68 and the walkers/68 e os andarilhos.

AutorPassetti, Edson

O que os cemiterios provam, ao menos para gente como eu, nao e que os mortos estao presentes, mas que se foram de vez. Eles se foram, enquanto nos, por enquanto, nao fomos. Isso e fundamental e, embora inaceitavel, bem facil de compreender. (Philip Roth)

Ha uma enorme diferenca entre a vida biologica e a vida nos acontecimentos produzidos pelo humano. Para os que se dispoem a olhar 68 como ano de fatos marcantes que encontraram ajustes posteriores voltados para conter aquelas surpresas estonteantes, nada como rememorar e, ao faze-lo, situar as suas impressoes, o intempestivo a ser ajustado, o pasmo e o que deve e pode ser manejado para encontrar ou reencontrar, as definitivas causalidades, inclusive nos acasos.

Leituras conservadoras tendem a depreciar ou simplesmente minimizar 68. Leituras mais atualizadas procuram encontrar os acertos institucionais e normalizar este acontecimento. Sao algumas das leituras possiveis, ou sao simplesmente as majoritarias, e as duas nao sabem onde esta o cadaver desaparecido de 68. Oscilam, entao, entre coloca-lo no ostracismo ou aproveitar a delonga do tempo para comemorar, formalmente, mais uma decada de passagem, sublinhando os acertos obtidos extraidos daquele caos ou mesmo anarquia, evocando seu espirito. Elas nao sao corajosas para matar 68, tampouco misericordiosas para um silencio em seu imaginado tumulo; preferem as preces quase solenes aos envelhecidos de 68. Sabem nao haver cova nem menhir, assim como permanecem sem valas ou lapides os muitos desaparecidos que desde la se revoltaram.

Em 68 foram muitos os audaciosos enfrentando o insuportavel com forcas e atitudes, ate mesmo com o ideal de revolucao herdado da Revolucao Francesa, da Revolucao Russa, Chinesa e Cubana. Nao esperavam que esse guia revolucionario, tido e visto em progresso ou evolucao, seria ultimamente substituido pelo ideal da independencia estadunidense: a democracia. E o que esta palavra, pratica e diversidade comportaram naquele momento e nos seguintes, tambem se viu reduzida a uma nova uniformidade como democracia representativa, participativa, publica enfim, uma democracia de governo do Estado e das relacoes.

68 nao produziu um corpo, mas andarilhos que nada tem em comum com os velhos nomades. Este texto pretende falar desses estranhos andarilhos que se recusaram e renunciaram ser capturados como horda, nomade ou vandalo contemporaneo como pleiteia a linguagem ordeira e normalizada de nossos dias. 68 explicitou proveniencias do que viria ser a chamada globalizacao a partir dos anos 1990, mas, principalmente, uma nova governamentalidade, uma nova conducao das condutas em um planeta dimensionado pela racionalidade neoliberal.

Nao se trata de olhar 68 pelo que produziu de transgressoes ajustadas, nem tampouco de lhe dar o estatuto de origem, mas de produzir um patchwork costurado com agulhas diferentes e linhas e cadarcos a mao, tao ao gosto da epoca, que embaralha o suposto quebra-cabeca que orienta para se encontrar as devidas pecas para os devidos lugares, compondo uma imagem emoldurada. Tomemos entao os retalhos de varias tessituras, cores, tamanhos, pesos enfim, para serem costurados, colados, armados em imagens eletronicas, ou uma tecnica de oficio que pode redundar em uma capa para nos cobrir, uma vestimenta-paragole, uma colcha para aquecer, um tapete para sentar, deitar e aconchegar corpos suados, uma protecao para a luz solar que inunda o ambiente, uma toalha para comer na relva, na mesa ou no assoalho. Nao nos impomos a tarefa de sistematizar, de almejar uma meta, de construir ou reconstruir a verdade, mas trazer 68 hoje, para resistentes aos poderes, as conducoes de condutas, e avessos ao apreco pelo lugar da fala.

Os andarilhos

Quem alcancou em alguma medida a liberdade da razao, nao pode se sentir mais que um andarilho sobre a Terra--e nao um viajante que se dirige a uma meta final: pois esta nao existe (Nietzsche, 2000: 271).

68 e um acontecimento de andarilhos. Dizem que foi um movimento de estudantes classe-media. Tolice Nele estavam estudantes, sim, universitarios ou nao, maiores e menores de idade, garotas liberadas tomando anticoncepcionais, aticando garotos e outras garotas dispostos a serem mexidos, operarios rompendo com as amarras sindicais e partidarias, gente que passava pelas manifestacoes e que nela se atirava, moleques subindo nos postes externando livre e corajosamente suas perturbacoes.

"Agora estas noticias esta colagem de lembrancas. Tal como aquilo que contam sao obra anonima: a luta de um punhado de passaros contra o Grande Costume (...) Como isto so vai durar um dia, como isto so vai durar um tempo ou dois, como isto e todo o resto se acaba, queira ou nao o Estado ou o individuo (esse pequeno Estado) isto se acaba porque ja esta nascendo o tempo aberto o tempo esponja (...) Maio 68 Maio 68 o poema do dia o efemero e recorrente fogo de artificio ardendo na Franca e na Alemanha no Rio em Buenos Aires em Lima e em Santiago os estudantes ao assalto em Praga e em Milao em Zurique e em Marselha os estudantes cheios de pombos de polvora os estudantes que erguem com suas maos nuas os paralelepipedos de cimento e estatistica para apedrejar o Grande Costume e na ordenada cibernetica abrir de par em par janelas como seios (...) A unica coisa imutavel no homem e sua vocacao para o mutavel; por isso a revolucao sera permanente, contraditoria, imprevisivel, ou nao sera. As revolucoes-coagulo, as revolucoes pre-fabricadas, contem em si mesmas sua propria negacao, o Aparelho futuro" (Cortazar, 2014: 86-117).

Naquele ano rondava o imprevisivel. Em 18 de junho, em Bogota, no estadio El Campin, jogavam Selecao da Colombia e Santos Futebol Clube. O arbitro da partida era Guillermo Vellasquez que, ao final do primeiro tempo, expulsou Pele. A imensa torcida presente ao estadio queria ver Pele, rei-deus negro, e o timaco do Santos F.C. jogar contra sua selecao. Convulsao geral durante o intervalo. Ao reiniciar o jogo, Pele estava em campo. O juiz foi substituido pelo bandeirinha, e o Santos venceu por 4 a 2. A torcida colombiana queria apreciar a arte e nao se sujeitar a onisciencia de um juiz!

No mesmo mes de junho, o estadio do Botafogo Futebol e Regatas, no Rio de Janeiro, seria utilizado como espaco de confinamento destinado aos estudantes contestadores apanhados pelas forcas repressivas. Em marco, a cidade se movera com a morte do estudante Edson Luis Lima Souto no restaurante Calabouco, e o cortejo funebre agrupou mais de 50.000 pessoas silenciosas, tristes e com sangue iracundo pulsando ate o cemiterio Sao Joao Baptista. O protesto pelas ruas do Rio repercutiu em proibicao as manifestacoes pelos governantes, anunciando o procedimento repressivo que se tornaria padrao, sobretudo, apos a promulgacao do AI-5, no final do ano (1). Entao, nada como comemorar os quatro anos da ditadura civil-militar (que a epoca era chamada apenas de ditadura militar) com uma manifestacao estrondosa em 1. de abril, paralisando a cidade, danificando viaturas oficiais, apedrejando lojas e bancos. O governo ficou apavorado e em junho temia um maio de 68. "Por ocasiao da greve de Osasco, o ministro do trabalho Jarbas Passarinho tambem advertia: 'O Tiete nao e o Sena'. Alguns estudantes estimulavam essa paranoia. Luis Raul Machado dizia, durante a ocupacao do CRUSP em Sao Paulo: 'Os generais podem estar tranquilos que nao se repetira aqui o que houve na Franca. Vai ser muito pior'" (Ventura, 1988: 133). No Rio de Janeiro, novos confrontos ocorrem, na sexta-feira sangrenta: "os fugitivos tentam refugiar-se nos predios, mas duas viaturas do DOPS surgem jogando mais bombas. Um helicoptero sobrevoa o local. Sirenes anunciam que estao chegando reforcos. E um pandemonio. Policiais gritam: 'vamos atirar para matar! '. Em seguida, tres mocas caem feridas. (...) Maria Angela Ribeiro, ferida na fronte, e levada com vida para o QG da PM, onde morre em seguida. E hora do almoco, e a reacao popular vai comecar. Alguem joga pedacos de gelo de um edificio, tentando acertar a policia. Foi como um sinal. Uma chuva de objetos passa a cair em lugar do gelo" (Idem: 136). Foi na quinta-feira que os policiais prenderam, molestaram e feriram cerca de 400 estudantes no estadio do Botafogo F.R. As fotos circularam e nelas se viam "soldados urinando sobre corpos indefesos ou passeando o cassetete entre as pernas das mocas, junto as imagens de jovens de maos na cabeca, ajoelhados ou deitados de brucos com o rosto na grama, eram uma alegoria da profanacao" (Idem: 139). Em resposta as violencias das forcas armadas e da policia militar, no 26 de junho, quatro dias depois da sexta-feira, cerca de cem mil pessoas sairam as ruas do Rio de Janeiro, em manifestacao que ficou conhecida Passeata dos cem mil.

Era o Brasil nos centros urbanos arremetendo contra a ditadura. Nao era uma questao numerica, mas da potencia da revolta. Ao seu modo, os jovens em Praga se atiraram contra o comando stalinista que anexara territorios da Europa Oriental. Eles nao queriam ser suditos do socialismo, mostravam descrer na revolucao com terror, queriam retornar ao ponto em que foram interceptados e fazer jorrar o que estava contido, calado, quase em um vomito: perigo de confronto e peste. Os jovens de la nao queriam saber de socialismo, os daqui pensavam em socialismo, e ambos nao suportavam as suas respectivas ditaduras.

Havia uma polifonia e por efeitos midiaticos tudo parecia, pelo menos por aqui, como reflexo de Paris. Talvez, porque em Paris houvera um tanto de tudo que buscava afirmar uma vida outra, que eclodira em Nanterre, no 23 de marco, se estendera para a ocupacao da Sorbonne em 3 de maio, e depois ao Teatro Odeon, por onde passaram os integrantes do The Living Theatre, assim que a criacao coletiva Paradise now (2) foi proibida no Festival de Avignon: "O comeco foi otimo porque comecavam os 'atores' a surgir por entre a 'plateia' (...) entao, comecavam a dizer frases baixo e aumentando a voz, e a repeticao fazia como que uma cadeia...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT