Crise estrutural do capital e novas dimensões da precarização do trabalho - direitos sociais trabalhistas e barbárie social no século XXI

AutorGiovanni Alves
Páginas15-26

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1. Introdução

O objetivo do texto é expor elementos categoriais necessários para o entendimento da natureza da questão social no século XXI nas condições do capitalismo global. Iremos expor um conjunto de conceitos indispensáveis para a crítica do capital numa perspectiva materialista de cariz histórico-dialético. Explicaremos, de modo sucinto, o significado dos conceitos de capitalismo global, maquinofatura, crise estrutural de valorização do valor, precarização existencial, modo de vida just-in-time e trabalho ideológico. Eles são produto de uma reflexão elaborada no decorrer dos últimos anos de entendimento do complexo de reestruturação produtiva do capital baseado no "espírito do toyotismo" e na apreensão crítica das mutações da morfologia social do trabalho e do sociometabolismo do capital nas condições de sua crise estrutural2. O entendimento do nexo essencial do espírito do toyotismo como "captura" da subjetividade nos conduziu efetivamente ao desvelamento da precarização do trabalho como precarização existencial3. Finalmente, ao tratamos da metamorfose da questão social no século XXI, colocaremos a importância da efetividade dos direitos sociais trabalhistas na luta contra a barbarie social no século XXI.

Em primeiro lugar, é importante salientar o significado do conceito de capitalismo global. Nas nossas reflexões críticas, ele tem sido utilizado num sentido bastante preciso de capitalismo mundial na etapa da crise estrutural do capital. O conceito de capitalismo global implica um complexo de múltiplas determinações sócio-históricas discriminadas como sendo o capitalismo do novo complexo de reestruturação produtiva do capital sob o espírito do toyotismo ou o novo espírito do capitalismo4; ou o capitalismo da financeirização da riqueza capitalista sob a hegemonia do capital financeiro5; ou ainda o capitalismo sob dominância do neoliberalismo como bloco histórico que condiciona e constrange as políticas do Estado político do capital6; e o capitalismo do pós-modernismo como lógica cultural permeado de irracionalidade social7. Além disso, the last but not the least, capitalismo global é o capitalismo manipulatório em sua forma exacerbada tendo em vista a nova base técnica da sociedade em rede.

Nesses últimos trinta anos de desenvolvimento do capitalismo global, ocorreu a explicitação de duas determinações que consideramos fundamentais e fundantes da nova temporalidade histórica do capital: a constituição de uma

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nova forma de produção do capital que denominamos de maquinofatura; e o desenvolvimento da crise estrutural de valorização do valor que se manifesta principalmente na financeirização da riqueza capitalista e hegemonia do capital financeiro na dinâmica de acumulação de valor. Estas novas determinações estruturais postas pelo tempo histórico alteraram efetivamente a forma de ser da precarização do trabalho.

A precarização do trabalho é um traço estrutural do modo de produção capitalista, possuindo, entretanto, formas de ser no plano da efetividade histórica. Por natureza, a força de trabalho como mercadoria está imersa numa precariedade salarial que pode assumir a forma de precariedade salarial extrema ou então, de precariedade salarial regulada. O que regula os tons da precariedade salarial é a correlação de força e poder entre as classes sociais. É portanto uma regulação social e política.

Entretanto, nas últimas décadas de capitalismo global ocorreram dois grandes fatos históricos que incidem sobre a forma de ser histórica da precarização do trabalho: a emergência da maquinofatura, produto das revoluções tecnológicas do capitalismo tardio; e a emergência da crise estrutural de valorização do valor, decorrente fundamentalmente do aumento da composição orgânica do capital. Nossa hipótese principal é que esses dois fatos históricos - a maquinofatura e a crise estrutural de valorização do valor - fatos históricos que não se reduzem a meros fatos tecnológicos e fatos econômicos, alteraram efetivamente os termos e modos de ser da precarização do trabalho sob o capitalismo global; inclusive, contribuindo para que ela - a precarização do trabalho - assumisse, primeiro, a caracterização de precarização estrutural do trabalho e depois, adquirisse o estatuto social de precarização existencial ou ainda, precarização do homem-que-trabalha.

2. Maquinofatura

A maquinofatura como nova forma de produção do capital, produto do desenvolvimento da manufatura e grande indústria, surgiu como determinação da base técnica do sistema de produção de mercadorias, implicando irremediavelmente na constituição de uma nova relação homem x natureza. Na perspectiva histórico-materialista, a técnica como tecnologia ou ainda, a tecnologia como forma social da técnica, é uma mediação necessária do metabolismo social. No caso da sociedade capitalista, a base técnica do sistema produtor de mercadoria adquiriu determinadas formas sociais caracterizadas por Marx como sendo a manufatura e a grande indústria8. Podemos considerá-las formas sócio-históricas no interior das quais se desenvolve o modo de produção capitalista. Entretanto, manufatura e grande indústria não são apenas categorias críticas da economia política do capital, mas categorias sociológicas que implicam um determinado modo de controle sociometabólico que emerge com a civilização moderna do capital.

Diz Marx, logo no início do capítulo 13 do livro I de "O Capital":

"O revolucionamento do modo de produção toma, na manufatura, como ponto de partida a força de trabalho; na grande indústria, o meio de trabalho"9.

Nesta pequena e interessante passagem, Marx salienta os "pontos de partida" dos revolucionamentos do modo de produção capitalista. Trata-se de uma colocação ontológica da forma de ser da produção social do capital. Como observaram anteriormente Marx e Engels, "a burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais."10: a manufatura ao constituir a cooperação e a divisão manufatureira do trabalho, revolucionou a força de trabalho; a grande indústria ao instaurar o sistema de máquinas, revolucionou o meio de trabalho.

Nossa hipótese é que, a maquinofatura, síntese da manufatura e grande indústria, ao pôr a gestão como nexo essencial da produção do capital revolucionou a relação homem-máquina. Deste modo, maquinofatura é uma nova transformação técnica da produção da vida social que alterou, nas condições da dominação da forma-capital, o controle do metabolismo social. Na verdade, o revolucionamento do modo de produção implica, cada vez mais, o revolucionamento do modo de vida, isto é, o revolucionamento de todas as relações sociais (o Marx de 1844 diria: o revolucionamento da "vida do gênero" [Gattungsleben] na sua forma abstrata e alienada (diz ele:"A vida mesma aparece só como meio de vida" - eis o verdadeiro sentido do trabalho assalariado).

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Portanto, o ponto de partida da maquinofatura não é o revolucionamento da força de trabalho (como na manufatura), nem o revolucionamento da técnica (como na grande indústria), mas sim o revolucionamento do homem-e-da-técnica, ou o revolucionamento da própria relação homem-técnica. Para isso, constituiu-se a ideologia da gestão nas condições da rede informacional.

Enquanto nova forma tecnológica de produção do capital baseada na rede informacional, a maquinofatura colocou a necessidade da gestão como "captura" da subjetividade do trabalho vivo, nexo essencial do toyotismo como inovação organizacional. Por outro lado, a gestão como "captura" da subjetividade do homem como trabalho vivo colocou a necessidade da produção como totalidade social (a disseminação do espírito do toyotismo pelas instâncias da reprodução social, loci do processo de subjetivação social).

Em síntese: toda forma de produção do capital (manufatura, grande indústria ou maquinofatura) implica, como pressuposto da base técnica, uma determinada forma organizacional do trabalho ou gestão e um determinado modo de vida adequado para a reprodução social (isso ocorre tanto na manufatura, quanto na grande indústria e maquinofatura). A maquinofatura, que se constituiu a partir de uma nova base técnica (a tecnologia informacional), põe, como pressuposto efetivo, a "captura" da subjetividade da pessoa humana por meio do espírito do toyotismo, implicando de modo intensivo e extensivo, o processo de reprodução social do trabalho vivo. Deste modo, com o surgimento da maquinofatura alteram-se os termos do estranhamento social dado pela relação tempo de vida/tempo de trabalho e pela constituição de um novo modo de vida: o modo de vida "just-in-time".

Entretanto, é importante salientar, em termos ontometodológicos, que "pressuposto" quer dizer "determinação", mas não "determinismo" - o que significa que a relação entre a maquinofatura (como rede informacional) e as novas formas de estranhamento social (dada pela precarização existencial como precarização do trabalho), não implica um determinismo tecnológico, tendo em vista que a base técnica - no caso, a rede informacional - oferece tão somente virtualidades desenvolvidas (ou não) pelo capital como mediação da forma social historicamente determinada. Enfim, não é a base técnica que produz estranhamento social, mas sim a forma-capital e as relações sociais de produção capitalista, mediadas pela luta de classes, que fazem com que a base...

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