O Que é a Lei?

AutorFrancesco Carnelutti
Ocupação do AutorAdvogado e jurista italiano
Páginas35-51

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Os juristas de outrora não conheciam nenhuma diferença entre direito e lei. Certamente esses dois conceitos têm indiscutivelmente um elemento comum: a ideia do vínculo. Contudo, qualquer um que tenha uma certa cultura sabe que, enquanto o direito é um conceito exclusivamente jurídico, o mesmo não se pode dizer da lei, posto que não somente os juristas mas também os cultores de outras ciências e, em primeiro lugar, das ciências naturais, usam essas mesmas palavras; naturalistas, físicos, químicos, astrônomos, antes de tudo.

O primeiro perfil, portanto, do qual o problema da lei deve ser examinado, concerne a relação entre lei jurídica e lei natural: tratam-se de duas espécies de um mesmo gênero ou, ao invés, lei

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jurídica é um conceito totalmente diferente da lei natural?

Os juristas de agora consideram a lei jurídica não somente como um conceito diverso, mas até como um oposto da lei natural. Em particular, a reine Rechtslehre quis purificar antes de tudo o conceito da lei jurídica, opondo-se àquele da lei natural: esta última se refere àquilo que é, aquela ao que deve ser: o primeiro se diria um conceito ontológico e o segundo, deontológico.

Propriamente a lei natural exprime um vínculo entre um prius e um post; os naturalistas, depois de Newton, a concebem como uma consecutio necessaria de dois estados da natureza: um anterior e outro imediatamente posterior. Nesses termos, a lei natural se identifica com a causali-dade ou, pelo menos, serve para descobrir a causalidade: quando dois estados da natureza são, necessariamente, consecutivos, basta a existência do primeiro para que se possa estabelecer a existência do segundo. Entende-se assim o sumo valor da descoberta de uma lei natural; quando possui uma destas leis, o homem pode abrir uma janela para o futuro. Mas se, portanto, suposta a existência de um estado da natureza, podemos estabelecer o estado consecutivo antes que esta

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venha a existir, como não ver também que a lei natural exprime não tanto o que é quanto o que deve ser?

A maioria, todavia, pensa que o mundo natural seja dominado da causalidade e não da finali-dade; não há nada de deontológico na natureza. Sob tal aspecto são totalmente diferentes, aliás, são opostos o mundo das coisas e o mundo dos homens, a matéria e o espírito. Porém, embora a escola do direito puro não seja certamente antiga, muita água passou debaixo da ponte desde que essas ideias foram concebidas e a maioria dos juristas as tem docilmente acolhidas. A verdade é que a evolução das ciências naturais nos últimos tempos foi mais uma revolução. De um lado, o próprio conceito da lei como consecutio necessaria de dois estados da natureza mudou, substituindo-se a necessidade com a probabilidade e tendo desmoronada, portanto, a fé na infalibilidade da lei; do outro, a diferença, ou melhor, a oposição entre a causalidade e a finalidade acaba por desaparecer e cada dia mais os naturalistas descobrem, nos setores mais diversos, que aquela que parecia uma pura consecutio causalis é, na verdade, uma consecutio finalis, ou seja, que a causa e o fim se distinguem somente na mente limitada dos

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homens, os quais dizem porque somente porque não conseguem ver a fim de que, escondido dos seus olhos.

Hoje não se falta o respeito a Kelsen e à sua escola se sobre o primeiro termo da definição opositiva da lei jurídica à lei natural, começa-se a ficar perplexo.

O que se pode dizer, sem reservas, da lei jurídica, é que ela esclarece melhor a relação de finalidade em lugar da causalidade entre os dois termos do complexo. Esse caráter se deve ao fato que a lei jurídica é constituída pelos homens; por isso a lei jurídica se opõe à lei natural como uma lei artificial.

Apesar disso, do ponto de vista da estrutura, a lei jurídica e a lei natural se assemelham como duas gotas de água. Há numa como noutra um prius e um post e a lei exprime o vínculo entre eles. Quando o naturalista diz: posto que um homem nasceu deve morrer, é o mesmo que se o jurista declara: posto que um homem matou, deve ser morto. Porém, o problema, quanto à lei jurídica, se refere à razão, pelo que os homens têm necessidade de construir leis jurídicas ao lado das leis naturais.

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Quanto a mim, acredito ter meditado sobre esse problema ao longo de toda a minha vida. Ora, no ponto em que cheguei, ousaria dizer que a razão é a mesma pela qual os pintores e os poetas representam a natureza em seus quadros e em seus versos. Essa proposição, sem dúvida, apresenta um aspecto paradoxal, ou pelo menos problemático, e merece alguns esclarecimentos.

Enquanto os naturalistas cumpriram progressos admiráveis no campo das leis naturais, o mesmo não aconteceu com os...

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