O reconhecimento de direitos aos trabalhadores imigrantes nas sociedades multiculturais e o papel dos sindicatos

AutorRicardo José Macêdo de Britto Pereira e Laís Maranhão Santos Mendonça
Páginas111-128

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1. Introdução

As primeiras concepções liberais foram extremamente refratárias a tutelas jurídicas voltadas para a diversi-dade de grupos sociais, especialmente daqueles em situação desfavorável na fruição de bens e serviços prestados à comunidade, bem como na preservação de valores culturalmente compartilhados. Em contexto de total ausência de condições para o exercício de direitos, tais grupos foram colocados à margem do sistema, com escassas possibilidades de reversão do processo de exclusão.

As marcas dessas concepções ainda se fazem presentes na atualidade, apesar de questionados vários de seus fundamentos e de profundas alterações decorrentes da intersecção com outros modelos, em especial o do estado-nação, de modo que não são poucos os grupos que permanecem ou passaram a se situar distantes do raio de proteção dos sistemas de direitos. Formam as minorias, na acepção de que são incapazes de usufruir de benefícios sociais, econômicos ou de outra natureza e de participar das discussões e deliberações públicas nas sociedades em cuja periferia esses grupos se localizam.

O distanciamento se acentua por causa de ideias preconcebidas e predominantes no grupo majoritário, de que os grupos minoritários o são em decorrência das opções de vida de seus membros em total desacordo com os valores prevalecentes, de modo que os propósitos de inclusão são interpretados como possibilidades de transgressões. Tal ideia passou a ser reforçada pelo estatismo, que contribuiu para afastar ainda mais esses grupos, mediante a repressão e criminalização das minorias.

Os grupos minoritários se encontram em situações diferenciadas, de acordo com o tipo de discriminação de que são vítimas. Uns participam mais que outros das discussões e deliberações públicas e podem usufruir de alguns serviços, ainda que não em condições de isonomia, enquanto outros são excluídos, com barreiras de ordem prática e normativa para lograr algum tipo de inserção social, por mais reduzida que seja.

O presente texto se ocupa de um desses grupos que é o dos trabalhadores imigrantes, principalmente daqueles que não possuem autorização administrativa para residir e trabalhar no país. Esses trabalhadores são vítimas de exploração

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quando obtêm trabalho, submetendo-se a condições desumanas e degradantes, sem qualquer perspectiva de reação pelo receio de que a aparição em público elimine de uma vez por todas o projeto de vida digna que os levou a deixarem o país de origem.

O debate entre o liberalismo e o comunitarismo, que será examinado no título I, pode ser útil para questionar e corrigir distorções que levam a essas situações. O Estado Democrático de Direito seria inalcançável, não fosse por meio de uma sociedade aberta e plural, que reconhece a autonomia dos indivíduos que a formam. Mas, para sua consolidação, é fundamental que se respeite a diversidade de interesses dos grupos que são os seus titulares.

O atual estágio do debate é relevante, uma vez que reflete situações vivenciadas no contexto de uma sociedade multicultural, de modo que pode oferecer respostas mais adequadas para o problema concreto objeto do presente texto, além de afastar as posições mais radicais. Quando se fala em multiculturalismo é necessário esclarecer as acepções do termo, uma vez que, em utilização distorcida, pode intensificar a opressão e aumentar a segregação.

Por último, neste capítulo, será feita uma menção sobre a questão da inclusão no direito pelo reconhecimento.

No título II, passa-se à análise do reconhecimento dos direitos aos trabalhadores imigrantes, a superação do marco estatista e a emergência dos direitos humanos e da cidadania mais além do estado nacional como referência para as discussões e práticas relacionadas com a temática.

Ao final, no título III, o texto trata do sindicato como sujeito coletivo e da possibilidade de atuação mais ampla, em benefício de grupos minoritários, mediante articulação com os movimentos sociais, organizações não governamentais e atores públicos encarregados de formular e executar políticas públicas. A mudança de concepção no meio sindical para lutar eficazmente não apenas pela categoria representada, mas também por grupos minoritários, incluindo os trabalhadores imigrantes, passa a ser uma possibilidade capaz de repercutir no Direito do Trabalho em geral, considerando as dificuldades de organização espontânea dos trabalhadores que se encontram nessa situação.

2. Multiculturalismo e a questão do reconhecimento: novas perspectivas para os direitos dos trabalhadores imigrantes
2.1. As contribuições do debate liberalismo/comunitarismo para a inclusão social das minorias, com ênfase nos trabalhadores imigrantes

Parte-se do pressuposto de que o pluralismo cultural e político é um fato no ocidente. Não há mais como pensar numa sociedade monolítica. Na realidade, o multiculturalismo é um fato social bem anterior às rupturas que levaram à Reforma Protestante (séculos XVI e XVII), quando se considerou inaugurado um novo contexto político, no qual não se poderia mais vislumbrar uma Europa unificada no princípio religioso.

Entretanto, em se tratando de multiculturalismo e imigração, é imprescindível que se considere um espectro mais amplo, além daquele restrito à Europa. As culturas milenares de astecas, maias e incas encontradas na América Latina são uma importante expressão do multiculturalismo, ainda que não tenham sido consideradas como tais, afinal:

O Pacífico foi o centro cultural da proto-história ameríndia, já que de suas costas puderam tirar sua influência em numerosos aspectos culturais para os mesetas do México, Guatemala, Peru (...) Isto não era um vazio incivilizado e bárbaro: era um pleno de humanização, história, sentido.3

Por outro lado, até o final do século XV a Europa Ocidental era uma cultura isolada e, se comparada ao mundo muçulmano, possuía bem menos expressividade, seja na quantidade de habitantes, seja na comunicação com as outras partes do mundo, seja na extensão das cidades.4 Além da Europa se desenvolviam culturas diversas e "igualmente" expressivas, o que pode pelo menos indicar - para não se colocar uma afirmação categórica - que o multiculturalismo é uma questão presente no mundo muito antes da fragmentação religiosa proporcionada pela Reforma Protestante.

O debate político-filosófico entre comunitaristas e liberais centra-se na questão do multiculturalismo. Porém, inicialmente, é importante fazer uma ressalva sobre esta classificação nas categorias liberal e comunitarista, feita

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apenas para fins didáticos e com o objetivo de contribuir com a discussão, não obtendo a pretensão de definir cada grupo de forma hermética, o que reduziria a complexidade a as contribuições de cada autor:

Evidentemente, tais matrizes são generalizações tanto de características que podemos encontrar nas comunidades e nas sociedades que se desenvolveram no ocidente quanto de idealizações conceituais que se fizeram destas mesmas comunidades e sociedades ao longo da história do pensamento político. Este alerta é importante para lembrar o leitor que elas funcionam como um tipo ideal de função expressamente interpretativa, que visa compreender os acordos que se realizam no interior de um grupo social.5

As controvérsias entre comunitaristas e liberais perpassam, inicialmente, pela oposição entre o lugar que os conceitos de bem e justo ocupam nas formulações filosóficas desses teóricos. Para os comunitaristas, a precedência do bem em relação ao justo vincula-se com a ligação mais intensa que existe entre o indivíduo e a sociedade nesta concepção e com a participação deste indivíduo para a persecução do bem comum. Nesse sentido é a afirmação de Charles Taylor sobre a república: "O que tem isso a ver com a república? O fato de lhes ser essencial, de que elas são animadas pelo sentido de um bem comum imediato partilhado. Nessa medida, o vínculo lembra o da amizade, tal como a viu Aristóteles."6

Em sentido contrário, a deontologia dos liberais é de que os princípios de justiça não podem ser escolhidos de acordo com uma concepção específica do bem. Ao discorrer sobre essa controvérsia, Fábio Portela Lopes de Almeida defende que o liberalismo político:

Não depende de nenhuma concepção de mundo particular, ao mesmo tempo em que é sustentada por todas (embora possa ser justificada independentemente de cada uma delas) na medida em que supõe o consenso sobreposto entre as várias concepções particulares de bem com relação aos princípios jurídico-constitucionais que regulamentam sua vida comum, fundado na ideia de pluralismo razoável, ou seja, que cada concepção de bem deve respeitar todas as outras.7(grifos do autor)

A divergência sobre o local ocupado pelo bem e pelo justo na filosofia política dessas duas matrizes acaba por gerar críticas recíprocas. Os comunitaristas suspeitam da possibilidade de se resolver questões...

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