Abolicionismo e experimentação animal

AutorEdna Cardozo Dias
CargoDoutora em Direito. Presidente da Liga de Prevenção da Crueldade contra o Animal
Páginas133-150

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1 - Experimento com animais e legislação brasileira

O Decreto 24.645, de 10 de julho de 1934, que entrou em vigor com a implantação do Estado Novo, veio introduzir no Brasil, pela primeira vez, normas de proteção animal. O Decreto 24.645, de 10 de julho de 1934 não trata do assunto experimentação animal - vivissecção.

Em 1941, o Decreto-lei 3.688 Lei das Contravenções Penais, em seu artigo 64, parágrafo único proibiu, expressamente a realização de experimentos com animais, ainda que para fins didáticos, quando houvesse métodos alternativos. Todas essas vedações da lei só eram passíveis de punição no campo penal, como contravenção, não havendo uma regulamentação para sua autorização ou fiscalização.

Esta situação permaneceu mesmo após a promulgação da Lei 6.638, de 8 de maio de 1979, hoje revogada, que veio estabelecer normas para a prática da vivissecção, mas ela nunca foi regulamentada, e tinha poucos artigos auto-aplicáveis.

Em 08 de outubro de 2008 foi aprovada nova lei sobre uso de animais em experimentos, a Lei 11.794, que regulamenta o VII do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo procedimentos para o uso científico de animais e revogou a Lei nº 6.638, de 8 de maio de 1979.

Segundo esta lei é considerada como atividades de pesquisa científica todas aquelas relacionadas com ciência básica, ciência aplicada, desenvolvimento tecnológico, produção e controle da qualidade de drogas, medicamentos, alimentos, imunobiológicos, instrumentos, ou quaisquer outros testados em animais, conforme definido em regulamento próprio.

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Ela cria o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal - CONCEA, com a competência de formular normas relativas à utilização de animais e credenciar instituições para criação ou utilização de animais, entre outras atribuições. O CONCEA é presidido pelo Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia e integrado por representantes do governo, cientistas e duas entidades de proteção aos animais legalmente constituídas.

Para obter credenciamento para atividades de ensino ou pesquisa com animais as instituições são obrigadas a constituir Comissões de Ética no Uso de Animais - CEUAs, com representantes de médicos veterinários e biólogos; docentes e pesquisadores na área específica; 1 (um) representante de sociedades protetoras de animais legalmente estabelecidas no País, na forma do Regulamento.

O que se vê é que esta lei fornece o respaldo legal para legitimar os experimentos com animais, a vivissecção.

A preocupação com o bem estar do animal está disposta no artigo 14 da referida Lei, mas está longe de evitar o sofrimento ou respeitar a dignidade do animal. Vejamos:

Art. 14. O animal só poderá ser submetido às intervenções recomendadas nos protocolos dos experimentos que constituem a pesquisa ou programa de aprendizado quando, antes, durante e após o experimento, receber cuidados especiais, conforme estabelecido pelo CONCEA.

§ 1o O animal será submetido a eutanásia, sob estrita obediência às prescrições pertinentes a cada espécie, conforme as diretrizes do Ministério da Ciência e Tecnologia, sempre que, encerrado o experimento ou em qualquer de suas fases, for tecnicamente recomendado aquele procedimento ou quando ocorrer intenso sofrimento.

§ 2o Excepcionalmente, quando os animais utilizados em experiências ou demonstrações não forem submetidos a eutanásia, poderão sair do biotério após a intervenção, ouvida a respectiva CEUA quanto aos critérios vigentes de segurança, desde que destinados a pessoas idôneas ou entidades

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protetoras de animais devidamente legalizadas, que por eles queiram responsabilizar-se.

§ 3o Sempre que possível, as práticas de ensino deverão ser fotografadas, filmadas ou gravadas, de forma a permitir sua reprodução para ilustração de práticas futuras, evitando-se a repetição desnecessária de procedimentos didáticos com animais.

§ 4o O número de animais a serem utilizados para a execução de um projeto e o tempo de duração de cada experimento será o mínimo indispensável para produzir o resultado conclusivo, poupando-se, ao máximo, o animal de sofrimento.

§ 5o Experimentos que possam causar dor ou angústia desenvolver-se-ão sob sedação, analgesia ou anestesia adequadas.

§ 6o Experimentos cujo objetivo seja o estudo dos processos relacionados à dor e à angústia exigem autorização específica da CEUA, em obediência a normas estabelecidas pelo CONCEA.

§ 7o É vedado o uso de bloqueadores neuromusculares ou de relaxantes musculares em substituição a substâncias sedativas, analgésicas ou anestésicas.

§ 8o É vedada a reutilização do mesmo animal depois de alcançado o objetivo principal do projeto de pesquisa.

§ 9o Em programa de ensino, sempre que forem empregados procedimentos traumáticos, vários procedimentos poderão ser realizados num mesmo animal, desde que todos sejam executados durante a vigência de um único anestésico e que o animal seja sacrificado antes de recobrar a consciência.

§ 10. Para a realização de trabalhos de criação e experimentação de animais em sistemas fechados, serão consideradas as condições e normas de segurança recomendadas pelos organismos internacionais aos quais o Brasil se vincula.

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1.2. LEI DE CRIMES AMBIENTAIS E A EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL

A Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, lei de crimes ambientais, passou a considerar a vivissecção crime na seguinte hipótese:

Art. 32 - Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena: detenção, de três meses a um ano, e multa.

§ 1º incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos;

§ 2º - a pena será aumentada de um sexto a um terço, se ocorre a morte do animal.

Para Laerte Fernando Levai, autor do livro "Direito dos animais,1.o

dispositivo nos leva a admitir que a lei reconhece a crueldade implícita na atividade experimental sobre animais, tanto que apontou outros caminhos para evitar a inflicção de sofrimento ao animal.

A Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 proíbe expressamente a experimentação, ainda que para fins didáticos, quando existirem métodos alternativos. Métodos alternativos sabemos que existem. E se existem a vivissecção deveria ser considerada implicitamente proibida.

Vê-se que o legislador ambiental não se limitou à conduta delituosa prevista no caput do mencionado artigo 32. Foi muito, além disso, ao equiparar àquelas hipóteses típicas, em termos penais, "quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos". (§ 1º do artigo 32 da Lei 9.605/98) . 2

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Dr. Laerte Fernando Levai enumera os seguintes métodos alternativos em Ação Civil Pública impetrada contra a Prefeitura de São José dos Campos:3"Convém relacionar aqui, a título exemplificativo, alguns dos mais conhecidos recursos alternativos que se ajustam ao propósito do legislador - muitos deles citados no periódico Alternative to Animals e no livro From Guinea Pig to Computer Mouse, da International Network for Humane Education (InterNICHE) - a saber:

1) Sistemas biológicos in vitro (cultura de células, tecidos e órgãos passíveis de utilização em genética, microbiologia, bioquímica, imunologia, farmacologia, radiação, toxicologia, produção de vacinas, pesquisas sobre vírus e sobre câncer);

2) Cromatografia e espectrometria de massa (técnica que permite a identificação de compostos químicos e sua possível atuação no organismo, de modo não-invasivo);

3) Farmacologia e mecânica quânticas (avaliam o metabolismo das drogas no corpo humano;

4)Estudos epidemiológicos (permitem desenvolver a medicina preventiva com base em dados comparativos e na própria observação do processo das doenças);

5) Estudos clínicos (análise estatística da incidência de moléstias em populações diversas);

6) Necrópsias e biópsias (métodos que permitem mostrar a ação das doenças no organismo humano);

7) Simulações computadorizadas (sistemas virtuais que podem ser usados no ensino das ciências biomédicas, substituindo o animal);

8) Modelos matemáticos (traduzem analiticamente os processos que ocorrem nos organismos vivos);

9) Culturas de bactérias e protozoários (alternativas para testes cancerígenos e preparo de antibióticos);

10) Uso da placenta e do cordão umbilical (para treinamento de técnica cirúrgica e testes toxicológicos);

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11) Membrana corialantóide (teste CAME, que se utiliza da membrana dos ovos de galinha para avaliar a toxicidade de determinada substância);

12) Pesquisas genéticas (estudos com DNA...

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