Ação afirmativa e inclusão dos trabalhadores com deficiência ou reabilitados: atuação do ministério público do trabalho

AutorJosé Claudio Monteiro de Brito Filho
CargoDoutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP
Páginas252-264

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Introdução

Uma das principais ações do Ministério Público do Trabalho, até hoje, é o combate à discriminação dos trabalhadores com deficiência, com a adoção das medidas necessárias à inclusão dos integrantes desse grupo vulnerável no mercado formal de trabalho.

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Desenvolvida de forma coordenada, e envolvendo membros do Ministério Público do Trabalho lotados em todas as Regionais, ela vem consumindo esforços faz muito tempo, e é sempre saudada como iniciativa que deve ser utilizada como paradigma para a atuação coordenada dos membros da Instituição.

Nosso objetivo nesse breve estudo é discutir aspectos ligados a essa atuação, desde o seu suporte filosófico e jurídico, até os caminhos que devem ser seguidos para sua continuidade.

1. A justiça distributiva como modelo de sustentação das medidas de ação afirmativa

Comecemos com sua sustentação no plano filosófico.

É entendimento pacífico, modernamente, que em um modelo de justiça distributiva, o estado é obrigado a proporcionar a seus cidadãos um mínimo de bem estar material1.

Essa concepção, normalmente atribuída a Aristóteles, deve ser creditada inicialmente, segundo Samuel Fleischacker, ao pensamento de Adam Smith, Rousseau, Kante, por fim, Babeuf2.

É que, Aristóteles, como se pode ver em Ética a Nicômacos3, entendia a distribuição de bens materiais sem caráter obrigatório, ao contrário dos autores acima indicados, que já entendiam essa ação a partir da ideia de que era compulsória, embora em uma via pouco larga.

Essa ideia de justiça distributiva vai, depois, ser aperfeiçoada por John Rawls, em Uma teoria da justiça, quando este expõe o que seriam os dois grandes princípios de justiça, a saber:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.

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Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos4.

Rawls, a propósito, a despeito das críticas que recebe, às vezes simplesmente por se tratar de um liberal5, revolucionou a discussão a respeito da justiça distributiva, pelo que, depois da década de 1970 do século passado, não se trava qualquer discussão relativa ao tema sem que suas ideias sejam levadas em consideração, mesmo que para sua negação.

O certo é que, atualmente, a concepção de justiça distributiva se esteia no reconhecimento, como afirma Fleischacker, de que "alguma distribuição de bens é devida a todos os seres humanos, em virtude apenas de serem humanos"6.

Sob esse prisma, esse autor indica as premissas necessárias para o moderno conceito de justiça distributiva, e que são:

  1. Cada indivíduo, e não somente sociedades ou a espécie humana como um todo, tem um bem que merece respeito, e aos indivíduos são devidos certos direitos e proteções com vistas à busca daquele bem;

  2. Alguma parcela de bens materiais faz parte do que é devido a cada indivíduo, parte dos direitos e proteções que todos merecem;

  3. O fato de que cada indivíduo mereça isso pode ser justificado racionalmente, em termos puramente seculares;

  4. A distribuição dessa parcela de bens é praticável: tentar conscien-temente realizar essa tarefa não é um projeto absurdo nem é algo que, como ocorreria caso se tentasse tornar a amizade algo compulsório, solaparia o próprio objetivo que se tenta alcançar; e

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  5. Compete ao Estado, e não somente a indivíduos ou organizações privadas, garantir que tal distribuição seja realizada.7

    Essa moderna noção, todavia, pode ter um espectro mais limitado como, deve-se admitir, pretendia Rawls, ou ampliado, com a distribuição dos bens, o que inclui os materiais, indispensáveis para a realização do ser humano, ou, na esteira do que penso deve ser o pensamento kantiano concretizado, indispensáveis à preservação da dignidade do ser humano8.

    Esse espectro mais ampliado, que Fleischacker denomina de "extensões da justiça distributiva"9, pode ser vislumbrado em autores mais contemporâneos, como Ronald Dworkin que, não obstante kantiano e contratualista como Rawls, vislumbra na sua Teoria da Igualdade de Recursos10 uma igualdade de bens e oportunidades que vai além — em termos de recursos — do pensamento deste último, além de que sua teoria não trabalha a igualdade como uma meta que deve ser satisfeita apenas em um ponto de partida, mas ajustada e compensada ao longo da vida do ser humano.

    E é nesse autor que vamos basear, primeiramente, nossa análise a respeito da inclusão dos trabalhadores com deficiência ou reabilitados e da atuação do Ministério Público do Trabalho, pois, embora em alguns aspectos o pensamento de Dworkin esteja aquém do que já foi conquistado, no Brasil, a respeito do reconhecimento dos interesses dos grupos e de sua proteção, sua teoria de igualdade é consistente, amplia a concepção de justiça distributiva, e é compatível com o arcabouço normativo constitucional brasileiro; além de que é o autor, pensamos, o pensador contemporâneo que melhor defendeu e sistematizou o modelo de combate à discriminação e de inclusão de pessoas que se convencionou chamar de ação afirmativa11.

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2. O ordenamento jurídico brasileiro ea proteção dos trabalhadores com deficiência ou reabilitados

Definido o marco teórico deste estudo, cabe relembrar, no aspecto normativo, e de forma singela, a base para a utilização da ação afirmativa em favor dos trabalhadores com deficiência ou reabilitados.

Iniciando de forma genérica, é preciso lembrar os dois dispositivos, pensamos, mais importantes do texto constitucional, e que têm relação direta com a proteção dos integrantes desse grupo vulnerável12: o art. 1e, III, e o art. 3e, IV. O primeiro indica como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana, e o segundo, que é objetivo fundamental da República, a promoção do bem de todos.

Aqui deve ser entendida a dignidade não como um dos fundamentos, mas como o fundamento da República, ou seja, como o mais importante deles, o que é a forma correta, acreditamos, de posicionar a disposição constitucional. Deve ser compreendido também que o sistema jurídico, a partir desta constatação, gira em torno da dignidade, pelo que a interpretação e a aplicação das normas nele presentes devem considerar esse fim máximo, que é o de proporcionar a todos os seres humanos o exercício dos direitos necessários à sua concretização (da dignidade).

Quanto à promoção do bem de todos, temos defendido, faz tempo, que essa disposição, a despeito de estar colocada entre outras, no art. 3e, deve traduzir o ideal constitucional de justiça, podendo perfeitamente ser utilizada para considerar que a República Federativa do Brasil acolhe modelo de justiça distributiva.

O dispositivo é importante também para revelar que a igualdade consagrada no texto constitucional não é somente a igualdade formal, vista a partir de uma das leituras possíveis do art. 5e, caput, da Constituição da República, mas sim uma igualdade que, efetivamente, seja capaz de orientar a eliminação das diferenças nocivas entre os indivíduos, ao menos no tocante aos direitos e garantias básicos.

De outra sorte, a indicação, no art. 6e, de um razoável rol de direitos sociais...

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