O Direito do Trabalho e o Estado Democrático de Direito: o individual e o coletivo no exercício da autonomia do trabalhador

AutorMenelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti
Páginas168-175

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1. Introdução

No denominado constitucionalismo clássico, sob a ótica do primeiro paradigma constitucional, o do Estado de Direito, não reconhecia qualquer especificidade à relação contratual cível estabelecida entre os compradores da força de trabalho, cujas propriedades estendiam-se aos meios de produção, e aqueles que a vendiam, cuja propriedade privada, a rigor, usualmente limitava-se ao objeto daquele específico contrato de compra e venda, ou seja, à sua própria força de trabalho.

Em meados do século XIX, a imagem desse contrato de compra e venda, embora já desafiada, ainda prevalente à época como a de indivíduos que trocavam livremente equivalentes, é desnudada e enfaticamente denunciada por Marx, dentre outros, como a ocultar a maior exploração do homem pelo homem de que houve notícia na história e que se daria, precisamente, mediante a afirmação jurídica da igualdade, da liberdade e da propriedade de todos. Ao afirmar a igualdade jurídica formal dos contratantes, até porque acordariam livremente acerca do contratualmente avençado, o Direito de então desconhecia a efetiva posição de desigualdade econômica no mercado entre o proprietário dos meios de produção e aquele que era proprietário apenas de sua própria força de trabalho. Diante do excesso de oferta de mão de obra e da escassez dos postos de trabalho, a existência de um exército de mão de obra de reserva fazia, portanto, com que a igualdade afirmada apenas velasse a desigualdade efetiva de mercado, de tal sorte que a liberdade atribuída ao trabalhador só poderia se traduzir na mais absoluta situação de cogência econômica deste. Em face desse exército da mão de obra de reserva, ou o trabalhador aceitava trabalhar por pagamento bem a menor, segundo a lei da oferta e da procura, ou era livre para morrer de fome. Desse modo, a propriedade juridicamente afirmada do trabalhador sobre a sua própria força de trabalho era, de fato, desapropriada. Assim, a maior parte das horas efetivamente trabalhadas não eram pagas. É este o cerne do conceito de mais-valia, absolutamente central não apenas para a compreensão da denúncia que Marx empreende do capitalismo, mas igualmente para entendermos um dos marcos mais relevantes da passagem do constitucionalismo clássico para o social: o surgimento do Direito do Trabalho distinguindo-se do Direito Civil em razão dos princípios de ordem pública (inderrogáveis pelas partes) que o caracterizam em sua especificidade - a proteger o lado economicamente vulnerável desta relação contratual (jornada máxima de trabalho, salário mínimo, repouso semanal remunerado, férias etc.)

Desse modo é que, já no próprio núcleo inovador que marca a emergência do segundo paradigma constitucional, o do Estado de Bem-Estar Social, encontra-se a exigência de um Direito do Trabalho emancipado do Direito Civil e mesmo a possibilidade de uma Justiça do Trabalho especializada, ou seja, centrada na ideia de que o contrato de trabalho não mais poderia ser um simples e livre acordo de vontades. O trabalho requereria a proteção, a tutela, do Estado, do Direito. Torna-se evidente a hipossuficiência do trabalhador, a reclamar a tutela do direito positivo, do Estado, mediante a adoção de princípios de ordem pública inderrogáveis pelas partes. Haveria, nessa relação contratual específica, um lado mais fraco a reclamar proteção legal. Isso, todavia, pôde também assumir um sentido perverso,

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desqualificante da condição do trabalhador enquanto sujeito pleno para enfocá-lo, em sua hipossuficiência material e agora também formal, como objeto da tutela estatal. Aspecto que, em muitos países, no Brasil inclusive, também marcou, de forma indelével, o Direito Coletivo do Trabalho e a estruturação das organizações sindicais. Nesse paradigma, há um Estado hiperpoderoso na tutela das massas, o que é visto não apenas como perfeitamente compatível com a destituição da autonomia moral e jurídica dos indivíduos e organizações sindicais, mas chega-se mesmo a acreditar que essa destituição seria, ela própria, uma proteção imprescindível do trabalhador.

No atual paradigma constitucional, o do Estado Democrático de Direito, se direitos básicos e específicos continuam a ser reconhecidos ao trabalhador, o são precisamente como reconhecimento de sua imprescindibilidade para que o trabalhador possa afirmar e exercer sua autonomia como sujeito de direitos, sua cidadania. A proteção continua a ser devida, ela, contudo, não mais pode significar a desqualificação daquele que, dado à sua situação material, precisa, a princípio, da proteção jurídica das normas de ordem pública, individualmente inderrogáveis pelas partes contratantes.

A Constituição da República de 1988 ao dar curso à concepção de que os direitos sociais de proteção não desqualificam seus destinatários, reconhece ao trabalhador organizado ampla capacidade de negociação coletiva apta inclusive a derrogar pontualmente e para a categoria normas da CLT, desde que os interessados dela participem, mediante representação sindical. Ocorre, contudo, que a exigência do texto constitucional de unicidade na base territorial dos sindicatos dos trabalhadores impede a concorrência entre essas organizações e a possibilidade de o próprio trabalhador que pretenda se sindicalizar ter opções institucionais acerca daquele que o deve representar, a possibilitar, segundo a nossa pior tradição, uma inversão do sinal da representação sindical, em que a base tende a se tornar refém da direção obrigatoriamente unificada e a quem as contribuições sindicais são devidas independentemente da adesão volitiva do trabalhador. Aqui, a atuação dos dirigentes sindicais constituintes e mesmo a pressão dos sindicatos no momento da constituinte deixou-se guiar pelo interesse imediato, não sendo capaz de se colocar à altura da tarefa. Neste aspecto, portanto, o fato de a direita e parte da esquerda sindicais brasileiras3 terem se unido na constituinte na defesa de um mero loteamento sindical entre si, apenas nos lega um problema a ser constitucionalmente enfrentado vez que o texto então aprovado, neste aspecto, pode não se provar capaz de vincular produtivamente o futuro e vir a postular, ele próprio, a necessidade de uma releitura ou revisão. Revisão que pode resultar inclusive, à luz do disposto no § 3º do art. 5º4 da Constituição da República, da hipótese de uma futura ratificação por parte do Brasil, ainda que tardia, da Convenção n. 87 da OIT, de 1948, relativa à liberdade sindical e à proteção do direito de sindicalização.

E este é um problema que o próprio paradigma do Estado Democrático de Direito tende a evidenciar, ao fomentar as exigências de um tratamento constitucionalmente adequado da matéria, um tratamento que seja normativamente coerente com a complexidade que o reconhecimento constitucional da maioridade do trabalhador organizado requer.

O Estado Democrático de Direito pressupõe, como a seguir veremos, uma leitura mais complexa acerca da relação entre direitos individuais e coletivos, bem como destes com a esfera pública, capaz de superar o antagonismo entre essas categorias que nos paradigmas constitucionais anteriores supunha-se inafastável, para flagrá-las não em uma relação de oposição puramente antagônica, mas em uma tensão produtiva em que os direitos individuais não mais podem ser vistos como egoísmos anteriores à vida social, pelo contrário, são constitutivos da própria complexidade social e, nesse sentido, da dimensão pública mesma e do interesse coletivo enquanto tal, pois o seu desrespeito afeta difusamente a sociedade como um todo.

2. A relação entre direitos individuais e coletivos como uma tensão produtiva de opostos que se complementam

A reabilitação teórica da noção de direitos individuais, face aos desafios surgidos desde a crise do paradigma do Estado Liberal e às criticas que apontavam a insuficiência da categoria para lidar com os desafios contemporâneos, é um dos motes argumentativos centrais da teoria do direito e da democracia de Jürgen Habermas5.

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O debate em torno dos direitos fundamentais na esfera trabalhista renova a atualidade da discussão, pois a luta por reconhecimento empreendida por minorias políticas que reivindicam respeito igualitário parece muitas vezes deslocar a subjetividade jurídica dos indivíduos para as coletividades. Habermas procura demonstrar que o sistema dos direitos requer a prioridade dos direitos individuais sobre políticas públicas de distribuição de bens coletivos, no sentido...

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