Ação Civil Pública - Raia S/A - Fraude no Controle da Jornada de Trabalho

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EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) JUIZ(A) DO TRABALHO DA VARA DO TRABALHO DE MATÃO/SP

PREFERÊNCIA DE TRAMITAÇÃO: Informa-se, para fins do Comunicado GP/CR n. 10/2011 do TRT15, que a presente ação civil pública relaciona-se com a matéria meio ambiente do trabalho (saúde do trabalhador)

O Ministério Público do Trabalho — Procuradoria do Trabalho no Município de Araraquara, com endereço na R. Padre Duarte, 151, 6e andar, Edifício América, Jardim Nova América, Araraquara-SP, CEP 14800-360, pelo Procurador do Trabalho que esta subscreve, no exercício de suas funções institucionais previstas nos arts. 127 e 129, inciso III, da Constituição da República e art. 83, incisos I, III e IV, da Lei Complementar n. 75/93, e com fundamento nas disposições contidas nas Leis n. 7.347/85 e 8.078/90, vem respeitosamente perante V. Exa. propor

AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO LIMINAR

em face de RAIAS/A, CNPJ n. 60.605.664/0215-37, com endereço na Av. Quinze de Novembro, 949, CEP 15.990-170, Matão/SP, pelas razões fáticas e jurídicas a seguir expostas:

1) Da fraude ao controle de jornada

O Ministério Público do Trabalho instaurou procedimento investigatório em face da Raia S/A (Droga Raia) a partir de representação encaminhada pelo Sindicato dos Empregados no Comércio de Matão, relatando a existência de labor, em estabelecimento da empresa, prestado fora do período anotado no controle de jornada.

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Realizou o Ministério do Trabalho e Emprego ação fiscal, tendo detectado a prática de ilícitos trabalhistas, incluindo não concessão dos intervalos mínimos para repouso (como será visto em outro tópico), e incorreta anotação da jornada de trabalho.

Quanto ao último problema, foi lavrado o seguinte auto de infração:

"Conforme verificação das Folhas de Ponto referentes aos meses de 6/2009 a 10/2009 constatou-se que os empregados não vem anotando os horários de repouso ou horários de saída corretamente. (...) Pela anotação dos horários supõe-se que não foi anotado o horário de retorno do repouso para alimentação." (fl. 22 do inquérito que instrui a presente ação.)

Foi proposta, em junho de 2010, a celebração de termo de ajuste de conduta à empresa, recusado por esta sob a alegação de que "tratam-se de situações esporádicas" os ilícitos detectados (fl. 36).

À época, argumentou a empresa, através de manifestação de fls. 41/43, que: "jamais permitira o trabalho extraordinário pelo empregado sem a correta anotação no controle de jornada (...) Sem contar o prejuízo que causaria ao próprio trabalhador, obrigado a estender sua jornada sem a correta paga, o que é veementemente repudiado pela empresa" (fl. 42).

Registre-se aqui, portanto, que a própria empresa reconheceu que semelhante prática causaria grande prejuízo aos trabalhadores.

Providenciou-se, então, a intimação da empresa para apresentação dos cartões-ponto abrangendo o mês de dezembro de 2010, que foram juntados às fls. 107/148.

A análise dos cartões permite observar uma situação verdadeira absurda, quase inacreditável, não havendo qualquer exagero na afirmação de que os documentos constituem o pior exemplo de controle de jornada já visto pelo procurador subscritor da presente ação.

Veja-se, Excelência, que TODOS os cartões demonstram situações frequentes em que foi anotado o horário de entrada, e não houve qualquer anotação do horário de saída do trabalho. Trata-se de problema generalizado, mantido ao longo de todo o mês em comento, durante todas as semanas.

Veja-se, também, que na esmagadora maioria desses casos não foi inserida sequer uma justificativa para a ausência de marcação. E o motivo para isso está no fato de que em praticamente todos os casos o sistema de controle apresentou erro, constando a mensagem: "sem conexão com o servidor".

Sobre o exato alcance de tal mensagem se discorrerá a seguir.

O mais surpreendente, entretanto, chegando-se às raias do cômico, são as poucas justificativas lançadas para a falta de anotação, sendo particularmente preciosa a de fl. 113: tendo sido inserida no dia 2/12 marcação de entrada, mas não de saída, registrou-se: "Funcionário ainda estava de férias e há garantias de

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que ninguém fez marcações em seu lugar. Assunto já tratado com setor responsável e possível problema de sistema".

Portanto o funcionário não estava trabalhando, ninguém bateu o ponto em seu lugar, e ainda assim o sistema registrou uma entrada!

À fl. 107, aliás, pode ser visto caso semelhante.

Como é possível que um sistema de controle de jornada chegue ao ponto de registrar uma batida que ninguém fez? Se um sistema de controle não faz — ou não deveria fazer — outra coisa senão consignar as batidas feitas, como é possível que uma batida inexistente tenha sido lançada?

A explicação, Excelência, só pode ser uma: esse é um sistema eletrônico que, necessariamente, há de permitir a realização de batidas automáticas (contém a faculdade de realizá-las, pelo menos), na ausência de qualquer batida real pelo trabalhador. Se a empresa costumeiramente utiliza tal recurso do software ou não, é circunstância diversa, mas o fato é que o sistema utilizado permite o recurso, conduzindo ao "problema" mencionado na justificativa.

Lamentavelmente, sistemas eletrônicos como esse não são raros1. Pelo contrário, são comuns no mercado produtos que disponibilizam às empresas empregadoras diversos instrumentos para fraudar o registro da jornada, realizando batidas automáticas, bloqueando batidas fora de determinado horário, suprimindo horas extras com o simples clicar de um botão, etc.

Veja-se que a situação detectada nos cartões-ponto do mês de dezembro de 2010 não se mostra isolada, à luz dos cartões de fls. 11/14, colhidos pelo MTE, e que dizem respeito ao ano de 2009. Já naquele ano registrava-se a falta de batidas da saída do trabalho ou de retorno do intervalo, embora em menor grau, evidenciando-se que o problema não é novo e está piorandopiorando, na medida em que sua amplitude em 2010 tornou-se ainda maior.

Há de ser destacada, também, uma importante circunstância (que a demandada chamará de "coincidência", sem dúvida) quanto a tais ausências de batidas: o problema SEMPRE OCORRE NO TÉRMINO DA JORNADA, OU NO RETORNO DO INTERVALO, NUNCA NO INÍCIO DA JORNADA. Mostra-se deveras curioso, de fato, que o referido servidor NUNCA SE ENCONTRE SEM CONEXÃO NO INÍCIO DA JORNADA, MAS APENAS NO FIM DELA.

Bastante seletivos, portanto, tais problemas com o servidor.

Enfim, basta a mera visualização dos cartões-ponto de 2009 e 2010 para se concluir pela existência de, no mínimo, intolerável negligência do empregador, em manter em uso um sistema de controle imprestável, que não atende minimamente ao propósito que dele se espera, que é registrar de

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forma fidedigna a jornada cumprida pelo trabalhador. As gritantes falhas do sistema utilizado simplesmente não são corrigidas.

Mas a situação ora em tela não constitui caso de mera negligência. Trata--se, aqui, da prática de fraude, pura e simplesmente, ou seja, de uma estratégia empresarial deliberada e ativa, a rigor delituosa, tendente à criação de documentos ideologicamente falsos, concebidos para que não reproduzam a jornada real de trabalho, e ocultem os ilícitos trabalhistas cometidos todos os dias.

Tal realidade começa a ser revelada a partir do esclarecimento, prestado pela própria empresa, de que "o ponto eletrônico é anotado pelo empregado em terminal de computador" (fl. 77). Nesse sentido, em audiência foi dito que a empresa utiliza "controle eletrônico de jornada mediante terminal de computador, e utilização do software "Global Antares", confeccionado pela empresa Apdata" (fl. 155).

A forma de funcionamento desse software — que esclarece o sentido das mensagens "sem comunicação com o servidor", e "sem conexão com o servidor", contidas nos cartões-ponto — é explicada à fl. 162:

"Esta tecnologia divide o Sistema em 3 (três) camadas distintas, conforme especificado:

Camada cliente:

Nesta Camada o usuário manuseia a Interface em um computador qualquer com o objetivo de solicitar o processamento ou visualizar dados (...)

Toda comunicação entre a Camada Cliente e a Camada Servidora de Aplicação (detalhada abaixo) é feita de forma criptografada com chave de 128 Bits, modelo de segurança bancária.

Camada Servidora de Aplicação:

Esta Camada é única (normalmente centralizada na Matriz), recebe todas as solicitações da Camada Cliente (vários computadores em qualquer lugar do Brasil ou do Mundo) (...) avalia se os dados de parâmetro informados estão corretos. Se estiverem, efetivará a solicitação de processamento, solicitando comunicação com a Camada de Banco de Dados. (...)

Esta camada fica fisicamente no mesmo local da Camada Banco de Dados."

Ou seja, além dos funcionários registrarem sua jornada em terminal de computador, e não em um aparelho registrador (um relógio de ponto), o processamento e armazenamento da informação é centralizado na Matriz, e a transmissão se dá via internet. Os dados eletrônicos (de todo o país) não ficam armazenados nas filiais, mas na Matriz.

Tal sistema (em terminal de computador e gerenciamento via internet centralizado) é, com toda certeza, a forma de controle de jornada, dentre todas as imagináveis e já concebidas, que mais se presta a fraudes.

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De fato, nesse modelo, a vulnerabilidade do trabalhador é total, e a capacidade de manipulação da informação de ponto, sem limites. Os dados registrados apenas em computador podem ser alterados e suprimidos a qualquer instante, sem qualquer conhecimento do trabalhador. De nada significa a batida realizada pelo funcionário: a informação pode ser adulterada no mesmo instante em que é feita (por exemplo, a batida ocorre às 17 horas, mas o sistema registra outro horário). Como nenhum comprovante é...

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