A guerra como espetáculo: uma reflexão sobre os conflitos militares na pós-modernidade

AutorAmanda Pinheiro Mancuso
CargoUniversidade Federal de São Carlos
Páginas369-382

Amanda Pinheiro Mancuso1

    The war as a spectacle: a reflection about military conflicts in post-modern times

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Introdução

E, contudo, Marx continua sendo infelizmente demasiado atual, quando evoca, no mesmo livro, este governo "que não toma de noite as decisões que quer executar de dia, mas decide o dia e executa à noite". (DEBORD, 1997a, p.22).

Nos últimos anos muito se ouvir falar a palavra espetáculo, seja da vida, do crescimento e também da guerra. O conceito foi criado por Guy Debord em seu livro A sociedade do espetáculo (1967) para descrever a principal característica da sociedade pertencente à fase atual do modo de produção capitalista:

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uma sociedade na qual as relações sociais entre as pessoas se realizam intermediadas pela imagem. Porém, a superutilização do termo espetáculo, principalmente para se referir ao que quer que diga respeito ao meio de comunicação mais marcante dessa sociedade - a televisão - fez com que ele perdesse sua essência e se transformasse em mais um chavão desse veículo de massa. Utilizado num sentido de falsa crítica ou de falsa consciência, essa "falsificação do real" talvez seja a única característica aparente que permanece ao conceito desenvolvido por Debord, pois, como tudo nessa sociedade, ele foi apropriado pela sociedade espetacular e transformou-se, como define Eco (1993), em mais um daqueles conceitos amplamente utilizados para explicar os mais diversos fenômenos, mas que, no fundo, implicam no real desconhecimento dele: o conceito-fetiche. 2

Mas apesar da apropriação do conceito pelo espetáculo, no campo teórico ele continua sendo um conceito válido e atual. Como o próprio Debord fazia questão de ressaltar nos prefácios das inúmeras re-edições, o livro não sofreu nenhuma alteração no decorrer dos anos desde sua primeira publicação, apesar do rápido avanço do espetáculo, principalmente a partir da década de 80. Debord acreditava que suas considerações permaneceriam as mesmas para além do fim do século, isto porque teria compreendido os fatores constitutivos do espetáculo "no curso do movimento e conseqüentemente pelo seu lado efêmero", quer dizer, encarando o conjunto do movimento histórico que edificou esta ordem e que agora começa a dissolvê-la. Durante este tempo, diz Debord, "o espetáculo não fez mais que unir com mais rigor o seu conceito, e o movimento real da sua negação não fez mais que propagar-se extensivamente e intensivamente" e, assim, permanecerá o livro sem a necessidade de revisão enquanto permanecerem as condições gerais desse período histórico. 3 Por tudo isso, Debord deu uma grande contribuição para a análise do capitalismo no mundo pós-moderno.

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O objetivo deste trabalho é discutir o conceito de Debord em uma de suas muitas aplicações atuais: o espetáculo da guerra. Desde a guerra travada em 1991 pelos EUA contra o Iraque, o conceito vem sendo utilizado para definir os modernos ataques empreendidos pela principal potência mundial, com o emprego de superarmas e a presença massiva da televisão, exibindo os bombardeios como artifício na briga pela audiência. Nesse processo, a quantidade de informação divulgada a cada minuto não prima por qualidade. Ao contrário, essa qualidade se perde em meio à enxurrada de notícias veiculadas, muitas vezes desconexas dos acontecimentos e, não raro, não condizentes com a realidade. Assim, a alienação recíproca gerada pelo espetáculo - alienação da própria realidade e da existência do espetáculo - está presente também na guerra, em que um acontecimento que atinge a vida de milhares de pessoas, provocando o sofrimento e a morte de seres humanos reais, se transforma em imagens de jogos de guerra, como aqueles disputados por crianças em seus videogames, como imagens de uma realidade que não nos atinge e é passível de ser esquecida no minuto seguinte: "A realidade surge no espetáculo e o espetáculo é a única realidade". Isto é, na guerra, o real se resume somente os fleches de luz em meio à escuridão, o que mais existe não interessa ao espetáculo, ou seja, a ninguém.

Guy Debord e o espetáculo

Antes de falarmos sobre o espetáculo, caberia levantar uma breve discussão sobre a condição responsável ou garantidora de sua existência: a pósmodernidade. Segundo Jameson (1985), este conceito é mais um dos muitos que permanecem pouco compreendidos, embora amplamente utilizado. Sua principal função é definir uma forma específica de manifestação cultural surgida nos anos posteriores à II Guerra Mundial como uma reação ao cânone da modernidade. Esse movimento, que marcou a revolução no campo cultural do começo do século XX, passou então a ser visto como o sistema a ser destruído para que algo novo pudesse surgir. Nesse sentido, sua principal característica é a quebra de velhas fronteiras culturais tradicionais, principalmente aquela que separava a cultura erudita da cultura popular. Com isso, não somente se perdeu a linha que separava uma "cultura superior" de outra "popular", entendida como tradicional, mas tudo foi apropriado por esse novo sistema e transformado em cultura popular em seu sentido pejorativo e dominador: a cultura de massa.

Portanto, a pós-modernidade é um conceito de periodização que correlaciona "a emergência de novos traços formais na vida cultural com a emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica" (JAMESON, 1985, p.17) que, entre suas muitas denominações, é também conhecida como sociedade do espetáculo. Surgidos na mesma época, cada um dos conceitos estabelece seu domínio sobre diferentes aspectos da vida humana -

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econômico, cultural, social, político - e passam a definir o estilo e as condições de vida nas sociedades nas quais o capitalismo se tornou o modelo vigente, num processo iniciado a partir da II Grande Guerra.

O espetáculo é uma visão de mundo que se objetivou, se tornou concreta, e surgiu ao mesmo tempo como projeto e resultado do modo de produção que caracterizou o século XX: o modo de produção capitalista. Ele é a característica definidora da vida nas sociedades nas quais o capitalismo se apresenta em sua plena condição, transformando-as numa imensa acumulação de espetáculos, isto é, "tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação" (DEBORD, 1997, p.13). Nesse estágio do modo de produção capitalista, o capital atingiu tal grau de acumulação que se desprendeu da própria mercadoria em sua forma física, transformando-se em imagem. Dessa forma, tudo o que é não somente produzido, mas também vivido nessas sociedades é transformado em mercadoria e, portanto, passível de ser consumido. Porém, o espetáculo não é somente o conjunto dessas imagens produzidas pelo capital, mas o processo no qual as imagens passam a ser as mediadoras das relações sociais entre as pessoas. Embora sejam reais tanto o capitalismo quanto a sociedade que o faz funcionar, o espetáculo transforma a vida real em irrealidade e consubstancia-se no modelo de relação social dominante da sociedade.

Segundo Debord (1997), sob todas as formas particulares de manifestação do espetáculo como a informação e a propaganda, a publicidade ou o consumo direto de divertimentos, ele se caracteriza por transformar toda a realidade do mundo em imagem. Para tanto, criou uma linguagem própria constituída pelos sinais dessa produção dominante, cujo principal objetivo é sua própria manutenção e a perpetuação do status quo . Com isso, a sociedade do espetáculo passa a ser o sinônimo do atual estágio de desenvolvimento da sociedade. Isto é, enquanto uma relação social, o espetáculo é a própria atividade social, porém agora com este novo elemento que se coloca entre as pessoas, a imagem. Ela falsifica e domina tudo, do chocolate aos ídolos, da cerveja aos ideais e pensamentos. Tudo é transformado em mercadoria. Não aquela mercadoria que mediava as relações entre as pessoas nos primórdios do capitalismo, mas sim essa nova mercadoria em forma de imagem, num processo em que as coisas não precisam exatamente ser, independente de sua existência física, basta que elas apareçam ou pareçam ser.

Como produto e projeto do modo de produção capitalista, gerador insaciável de mercadorias que se tornam objeto de desejo, devoção e sinônimo de felicidade - o fetiche da mercadoria - o espetáculo é uma forma de dominação que aparece quando, na verdade, os homens já foram totalmente dominados pela economia, pela crescente produção de "imagens-objeto", ou seja, "é o reflexo fiel da produção das coisas, é a objetivação infiel dos...

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