Abolição da escravatura e princípio da igualdade no pensamento constitucional brasileiro (reflexos na legislação do trabalho doméstico)

AutorEvanna Soares
CargoDoutora em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA, Buenos Aires)
Páginas366-394

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Introdução

O trabalho em regime de escravidão que serviu de sustentáculo econômico, social e político à elite, formada por grandes proprietários

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rurais, e ao governo no Brasil, até 1888, quando foi abolido, é um tema que ainda desperta interesse dos pesquisadores, consideradas as profundas marcas deixadas na sociedade, nos costumes, na cultura e no próprio pensamento constitucional brasileiro, responsável pela fundamentação do ordenamento jurídico nacional.

O iluminismo forneceu inspiração teórica para a condenação da escravidão adotada pelo antigo regime, mas não se mostrou forte o suficiente no Brasil para apressar o fim da exploração da mão de obra servil. Os ideais de igualdade e liberdade que ecoaram da Revolução Francesa penetraram na intelectualidade brasileira de forma lenta e com pouca intensidade, a ponto de tolerar a ambiguidade de apregoar o discurso liberal, mas praticar e apoiar-se no trabalho escravo.

O pensamento constitucional brasileiro de então, mormente no período imperial, emergiu de juristas que formavam uma elite incumbida, também, de prestar aconselhamento ao imperador, conselhos estes que refletiam as ideias de índole conservadora, próprias de quem tinha interesse em manter o estado de coisas que favorecia a classe dominante.

O colapso econômico do sistema escravista decorreu, primeiramente, da Revolução Industrial, em suas duas etapas (1760 e 1880); seguiu-se a queda do preço da reprodução, na própria Europa, dos homens brancos, decorrente dos benefícios de ordem sanitária e farmacológica trazidos pela própria Revolução Industrial; e, ainda, pela elevação dos custos da mão de obra escrava, a ponto de tornar-se mais cara do que a contratação assalariada dos brancos. Acresça-se que, no fundo, o interesse na abolição da escravidão, com substituição pelo trabalho assalariado, iria fazer surgir um novo segmento de compradores, expandindo os negócios e os mercados.

O presente artigo científico tem o objetivo geral de analisar o processo de abolição da escravatura no Brasil, cotejando-o com o princípio da igualdade — cuja desconsideração representou seu problema central —, procurando identificar suas características à luz do pensamento constitucional nacional. E, como objetivo específico, busca localizar, nesse processo legislativo-progressivo e lento de libertação dos escravos, traços de semelhança com o processo de reconhecimento da profissão e de igualação de direitos dos empregados domésticos

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contemporâneos, relativamente aos demais trabalhadores, tendo em vista a diferenciação que ainda pesa contra os primeiros.

Nesse contexto, indaga-se qual o papel do pensamento constitucional brasileiro na abolição da escravatura e os reflexos desse regime de servidão no processo de reconhecimento e de igualação dos direitos do trabalhador doméstico, considerado o princípio da igualdade.

A pesquisa é de natureza qualitativa, realizada na legislação e na doutrina, com fins descritivos. Quanto ao resultado, é pura ou destinada ao conhecimento, sem pretender transformar o objeto apreciado. Adota-se, portanto, o método qualitativo.

São tratados, no primeiro capítulo, após resumida visão histórica, a situação da escravidão no Brasil e sua importância econômica à época da colônia e do império; a desigualdade como sua questão central e a convivência com os ideais liberais, além da indicação dos principais atores no processo de libertação, bem como este se desenvolveu. No segundo capítulo analisa-se o trabalho doméstico como herdeiro de uma das atividades exercidas pelos negros do período de servidão, e o tratamento discriminatório que vem recebendo do legislador brasileiro, em comparação com o referido itinerário demorado e legislativo-progressivo que se impôs para a abolição, concluindo-se pela existência de reflexos daquele processo na situação jurídica dos trabalhadores domésticos.

1. A escravidão no Brasil colonial e imperial

Os portugueses lançaram mão do trabalho escravo dos negros traficados da África como forma de explorar as terras coloniais no Brasil, apropriadas à cultura extensiva da cana-de-açúcar, inicialmente, e, depois, para a cultura do café.

1.1. Breve visão histórica da escravidão

Para Montesquieu 1, “a escravidão propriamente dita é o estabelecimento de um direito que torna um homem tão próprio

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de outro homem, que este é o senhor absoluto de sua vida e de seus bens”.

São várias as origens da escravidão apontadas por Montesquieu. A mais propalada — e por ele refutada, uma vez que insensata —, oriunda dos jurisconsultos romanos, explica que

O direito das gentes quis que os prisioneiros fossem escravos, para que não fossem mortos. O direito civil dos romanos permitiu que devedores que podiam ser maltratados por seus credores vendessem a si mesmos; e o direito natural determinou que crianças que um pai escravo não podia mais alimentar se tornassem escravos como seu pai2.

A escravidão dos negros africanos, pelos europeus, é creditada a razões de necessidade visando à exploração das colônias na América, notadamente a cultura da cana-de-açúcar, diante do extermínio dos nativos. A tais motivos somam-se outros pertinentes aos traços físicos, dúvidas quanto à sua identidade humana e à existência de uma alma dentro deles, bem como a ausência de senso comum3. Não seria, então, injusto, nesse contexto, submetê-los à escravidão.

O ressurgimento da escravidão no mundo ocidental não guarda semelhança com a lógica da antiguidade, posto que orientado, desta vez, marcadamente, pelo interesse econômico.

Os portugueses, no Brasil colonial, primeiramente tentaram utilizar a mão de obra indígena na cultura da cana-de-açúcar, mas não lograram êxito, seja pela forte resistência oferecida pelos jesuítas que se dedicavam à catequização dos silvícolas, seja porque era difícil a sua captura, seja, ainda, pela redução dessa população, devastada que foi pelos germes trazidos pelo homem branco4.

A escravidão dos negros no Brasil recebeu o impulso dos altos lucros propiciados pelo tráfico, a partir da segunda metade do século

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XVI, estabelecendo uma rota do crescente comércio negreiro entre a África e o Brasil, inicialmente com desembarque nos portos do Recife, Salvador, Belém, São Luís e Rio de Janeiro, para abastecer a demanda da força de trabalho em uma economia voltada para o mercado externo5, fundada na lavoura de extensão.

As grandes fortunas que se formaram graças ao comércio negreiro eram majoritariamente portuguesas, e, não, brasileiras — como observa Buarque de Holanda6 —, de sorte que os lusitanos não tinham interesse na modificação da situação, mormente do tráfico.

Independente de Portugal em 1822, o império brasileiro herdou dos lusitanos a escravidão dos negros, formada por um contingente daqueles trazidos da África e outros aqui nascidos — como observa Valladão7 —, restando-lhe o desafio de com ela conviver por mais sessenta e seis anos, até a abolição total da servidão.

1.2. O trabalho dos negros escravos como sustentáculo do Brasil Imperial

Desde a época colonial, a sociedade brasileira se achava estruturada no meio rural, constituindo não apenas uma civilização agrícola, mas, propriamente, uma civilização de raízes rurais, conforme Buarque de Holanda8, assim permanecendo até a abolição.

Durante o período monárquico, no Brasil a riqueza se assentava na utilização da mão de obra escrava “e na exploração extensiva e perdulária das terras de lavoura”, concentrando-se em mãos dos “fazendeiros escravocratas”9.

A política era dominada, sem contestação, por esses fazendeiros e seus filhos, também educados para as profissões liberais, diretamente ou através de pessoas por eles eleitas, de modo que ocupassem parlamentos, ministérios e demais postos de comando, dando, assim, o

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tom e a estabilidade das instituições10. O domínio econômico, social e político dessa classe foi de tal modo tranquilo que lhe permitia até incursões liberais, contrariando as próprias tradições e expondo suas fragilidades — o que, depois, propiciaria a abolição da escravatura.

A sociedade desse período imperial se concentrava no “binômio senhor/escravo” e tal significava, além dos próprios extremos, sua “marca mais característica, o que não implicava a inexistência de uma camada intermediária”11. Mas, nesse universo em que preponderava a escravidão, ao homem livre que não fosse senhor de escravos restava um diminuto papel, relegado à vadiagem ou à atividade de caçador de servos foragidos.

O proprietário das terras concentrava, assim, desde o período colonial, uma autoridade incontestável, às “vezes caprichosa e despótica”, e nessas propriedades autossuficientes se encontravam capelas, escolas primárias, produção de alimentação e de móveis, enfim, tudo o que era necessário à sobrevivência, observada, ainda, uma estrutura familiar inspirada no modelo clássico romano-canônico, sob a autoridade do pater-famílias12.

Logo no primeiro reinado iniciaram-se as mudanças econômicas, tendo em vista a expansão da lavoura do café. No entanto, continuava o Brasil servindo-se da...

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