ao tema pelo Poder Judiciário, sobretudo a partir do julgamento da ADI n. 492/DF e da jurisprudência que se consolidou a partir deste precedente.

O legislador fez constar no art. 240 da Lei n. 8.112/90 o direito à livre associação sindical, bem como os direitos dela decorrentes, entre eles, a negociação coletiva (alínea “d”) e o direito de ajuizamento, individual e coletivamente, frente à Justiça do Trabalho (alínea “e”).95 As referidas alíneas foram objeto de veto presidencial96, sob a alegação de que seriam inconstitucionais. As razões do veto apontaram para um suposto vício identificado na incompatibilidade dos dispositivos com o princípio da reserva legal e o dispositivo constitucional acerca da iniciativa privativa do Presidente da República para a disciplina da remuneração dos servidores públicos. Aduziu-se ainda que o art. 114 da Constituição Federal alcançaria apenas as relações decorrentes de contrato de trabalho e não as relações estatutárias. Ressaltou-se que os servidores têm um tratamento diferenciado e apenas parte dos direitos conferidos aos trabalhadores foram a eles assegurados no art. 39 da Constituição, não se contemplando neste rol o direito ao reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho.

O Legislativo, por sua vez, derrubou o veto presidencial e manteve as alíneas “d” e “e” do art. 240 da Lei n. 8.112/90.

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Na sequência, o Procurador-Geral da República propôs uma ação direta de inconstitucionalidade, na qual requereu ao Supremo Tribunal Federal a declaração de inconstitucionalidade das alíneas “d” e “e” do art. 240 da Lei n. 8.112/90. A ação fundou-se na alegação de que os referidos dispositivos contrariavam os arts. 37, 41 e 114 da Constituição Federal, pois o direito à negociação coletiva que fora assegurado aos servidores públicos seria, de acordo com o entendimento da PGR, incompatível com aqueles dispositivos e com a sistemática da Constituição Federal, que prevê que as vantagens aos servidores deverão ser conferidas por lei.

Quanto aos dissídios individuais e coletivos de servidores não regidos pela CLT, mas pela Lei n. 8.112/90, argumentou a PGR, com base em precedentes da época, que o Supremo Tribunal Federal indicava que o art. 114 da Constituição Federal apenas contemplava os dissídios de trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho e não os estatutários.

O Supremo Tribunal Federal deferiu a medida cautelar de suspensão da alínea “d” do art. 240 da Lei n. 8.112/90 e suspendeu em parte a alínea “e”, do mesmo artigo, determinando a suspenção em relação à expressão “e coletivamente”.

A PGR sustentou que os servidores públicos estatutários tinham os seus direitos, deveres e garantias deinidos unilateralmente pelo Estado-legislador, salientando a desigualdade jurídica entre as partes e a supremacia do interesse público, apontou que a negociação coletiva pressupõe a possibilidade de transigir, para que as partes possam chegar a um acordo, algo que seria incompatível com a superioridade jurídica do Estado nas relações com seus servidores, que não havia lugar para conciliação, que o Estado não poderia abrir mão de seus privilégios, uma vez que estes são fundados no interesse público e que o interesse público seria indisponível. Argumentou, ainda, que a menção aos entes da Administração Pública Direta e Indireta contida no art. 114 da Constituição Federal referia-se apenas àqueles servidores que permaneciam regidos pela CLT, que o STF já teria reconhecido a competência da Justiça Comum, Justiça Federal ou Justiça Estadual, para julgar as demandas entre servidores estatutários e o Estado.

Assim, as alegações da PGR fundaram-se basicamente nos seguintes pontos: princípio da legalidade; supremacia do interesse público; ausência de previsão constitucional do direito à negociação coletiva para os servidores públicos; e, que a Justiça do Trabalho não poderia julgar os dissídios ajuizados por servidores estatutários.

O relator da ação, Ministro Carlos Velloso, entendeu que o regime jurídico único tem natureza estatutária, com base na doutrina de Hely Lopes Meirelles, Celso Antônio Bandeira de Mello, Adilson de Abreu Dallari, Carlos Pinto Coelho Motta e Antônio Augusto Junho Anastasia, tratando-se de regime objetivo, alterável de acordo com o Poder Público.97 Destacou

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as diferenças inconciliáveis entre o regime estatutário dos servidores públicos e o regime contratual dos trabalhadores da iniciativa privada, onde existe um amplo espaço para a autonomia da vontade, que seria inviável conceder aos servidores públicos o mesmo tratamento conferido aos demais trabalhadores, algo que o próprio constituinte não fez. No entender do relator, a negociação coletiva tem por objetivo, basicamente, a alteração da remuneração, mas, como a remuneração dos servidores públicos decorre da lei e toda a sistemática de revisão geral e de alteração de remuneração assenta-se na lei, de acordo o art. 37, incisos X, XI e XII da Constituição Federal, não haveria espaço para a negociação coletiva, pois não caberia à Administração Pública transigir sobre o que somente a lei pode dispor.

Ademais, o relator destacou que o constituinte, ao assegurar aos servidores públicos uma série de direitos conferidos aos trabalhadores em geral, a eles não garantiu expressamente o direito ao reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho. O ministro relator entendeu que a relação entre a Administração Pública e os seus servidores, por ser exclusivamente regida por normas legais, sujeitava-se ao império do princípio da legalidade. Para o relator, o direito à negociação coletiva não poderia estar previsto em lei, como pretendeu o legislador na alínea “d” do art. 240 da Lei n. 8.112/90, justamente porque a Administração não poderia transigir sobre matéria reservada à lei, por força do princípio da legalidade.

Assim, o relator conduziu o seu voto, com fundamento na concepção unilateralista da função pública, entendendo que as relações entre os servidores e a Administração Pública são regidas, exclusivamente, por normas legais, sujeitas ao princípio da legalidade. Dessa forma, o voto condutor do julgamento não se aprofunda em como poderiam ser exercidos os direitos de sindicalização e de greve sem a negociação coletiva, ou ainda, sobre a amplitude da liberdade sindical.

Sobre o julgamento da ADI n. 492 pelo Supremo Tribunal Federal Arnaldo Boson Paes destaca:

[...] na medida em que, conforme proclamado por sucessivos instrumentos normativos internacionais, a liberdade sindical é um direito, dentre os quais está o direito à negociação coletiva das condições de trabalho. O que se observa, portanto, é que o STF limitou-se a chancelar a teoria de que os funcionários mantêm com o Poder Público uma relação de natureza eminentemente estatutária, incorporando e levando às últimas consequências a doutrina administrativa brasileira, presa a um modelo de Estado autoritário, inteiramente incompatível com a pretensão do constituinte de 1988 de consolidar no Brasil um verdadeiro Estado Democrático de Direito.98

O Ministro Marco Aurélio divergiu do relator, destacando o necessário e progressivo afastamento do autoritarismo e enfatizando que a negociação coletiva serve como um meio para alcançar o entendimento. Nesse sentido, em seu voto-vista, levou para o debate elementos do direito comparado, para demonstrar alguns dados sobre a evolução contínua da relação entre servidores públicos e Administração Pública em outros países.99

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O ministro salientou que após a 2a Guerra Mundial, com as novas Constituições Europeias de caráter mais democrático, distanciavam-se, cada vez mais, das reservas em relação à aglutinação dos funcionários públicos, como ocorreu com a Constituição da França de 1946, da Itália de 1947 e da Espanha em 1978100. Asseverou que com essa evolução da demo-cracia no pós-guerra, o direito de greve também passou de delito para uma ferramenta utilizada para se buscar melhores condições de trabalho, nos países com setor público consolidado já se reconhecia a possibilidade de certos tipos de negociação entre a Administração Pública e os servidores públicos, por meio de consultas e até mesmo de acordo geral.101

Marco Aurélio destacou “a tendência natural das relações humanas afastarem-se, cada vez mais do autoritarismo, para realizarem, numa visão ampla, sem temor quanto à negociação, a busca do entendimento.”102 O ministro lembrou que na Espanha já existia lei dispondo sobre os limites da negociação coletiva dos servidores públicos e que é natural que a Administração Pública, no Estado Democrático de Direito, vá abandonando as posições de intransigência anteriormente defendidas, pois a própria supremacia da Administração e a rígida hierarquia são lexibilizadas. Para o ministro, a Constituição Federal de 1988 rompeu com “a retrógrada visão de que o agrupamento sindical colocava em risco o bem comum visado pelo Estado”103, reconhecendo um direito que desde a Revolução Industrial mostrou-se salutar para corrigir as desigualdades.

O Ministro reconheceu que a garantia do direito de sindicalização e o direito de greve dos servidores são elementos reveladores da nova postura democrática e alertou: “que valia terão os aludidos direitos se, a um só tempo, conclui-se que todos podem negociar, menos o majestático Estado?”104

O ministro citou ainda as Convenções ns. 151/1978 e 154/1991 da OIT105 e o art. 169 da Constituição Federal106, para defender que o enfoque no referido artigo não fulmina a negociação coletiva, que visa justamente o afastamento de um possível conlito coletivo no trabalho.107 Destacando que:

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