Tendências desmobilizadoras oriundas da terceirização e da precarização trabalhistas: reflexos na atuação sindical

AutorGabriel de Oliveira Ramos e Renata Queiroz Dutra
Páginas351-363

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1. Introdução

O final do século XX, motivado pela reestruturação produtiva pós-fordista, assistiu ao surgimento do fenômeno da terceirização, que se difunde e se amplia no início do século XXI, apresentando-se, ao menos por parte do empresariado, como tendência irreversível.

A terceirização pode ser conceituada como a transferência de atividades empresariais consideradas secundárias para uma outra empresa, que intermedeia a prestação de serviços em prol do tomador, a fim de permitir que os destinatários finais do labor prestado atenham-se à sua atividade principal3.

Como fato social decorrente da criatividade dos mercados, a terceirização surgiu como instituto à margem da disciplina trabalhista e, aos poucos, se tornou uma realidade latente a demandar regulamentação pelo Direito do Trabalho, pela ruptura que promove em relação aos institutos clássicos de proteção trabalhista e, sobretudo, pelo seu potencial precarizante.

A disciplina legislativa da matéria, no entanto, não adveio, o que transferiu ao Poder Judiciário o ônus de refrear o processo, estabelecendo parâmetros e definindo responsabilidades em face da relação triangular de trabalho. Nesse processo, entretanto, foi negligenciado o Direito Coletivo do Trabalho, cujas estruturas persistem alheias ao fenômeno.

A terceirização enquanto fenômeno socioeconômico, todavia, repercute de forma decisiva nos processos de afirmação da identidade coletiva, fragmentando a classe trabalhadora e dificultando o estabelecimento de vínculos de solidariedade.

A estrutura sindical delineada pela CLT e reafirmada pela Constituição de 1988 demonstra inadequação à nova realidade social, colocando aos intérpretes do direito a difícil tarefa de repensar os institutos do Direito Coletivo do Trabalho, a fim de que eles possam responder à realidade instalada da terceirização.

É o que se pretende analisar nesse ensaio.

2. Caracterização da terceirização: contornos jurídicos

A terceirização apresenta-se como fenômeno mundial, sobretudo a partir de 1970, chegando ao Brasil de forma decisiva por volta da década de 1980.4

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Uma das primeiras manifestações da terceirização, como explica Gabriela Neves Delgado, ocorre no seio do próprio Estado, por meio de medidas de descentralização administrativa materializadas no Decreto-lei n. 200/67, que acabaram por implicar a terceirização de atividades meramente executivas para a iniciativa privada. O aparecimento da terceirização no âmbito da administração pública, no entanto, ficou restrito às atividades-meio, como se confirmou com a edição da Lei n. 5.645/70.5

Outra investida de intermediação de mão de obra se apresenta com a regulamentação do trabalho temporário, pela Lei n. 6.019/74.

Alice Monteiro de Barros localiza o fenômeno da demanda por contratações temporárias na vedação do uso abusivo do contrato por tempo determinado, que adveio do Decreto-lei n. 229/67. Tal restrição teria acarretado a multiplicação do número de empresas locadoras de mão de obra, destinadas a fornecer mão de obra para outras empresas em atividade permanente ou transitória. Tal demanda teria sido atendida em 1974 com a regulamentação do trabalho temporário, contrato de natureza nitidamente precária, mesmo por caminhar contra o princípio da continuidade da relação de emprego, basilar do Direito do Trabalho6.

No entanto, a contratação de mão de obra temporária, por meio de empresa própria, teve suas possibilidades limitadas pela legislação. A organização produtiva nacional, tendo em vista a observância do modelo difundido mundialmente clamava por flexibilidade nas contratações e enxugamento dos seus quadros de pessoal, problema para o qual, do ponto de vista empresarial, a terceirização seria a resposta.

Outro passo importante nesse processo histórico foi a edição da Lei n. 7.102/83, que veio a regular o trabalho de vigilância bancária, admitindo a terceirização desse serviço. Essa possibilidade de uso permanente da mão de obra de vigilância terceirizada foi ampliada para além da esfera bancária por meio da Lei n. 8.863/94.7

No entanto, para todos os outros setores de atividades e fora das hipóteses restritas da Lei do Trabalho Temporário, a demanda do mercado por flexibilidade não encontrava resposta no ordenamento jurídico.

Assim, o fato social da terceirização precedeu qualquer normatização e acabou chegando às esferas jurisdicionais antes mesmo que qualquer medida legislativa fosse editada.

Como relata Noemia Aparecida Porto, o processo de abertura do ordenamento jurídico para a terceirização foi lento e moldado em resistências e concessões8.

Num primeiro momento, ao deparar-se com a avalanche terceirizante, subvertendo a lógica da relação empregatícia dos arts. e da CLT e segregando os trabalhadores em subclasses distintas no mercado de trabalho, com patrimônio jurídico também diferenciado e com seres empresariais diversos do tomador assumindo a responsabilidade patrimonial pelas verbas trabalhistas, a resposta do Tribunal Superior do Trabalho, coerentemente com os institutos jurídicos aplicados até então, foi a edição da Súmula n. 256, em 30.9.1986, vedando a terceirização fora das hipóteses de trabalho temporário e de serviços de vigilância.

Até aqui foi irrelevante a distinção entre atividade-meio e atividade-fim, que se quedaram igualmente inadmitidas, como observa Alice Monteiro de Barros9.

A pressão dos empregadores e a ampla difusão da terceirização fora dos setores apontados pela Súmula n. 256 levou a jurisprudência, paulatinamente, a ceder quanto à proibição e a formular novas exceções, relativizando a "rigidez" do enunciado editado em 1986.10

Esse processo veio a calhar em 1993, com a edição da Súmula n. 331 pelo TST, por meio da qual aquela Corte Superior ampliou a possibilidade de terceirização para além dos serviços de vigilância e de trabalho temporário, para

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serviços de conservação e limpeza "bem como a outros serviços especializados ligados à atividade-meio do empregador, desde que inexistente a pessoalidade e subordinação direta". Também para a Administração Pública passou a haver previsão expressa quanto à ausência de reconhecimento de vínculo nos casos de terceirização ilícita, acompanhada de previsão de responsabilização subsidiária pelas verbas devidas ao terceirizado.

Como processo impensado, não regulamentado, no qual o Judiciário apenas foi cedendo à realidade constituída, não se pode falar na ocorrência de planejamento e/ou regulamentação do fenômeno em sua totalidade. Se em pontos fulcrais como a responsabilidade pelas verbas trabalhistas a jurisprudencial se deteve, em pontos menos imediatos, como a questão da organização coletiva, houve profunda negligência.

Tal omissão, contudo, não impediu que a nova realidade da terceirização produzisse reflexos profundos na morfologia do trabalho e na organização coletiva dos trabalhadores. É o que se passará a abordar a seguir.

3. Os reflexos da terceirização na atuação coletiva
3.1. A ruptura dos processos de formação e afirmação da identidade coletiva: a supressão dos vínculos de solidariedade social

Numa sociedade industrial, o papel integrador do trabalho se destaca entre os demais elementos fundantes de identidades coletivas, como, por exemplo, as formas de integração e reconhecimento fundadas em proximidades geográficas, afinidades desportivas, religiosas, dentre outras.

No contexto de uma sociedade salarial é por meio do lugar ocupado no mercado de trabalho que o indivíduo se inscreve e amplia redes de sociabilidade11alcançando patamares razoáveis de integração social.

Como decorrência dessa integração promovida pelo trabalho é possível forjar o que se denomina "identidade coletiva", que, embora possa ser viabilizada a partir do estabelecimento de outras relações sociais de solidariedade (a exemplo dos beneficiários de políticas assistenciais de inserção), numa perspectiva qualitativa, dentro de uma sociedade salarial, fica condicionada ao pertencimento a coletivos estruturados, a estruturas portadoras de sentido, como o coletivo de trabalho, as associações de trabalhadores e os sindicatos 12. Castel explica:

Certamente, é possível identificar vários círculos de identidade coletiva fundada, primeiro, na profissão (o coletivo de trabalho) e que pode prolongar-se em comunidade de moradia (o bairro popular), em comunidade de modo de vida (o bar, as lanchonetes às margens do Marne, o subúrbio vermelho, o pertencimento sindical e político). [...] Na sociedade industrial, sobretudo para as classes populares, o trabalho funciona como o "grande integrador", o que, como precisa Yves Barel, não implica num condicionamento pelo trabalho. "Há a integração familiar. Há a integração escolar, a integração profissional, a integração social, política, cultural etc." Mas o trabalho é um indutor que atravessa esses campos, é "um princípio, um paradigma, algo enfim que se encontra nas diversas integrações concernidas e que então torna possível a integração das integrações sem fazer desaparecerem as diferenças ou os conflitos"13.

Portanto, é a partir da premissa da centralidade do trabalho para efeito de integração social do indivíduo e da construção de vínculos coletivos de solidariedade e de luta sólidos que se pretende analisar a heterogeneização, fragmentação e complexificaçãoda classe trabalhadora14. Esse processo decorre, dentre outros fatores, da mundialização do capital, da Terceira Revolução Industrial e da reestruturação produtiva - afirmação de sistemas de produção pós-fordistas, com destaque para...

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