A ação civil pública e as dispensas coletivas

AutorAugusto Grieco Sant'Anna Meirinho e Lorena Vasconcelos Porto
Páginas428-439

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Ver notas 1 y 2

1. Introdução

O presente artigo visa ao estudo da Ação Civil Pública em matéria de dispensas coletivas. Primeiramente, analisam-se a dispensa coletiva no Direito brasileiro e as possíveis contribuições do Direito comparado. Em seguida, estuda-se a Ação Civil Pública como instrumento de defesa de direitos transindividuais, de concretização de direitos fundamentais e a possibilidade da sua utilização, seja pelo Ministério Público do Trabalho, seja pelos próprios sindicatos, em matéria de dispensa coletiva.

2. A dispensa coletiva no direito brasileiro
2.1. A omissão legislativa e a jurisprudência

A ordem jurídica brasileira não regula a dispensa coletiva, mas apenas a individual. Não há, no Direito pátrio, uma distinção entre os dois tipos de dispensa, de modo que o empregador pode efetuá-la por qualquer motivo ou mesmo sem motivo, independentemente do número de trabalhadores envolvidos, devendo pagar-lhes tão somente a indenização calculada sobre os depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

Há apenas duas portarias do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) sobre a matéria: a Portaria n. 3.219, de 9 de julho de 1987, que regula o acompanhamento das dispensas coletivas, apontando soluções alternativas, e a Portaria n. 01, de 9 de janeiro de 1992, que determina a fiscalização nas empresas em caso de dispensa em massa3.

Apesar da omissão legislativa, o fenômeno das dispensas coletivas, isto é, daquelas que envolvem um grande número de empregados e são ocasionadas por razões ligadas à empresa, sempre ocorreu no Brasil.

Nelson Mannrich observa que não se registra, na realidade brasileira, uma participação efetiva dos sindicatos no sentido de tentar impedir as dispensas coletivas ou reduzir os seus efeitos. A ação sindical isolada "limitou-se a introduzir critérios a serem observados na dispensa coletiva, encarada como um acontecimento inexorável". Em um levantamento feito pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), no setor metalúrgico de São Paulo, na segunda metade da década de 1990, observou-se "a falta de preocupação com a dispensa coletiva". A contratação coletiva não menciona a negociação prévia, soluções alternativas à dispensa ou medidas destinadas a atenuar o seu impacto, preocupando-se unicamente em estabelecer critérios a serem adotados por ocasião da dispensa4.

A dispensa coletiva reveste-se de uma importância particular, por afetar um grupo considerável de trabalhadores e gerar consequências para a própria sociedade. Desse modo, ela deve ser regulamentada de forma adequada, seja para evitar as dispensas, seja para reduzir o número de empregados envolvidos, seja para atenuar os seus efeitos, ressarcindo os obreiros dispensados e auxiliando-os a encontrar outro posto de trabalho, prevenindo, assim, conflitos maiores5.

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Se a perda do trabalho é um impacto considerável na vida do trabalhador, que retira do seu labor as condições financeiras para manter a sua família, quais não serão as consequências para a sociedade de uma dispensa em massa, em que um número significativo de pessoas é lançado ao desemprego. Como ressalta Mauricio Godinho Delgado:

A dispensa coletiva certamente deflagra efeitos no campo da comunidade mais ampla em que se situa a empresa ou o estabelecimento envolvido, provocando, em decorrência disso, um forte impacto social. (...). Apesar de tudo isso, as dispensas coletivas não têm contado, na tradição infraconstitucional brasileira, com dispositivos legais regulamentadores. No Brasil, hoje, curiosamente, a lei não se contenta em considerar como ato afirmativo da individualidade do empregador a ruptura unilateral dos contratos de trabalho; até mesmo a dispensa maciça, coletiva, causadora de graves lesões sociais, é descurada pelo Direito do Trabalho do país.6.

Face à omissão legislativa, a jurisprudência, embora timidamente e apenas duas décadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988, começou a interpretá-la no sentido de extrair uma diferenciação de tratamento para a dispensa coletiva. No dissídio coletivo relativo à despedida maciça de empregados pela EMBRAER causada por graves dificuldades econômicas, a Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho (TST), por maioria, firmou o entendimento, aplicável a situações futuras à data do julgamento (10.8.2009), de que a negociação coletiva com o sindicato profissional é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores, a fim de atenuar os seus efeitos sociais e econômicos7.

2.2. A Convenção n 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)

A Convenção n. 158 da OIT, relativa ao "Término da Relação de Trabalho por Iniciativa do Empregador", foi aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 68 de 1992 e promulgada pelo Decreto n. 1.855 de 1996.

A Convenção condiciona a validade da dispensa do empregado à existência de um motivo juridicamente relevante, relacionado à sua capacidade, ao seu comportamento ou às necessidades de funcionamento da empresa (art. 4º).

Os motivos relacionados às necessidades da empresa são aqueles de ordem econômica, tecnológica, estrutural ou análoga. São previstos determinados procedimentos que devem ser adotados pelo empregador antes de proceder às despedidas fundadas nesses motivos. Menciona-se a consulta aos representantes dos trabalhadores, acompanhada de informações relativas às causas da dispensa que se pretende efetuar, bem como ao número e às categorias de obreiros envolvidos. O empregador deve também notificar por escrito a autoridade competente (v. g., um órgão do Governo), comunicando-lhe as informações acima referidas (arts. 13 e 14).

A Convenção prevê que tais procedimentos podem ser limitados às dispensas de, no mínimo, um determinado número de trabalhadores ou de um percentual em relação à totalidade de obreiros da empresa.

A proteção da relação de emprego contra a dispensa imotivada é prevista expressamente no art. 7º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, sendo, portanto, um direito fundamental. Nesse sentido, a Convenção n. 158, por ser um tratado internacional que contém normas de proteção a direitos fundamentais, foi incorporada na ordem jurídica brasileira com o status constitucional, por força do art. 5º, § 2º, da Carta Magna. A sua denúncia efetuada pelo Decreto n. 2.100/96 é inconstitucional e, portanto, inválida, o que está sendo atualmente julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI n. 16258.

3. A dispensa coletiva no direito comparado e as possíveis contribuições para o direito brasileiro

Tendo sido recepcionada no Direito brasileiro com o status constitucional, as normas da Convenção n. 158 são parte integrante da Constituição Federal de 19889. Admite-se, no entanto, a possibilidade de alguns de seus dispositivos serem regulamentados por meio de lei ou da negociação coletiva, para melhor adequá-los à realidade do país. 9

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Nesse sentido, pode-se recorrer ao Direito comparado como fonte material, servindo de inspiração ao legislador brasileiro e às entidades sindicais negociantes. As ordens jurídicas estrangeiras podem também cumprir o papel de fonte formal, embora subsidiária, pois, nos termos do art. 8º, caput, da CLT, é facultado ao juiz recorrer ao Direito comparado para buscar a solução ao caso concreto10.

Buscaremos apontar alguns exemplos de normas estrangeiras que bem se coadunam à regulamentação dos dispositivos da Convenção n. 158, sem a pretensão de uma exposição exaustiva da matéria.

O estudo do Direito comparado revela que em diversos países -, tais como Itália, Alemanha, França, Espanha, Portugal, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Inglaterra, Estados Unidos e Japão -, a dispensa coletiva é regulamentada por meio de lei e, em alguns casos, também pela contratação coletiva.

A grande maioria desses países exige, para a configuração da dispensa coletiva, que seja despedido um deter-minado número de obreiros, em um certo intervalo de tempo, por razões ligadas à empresa. Tais países preveem procedimentos obrigatórios que devem ser seguidos pelo empregador antes de realizar a dispensa, consistindo, em regra, na informação e consulta aos representantes obreiros, notadamente aos sindicatos, e na notificação à autoridade administrativa. Tais procedimentos são previstos também pela Diretiva comunitária n. 59, de 1998, a exemplo das Dire-tivas n. 129, de 1975, e n. 56, de 1992, que a precederam, às quais tiveram que se adequar os países da União Europeia.

Até mesmo na China há uma lei e o respectivo regulamento, que disciplinam a dispensa coletiva (conceituada com base apenas nas razões que a motivam, não exigindo um número mínimo de obreiros a serem despedidos), estabelecendo um procedimento prévio obrigatório a ser seguido pelo empregador. Este deve consultar o sindicato e informar a autoridade administrativa11.

A consulta aos representantes dos trabalhadores visa buscar soluções para evitar ou reduzir as dispensas e, quanto àquelas que não puderem ser evitadas, atenuar os seus efeitos. A autoridade administrativa, por sua vez, deve ser notificada para cumprir vários papéis relevantes: assegurar que o empregador siga o procedimento previsto em lei; promover a conciliação entre este e os representantes obreiros, para que cheguem a um acordo; e ajudar os empregados dispensados a obterem um novo posto de trabalho, inclusive por meio de sua requalificação profissional.

A informação e consulta periódicas aos representantes dos trabalhadores, e não apenas na iminência da dispensa, desempenham um...

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