A relação entre o abuso do direito e a boa-fé objetiva

AutorPedro Modenesi
Páginas325-351

Page 325

1 O abuso do direito
1. 1 Breve panorama histórico das teorias do abuso do direito

A teoria do abuso do direito, segundo majoritária doutrina, não tem origem em Roma, apesar de, no Direito Romano, se constatarem sinais de que o abuso do direito era repelido. 12 A correção dos atos abusivos era feita de forma suficiente pela equidade e pela jurisdição imperial e pretoriana. Não havia, pois, uma construção teórica acerca do abuso do direito.3

Somente no século XIX - na fase inicial da vigência do Código de Napoleão -, passa-se a observar, na França, decisões jurisprudenciais desfavoráveis aos titulares de direitos subjetivos sob o argumento de irregularidades no seu exercício. No entanto, apenas em 1915 a concepção do abuso do direito ganha ampla divulgação a partir de um notório julgado da Corte de Cassação francesa. Esse episódio ficou conhecido como o Page 326 caso Clement Bayard, nome do proprietário de um terreno vizinho a um campo de pouso de dirigíveis que, sem qualquer justificativa, erguera, no seu terreno, torres pontiagudas destinadas a danificar os dirigíveis que sobrevoavam sua propriedade. Ao examinar a matéria, a Corte francesa condenou, por abuso do direito, o proprietário responsável pela construção das torres.4

Verifica-se, portanto, que o instituto do abuso do direito surge a partir da prática jurisprudencial francesa durante os séculos XIX e XX, época em que "a ciência jurídica vivia, ainda, sob a ilusão do absolutismo dos direitos subjetivos".5

Todavia, a doutrina não foi unânime no acolhimento da teoria dos atos abusivos. Assim, desenvolveram-se as chamadas teorias negativistas que não admitiam a ideia do abuso do direito. Dentre esses autores, Léon Duguit capitaneou a chamada doutrina anti-subjetivista, que afirmava a falsidade, ou melhor, negava a existência do conceito de direito subjetivo e, por conseguinte, não admitia o abuso do direito, pois não se pode abusar daquilo que não existe.

Além de Duguit, Marcel Planiol destacou-se na oposição à nova teoria. Esse autor fundamentava sua tese na contrariedade lógica dos termos "direito" e "abuso". Para ele abuso do direito era uma logomaquia, i. e., uma expressão contraditória em seus próprios termos. O pilar de sua teoria baseava-se na ideia de que um ato não pode ser, ao mesmo tempo, conforme e contrário ao Direito. Sintetizou sua tese na máxima "o direito cessa onde começa o abuso",6 em que se percebe a influência da concepção absolutista dos direitos subjetivos, traduzida na recusa de limites não legais ao exercício de tais direitos.

Seguindo a linha traçada por Planiol, Georges Ripert inaugura a chamada teoria subjetivista. Este autor também sofre influência da concepção absolutista dos direitos subjetivos e, por isso, exclui qualquer limitação ao exercício dos direitos subjetivos "que não esteja descrita na própria lei, salvo os limites de origem moral, exatamente porque estes se encontram fora do direito, lhes são externos (itálico no original)".7Desse modo, para Ripert configura-se o abuso do direito quando presente o elemento subjetivo, i.e., a intenção de prejudicar mais a aparência de direito.8 De acordo com Rosalice Pinheiro, é a utilização de limites meramente morais que preserva o caráter "absoluto" dos direitos subjetivos, de forma que todo ato abusivo é enquadrado no Page 327 âmbito da ilicitude.9 Assim, embora Ripert não rechace expressamente a figura do abuso do direito como faz Planiol, "sua tese não deixa de ser negadora da existência do abuso do direito, não o concebendo como teoria autônoma".10

A par dessas teorias, foram também elaboradas as chamadas doutrinas afirmativas, que deram início ao reconhecimento da existência e da autonomia do abuso do direito. Louis Josserand inaugura a teoria finalista, que constitui uma tese de transição para a identificação do ato abusivo, pois conjuga um critério subjetivo - consistente na investigação do motivo legítimo - e um critério objetivo, revelado a partir da natureza teleológica dos direitos subjetivos, ou seja, da função social ou espírito do direito. Passa-se, então, a admitir uma limitação interna aos direitos subjetivos, que revela a relatividade de tais direitos, não mais admitindo-se seu caráter absoluto.

Todavia, o fato de Josserand não se ter desprendido totalmente do critério subjetivo fez com que sua tese sofresse críticas de autores que procuravam imprimir ao abuso do direito um caráter exclusivamente objetivo. Nessa linha, surge o pensamento de Raymond Saleilles, que considera abusivo o ato "quando há desvio da destinação econômica e social de cada direito" ou por outras palavras: identifica-se o abuso quando há "exercício anormal do direito".11 A contribuição desse autor, segundo L. Campion, acabou por permitir o alargamento da teoria do abuso do direito.12

Formulada com esse novo conteúdo, a teoria do abuso do direito passa a ser bem recepcionada pela doutrina e jurisprudência. E, segundo Vladimir Cardoso, trata-se da concepção adotada pelo art. 188, I, do Código Civil (CC) de 2002, in verbis: "Não constituem atos ilícitos: I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido".13 Texto do qual se pode concluir, a contrario sensu, que o exercício irregular ou, na linguagem de Saleilles, anormal constitui ato ilícito (rectius: abusivo), motivador do dever de indenizar.

Mais recentemente, António Castanheira Neves e Fernando Augusto Cunha de Sá traçaram teorias que, utilizando o elemento valorativo do direito subjetivo como critério para aferição do abuso do direito, contribuíram para que, ao final, se viesse a reconhecer a autonomia do abuso do direito frente à noção de ato ilícito.

De acordo com a tese de Castanheira Neves, o abuso configura-se como o ato que obedece à estrutura formal do direito, todavia não observa seu fundamento axiológiconormativo. Dessa forma, o direito subjetivo passa a ser "formalmente limitado pela sua estrutura e materialmente limitado pelo seu fundamento".14 Estabelece-se, assim, que o Page 328 direito subjetivo, necessariamente, constitui-se por um fundamento axiológiconormativo.

Por sua vez, Cunha de Sá sustenta que o fundamento axiológico do direito subjetivo é o preciso limite que, se violado, configura o ato abusivo.15 Assim, rompe-se, definitivamente, com a concepção absolutista do direito subjetivo, já que a construção axiológico-normativa defendida por esse autor substitui o limite externo - entendido como os fins ou a regra moral - por um limite interno ao próprio direito subjetivo.

Destarte, para esses autores lusitanos, a essência do abuso do direito consiste no exercício aparentemente lícito de um direito - uma vez que se respeita sua estrutura lógico-formal -, mas que, todavia, viola seu fundamento material-valorativo.16

A partir dessa formulação doutrinária, retira-se o fundamento para se estabelecer a distinção entre o conceito de ato abusivo e o de ato ilícito stricto sensu; é o que se passa a fazer na próxima seção.

1. 2 Distinção entre ato abusivo e ato ilícito stricto sensu

A evolução da teoria do abuso do direito permite observar-se que teses como a de Planiol, Ripert e Josserand importam em reduzir o ato abusivo à esfera da ilicitude. Isto por que esses juristas tinham a pretensão de resolver os casos de abuso do direito, que surgiam nos tribunais, sem quebrar a coerência lógica do sistema, moldado pela Exegese e pela Pandectística. Com efeito, inseriam a nova figura no conceito jurídico já disponível no sistema, qual seja, o de ato ilícito.17

No entanto, como ressalta Cunha de Sá, a redução do abuso do direito ao ato ilícito tem o grave inconveniente de ocultar sua especificidade, que consiste em encobrir com a aparência de direito um ato, o qual se tinha o dever - de natureza axiológica - de não realizar. Continua o autor aduzindo que esta constatação já seria suficiente para legitimar, e até impor, a autonomia do ato abusivo perante o ato ilícito.18

Com este escopo, a doutrina passa a reconhecer que, tanto o ato abusivo, como o ato ilícito configuram casos de atuação contrária ao direito, ou melhor, ambos situam-se no plano da antijuridicidade. No entanto, isso não quer dizer que esses atos possam confundir-se. Segundo Heloísa Carpena, identifica-se que a distinção entre essas duas espécies de atos se faz com base na natureza da violação a que eles se referem. Cunha de Sá corrobora esse entendimento ao afirmar que o ilícito é "o comportamento negador de específicas orientações axiológico-normativas, é a conduta que contradiz concretas proibições de acção ou...

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