Precarização, terceirização e ação sindical

AutorGraça Druck e Jair Batista da Silva
Páginas31-45

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1. Introdução

O objetivo deste capítulo é discutir a terceirização no Brasil de hoje, numa abordagem sociológica, isto é, buscando explicitar a concepção deste fenômeno como parte de transformações no processo de trabalho, na divisão do trabalho, nas formas de organização do trabalho e nas relações de compra e venda da força de trabalho. Tratar a terceirização por meio da compreensão da historicidade destas categorias nos permite avançar para uma análise que tome como ponto central as relações entre o capital e o trabalho em suas diversas manifestações. Assim, discutir o desenvolvimento da terceirização no país requer examinar não apenas as suas implicações para o conjunto dos trabalhadores, mas também quais são as lutas e proposições definidas pelos seus sindicatos e como o patronato tem se posicionado frente às tentativas de regulamentação e de ação das instituições do direito do trabalho no Brasil referentes à terceirização e às reivindicações e pautas sindicais.

O processo de trabalho é o movimento por meio do qual os homens atuam sobre a natureza, transformando-a de acordo com um plano idealmente ou conscientemente construído previamente a sua ação. Pois "ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira"3. Assim, todo processo de trabalho é constituído por "uma atividade adequada a um fim, isto é, o próprio trabalho;" pela "matéria a que se aplica o trabalho, objeto de trabalho"; e "pelos meios de trabalho, o instrumental de trabalho."4

Ainda segundo Marx:

No processo de trabalho, a atividade do homem opera uma transformação. Subordinada a um determinado fim, no objeto sobre que atua por meio do instrumental de trabalho. O processo extingue-se ao concluir-se o produto. O produto é um valor de uso, um material da natureza adaptado às necessidades humanas através da mudança de forma. O trabalho está incorporado ao objeto sobre que atuou. 5

No modo de produção capitalista, o processo de trabalho assume uma especificidade histórica: a de se transformar em processo de trabalho que valoriza o capital (produzindo o mais-valor e os valores de troca), pois a força de trabalho vendida ao capitalista deve se realizar ou se transformar em trabalho de acordo com um plano definido por ele e não mais pelo trabalhador, os meios de trabalho são propriedade do capitalista, assim como o produto do trabalho. E seu objetivo é a acumulação de riqueza, isto é, a produção de mercadoria não mais de acordo com as necessidades humanas, mas de acordo com a vontade e possibilidade de enriquecimento mediante apropriação de todo o processo de trabalho.

No capitalismo, a relação do trabalhador com o trabalho, com o produto de seu trabalho e com os meios de trabalho transforma-se numa condição de dominação e alienação, já que os trabalhadores são subordinados ao controle e às determinações do capital, pela divisão social do trabalho.

Neste processo histórico, como observa Marx, as formas de produção de mais-valia, ou seja, as formas de organização do trabalho (cooperação, maquinaria e grande indústria) vão se transformando e expressam a necessidade

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de controle e disciplinamento do trabalho pelo capital. Portanto, a organização capitalista do processo de trabalho é um elemento central para manter a subordinação dos trabalhadores ao capital. É a partir dessa natureza histórica que se pode compreender os diferentes padrões de organização do trabalho, como o taylorismo, o fordismo e o toyotismo, todos eles reveladores de determinadas condições socioeconômicas e políticas, constituídas pela resistência dos trabalhadores às formas de controle e, consequentemente, da elaboração de novas estratégias de dominação no plano da organização do trabalho.

No que se refere às transformações históricas do processo de compra e venda da força de trabalho, isto é, da relação social fundamental do capitalismo - o trabalho assalariado -, se observa uma combinação de velhos e novos elementos no que se refere à regulação desta relação, ou seja, as lutas por direitos sociais e trabalhistas e a conquista da universalização e garantias legais para a condição de assalariado, assim como a própria definição do emprego em suas diversas modalidades, é parte do embate entre patrões e empregados desde os primórdios do capitalismo.

É partindo destas categorias teóricas que se pretende analisar o quadro atual do trabalho e do emprego no Brasil, destacando as transformações em curso que conformam um processo mundial de precarização social do trabalho, enquanto estratégia de dominação do capital, que tem na terceirização a principal forma de controle sobre o processo de trabalho, à medida que fragiliza a condição de classe dos trabalhadores, fragmentando-os, discriminando-os, acirrando a concorrência entre eles e, desta forma, redefinindo a sua organização sindical, pulverizando-a e estimulando a disputa entre os sindicatos.

A terceirização é compreendida centralmente como estratégia de controle e disciplinamento dos trabalhadores, que à medida que consegue dividi-los e fragmentá-los, tornando-os ainda mais heterogêneos, alcança as condições políticas adequadas para impor a sua exploração na perspectiva da redução de custos, ou seja, da diminuição da remuneração do trabalho, aí incluídos os seus direitos e benefícios, conquistados pelas lutas operárias que, no caso brasileiro, influenciaram a regulação do trabalho que originou a Consolidação das Leis do Trabalho há 70 anos, cada vez mais retalhada e atacada pela iniciativa patronal e pelos seus representantes nos governos.

2. A precarização social do trabalho e a terceirização: uma síntese conceitual

A atual fase do capitalismo contemporâneo, denominado de flexível6 ou de acumulação flexível7, traz nesta denominação a compreensão sobre desenvolvimento histórico do sistema capitalista, cujas transformações, especial-mente, no campo do trabalho e das lutas dos trabalhadores, redefiniram a sua configuração, mesmo que mantendo a sua essência em que as relações sociais se assentam sobre o trabalho assalariado, ou seja, pela apropriação do trabalho pelo capital, por meio da compra e venda da força de trabalho no mercado, independentemente das formas de contrato existentes ou predominantes.

Vive-se uma mundialização inédita do capital, apoiada num projeto político e econômico de cunho neoliberal e que se concretizou essencialmente por meio de uma reestruturação intensa e longa da produção e do trabalho há pelo menos quatro décadas. Um processo em que a liberalização e desregulamentação dos mercados favorecem uma acumulação ilimitada do capital, numa busca insaciável pelo lucro, pela produção do excedente, cada vez mais estimulada pela concorrência intercapitalista no plano mundial.

As diferentes conjunturas históricas e as transições de uma era a outra evidenciam processos de transformação em que velhas e novas formas de trabalho e emprego coexistem, são combinadas e, ao mesmo tempo, se redefinem, indicando um típico movimento de metamorfose que, no atual momento, se dá sob a égide de uma dinâmica que passa a predominar sobre outras: é a dinâmica da precarização social do trabalho.

Na era da acumulação flexível, as transformações trazidas pela ruptura com o padrão fordista geraram um outro modo de trabalho e de vida pautados na flexibilização e precarização do trabalho, como exigências do processo de financeirização da economia, que viabilizaram a mundialização do capital num grau nunca antes alcançado. Uma evolução da esfera financeira que passou a determinar todos os demais empreendimentos do capital, subordinando a esfera produtiva, cujos novos modos de organização e gestão do trabalho buscam encurtar radicalmente os tempos

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de produção, bem como otimizar o uso da força de trabalho. Uma ação em que os capitalistas se apoiam numa nova configuração do Estado, que passa a desempenhar um papel cada vez mais de "gestor dos negócios da burguesia", já que age agora em defesa da desregulamentação dos mercados, especialmente o financeiro e o de trabalho.8

Para Castel9, a precarização do trabalho é central na nova dinâmica do desenvolvimento do capitalismo e cria uma nova condição de vulnerabilidade social, pois modifica as condições do assalariamento (estável) anteriormente hegemônico no período da chamada sociedade salarial ou fordista. A perda do emprego ou a perda da condição de uma inserção estável no emprego determinam uma condição de insegurança e de um modo de vida e de trabalho precários, nos planos objetivo e subjetivo, fazendo desenvolver a ruptura dos laços e dos vínculos, tornando-os vulneráveis e sob uma condição social fragilizada, ou de "desfiliação" social.10

Nas palavras de Bourdieu11, essa transição apoia-se na flexibilidade como "estratégia de precarização", inspirada por razões econômicas e políticas, produto de uma "vontade política" e não de uma "fatalidade econômica", que seria dada, supostamente, pela mundialização. Considera a precarização como um regime político (...) inscrita num modo de dominação de tipo novo, fundado na instituição de uma situação generalizada e permanente de insegurança, visando obrigar os trabalhadores à submissão, à aceitação da exploração"12. Esse regime é constituído por vontades (ativas ou passivas) de poderes políticos e, portanto, não pode ser explicada por "leis inflexíveis" de um regime econômico, mas sim, por escolhas orientadas para preservar a dominação cada vez mais completa do trabalho e dos trabalhadores.13

Assim, concorda-se com Bourdieu, e defende-se...

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