Relações do Direito do Trabalho com o Direito Internacional Público

AutorEvaristo de Moraes Filho - Antonio Carlos Flores de Moraes
Ocupação do AutorProfessor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Páginas127-146

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1. Justificação do capítulo - Ao estudar as características do direito do trabalho, destacamos a nota de sua internacionalidade como um dos mais fortes e crescentes sintomas de sua própria formação e existência atual. Desde os seus primórdios fez-se presente essa marca de internacionalidade, com precursores como Owen (1818) e Le Grand (1845). Para o êxito da legislação do trabalho e o impedimento da concorrência desleal entre as nações, fazia-se mister a sua extensão a todas as pessoas que dela necessitassem, em todos os territórios independentes do mundo. Com os novos métodos de produção, com as novas maneiras de locomoção e de intercâmbio, mais agudos se tornaram esses problemas, na socie-dade moderna, que solicitavam solução jurídica, com regulação também nova.

A guerra de 1914/1918 trouxe a furo toda essa problemática, sendo criada a Organização Internacional do Trabalho com o Tratado de Versalhes, de 28 de junho de 1919. Estava superado o estágio tímido de experiências e de acordos bilaterais de trabalho. Com a OIT, seu Conselho permanente de administração, as conferências anuais e a Repartição Internacional do Trabalho (RIT), como que passou o direito do trabalho a ser internacional - nos seus estudos técnicos, na sua elaboração e na sua aplicação, por meio de convenções (ratificadas) e recomendações. A composição tríplice da OIT aceitou, além dos governos, as categorias sociais, de trabalhadores e empregadores.

No campo do trabalho, escreve Navarra, pouco se admite que possa ser realizado e que apresente um valor duradouro, se não considerado em bases internacionais, fora dos estreitos limites dos Estados.

(1) Pela constante deslocação da mão de obra e pela internacionalização dos grandes grupos econômicos, prementes são os problemas que se criam sobre a norma jurídica a ser aplicada, cabendo ao direito internacional privado dar a solução.

Por tais razões, mesmo que se admita como correta a afirmação de Mario de La Cueva de defender uma autonomia científica do Direito Internacional do Trabalho,2 na nova sistematização deste livro, optamos por classificar o capítulo dedicado ao estudo do Direito Internacional do Trabalho na parte referente às relações do Direito do Trabalho com outros ramos da Ciência Jurídica, por serem os objetivos, princípios e métodos de pesquisa e estudo relativos à Organização Internacional do Trabalho - OIT - os mesmos do Direito Internacional Público. Em resumo, pode-se considerar que o Direito Internacional do Trabalho trata-se do ramo do Direito Internacional Público dedicado ao estudo das normas protetoras do trabalhador, decorrentes da relação jurídica com o empregador ou mesmo oriundas das declarações universais do direito do homem.

2. Conceito de direito internacional do trabalho - Ainda em 1938, repetindo velhas palavras da pri-

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meira edição da sua obra, definia Scipione Gemma o direito internacional do trabalho como "a parte do direito que se refere à atividade do homem no trabalho manual considerado em sua amplitude internacional". É inconcebível, à época, essa restrição do conceito, abrangendo somente o trabalho manual. Definição absolutamente imprestável, deve ser desde logo abandonada.

Barthélemy Raynaud, um dos precursores da disciplina, já em 1906, também apresenta um conceito defeituoso. Mahaim, embora às vésperas de 1914, melhorou um pouco a definição. Mas, agora, depois de longa experiência dos organismos especializados, assim o conceitua o professor Troclet: "Esta parte do direito internacional que regula as relações dos Estados entre si, tendo em vista os nacionais considerados como trabalhadores atuais, futuros ou ex-trabalhadores".

Com essa definição, cautelosa e pragmática, são incluídas todas as modalidades de trabalhadores, subordinados ou autônomos, manuais ou intelectuais, ativos, inativos ou na preparação de mão de obra para a obtenção de emprego ou ocupação. E com isso se abrange e aceita a nota da internacionalidade do emprego do trabalho, na expressão de Gemma, isto é, de um fato internacional, que, pela extensão geográfica e pela natureza das relações e dos interesses, significa que não pode ser obra de um só Estado, já que solicita a intervenção e a colaboração dos demais.3

3. Fundamentos técnicos, econômicos e sociais do direito internacional do trabalho - Os seus fundamentos, históricos e contemporâneos, são de três ordens: técnicos, econômicos e sociais. Em verdade, o direito do trabalho nasceu de conjuntura internacional, trazendo em si, desde logo, a nota de universalidade, como ainda agora Camerlynck e Caen lhe dão destaque.

  1. Pela universalização da técnica, difundiam-se por toda parte análogas maneiras de se reunirem os homens no processo da produção econômica, criando idênticos problemas sociais, econômicos e humanos. De outro lado, pela própria técnica melhoraram os meios de comunicação e de transporte, permitindo um permanente fluxo de trabalhadores no mundo moderno em constantes movimentos de migração - trabalho.4

  2. De outro lado, não adiantava regular-se o trabalho neste ou naquele país se algum ou alguns da comunidade internacional se deixassem ficar em atraso, aproveitando-se, assim, no mercado internacional das suas condições especiais de prestação de trabalho, do preço vil da sua mão de obra. Desde cedo despertaram os países mais industrializados para esse aspecto concorrencial e negativo que lhes seria prejudicial. Com razão, pôde escrever Georges Scelle, um dos maiores sabedores do assunto: "No seio das sociedades dos Estados, basta que um deles afirme e mantenha o absolutismo de sua soberania industrial, que o empregue sistematicamente para diminuir seu custo de produção pela compressão ou parada do progresso social, para entravar imediatamente a evolução da legislação social em todos os Estados concorrentes, subitamente prejudicados. Daí esta convicção desde a origem entre todos os que preferiram refletir sobre o assunto, que não haveria em cada país legislação operária definitiva e eficaz, a menos que esta legislação se tornasse internacional".5

  3. Desse argumento de ordem econômica, salta-se naturalmente para o fundamento de ordem social. E basta a transcrição do preâmbulo da Parte XIII do Tratado de Versalhes para se ter, ao vivo, uma perfeita síntese da matéria, e irrespondível: "Considerando que a Sociedade das Nações tem por fim estabelecer a paz universal, e que esta paz não pode ser fundada senão na base da justiça social; Considerando que existem condições de trabalho que implicam para um grande número de pessoas a injustiça, a miséria e as privações, o que engendra tal descontentamento que a paz e a harmonia universais são postas em perigo; Considerando que a não adoção

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    por qualquer nação de um regime de trabalho realmente humano serve de obstáculo aos esforços das outras nações desejosas de melhorar a sorte dos trabalhadores em seus próprios países; As altas partes contratantes, movidas pelo sentimento de justiça e de humanidade, como também pelo desejo de assegurar uma paz mundial durável, resolvem o que se segue".

    Esses mesmos argumentos de índole social e humana aparecem repetidos nos principais documentos internacionais posteriores, notadamente depois da Segunda Guerra Mundial, como, por exemplo, na Carta do Atlântico (1941), de Filadélfia (1944), nas Nações Unidas (1945) e na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).

    4. Fontes do direito internacional do trabalho - Como é pacífico, os costumes e os tratados constituem as fontes principais do direito internacional. Por sua vez, distinguem-se estes últimos em tratado, propriamente dito (Vertrag), e convenção-lei (Vereinabarung), da terminologia alemã. Enquanto o primeiro obriga somente os Estados signatários ou interessados em acordos bilaterais ou multilaterais, o segundo constitui um ato genérico, abstrato, livre e aberto à adesão de qualquer novo membro, com caráter de norma internacional de conduta. Outras fontes, contudo, se juntam a estas, como expressamente se dispõe no art. 38 do Estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional (1920): "A corte aplica: I - As Convenções internacionais, sejam gerais, sejam especiais, estabelecendo normas expressamente reconhecidas pelos Estados em litígio. II - O costume internacional como prova de uma prática geral aceita como sendo de direito. III - Os princípios gerais de Direito reconhecidos pelas nações civilizadas. IV - Sob reserva da disposição do art. 59, as decisões judiciais e a doutrina dos publicistas mais qualificados como meio auxiliar de determinação das normas de direito. A presente disposição não impede a faculdade que tem a Corte, se as partes estão de acordo, de estatuir ex aequo et bono".6

    No direito internacional do trabalho predominam, cada vez mais, as convenções abertas e abstratas, procurando tornar uniforme e universal a norma protetora, com um mínimo de discrepância e desajuste. Esses textos como se vão ordenando num Código Internacional do Trabalho, como garantia mínima indispensável, como base geral de um possível direito uniforme. Ou, nas palavras de La Cueva: "O Direito Internacional do Trabalho quer a regulamentação universal das condições de trabalho. O Direito Internacional do Trabalho é direito interno que se universaliza; porém, também poderia dizer-se que o Direito Internacional do Trabalho é direito internacional do trabalho que se realiza na legislação de cada Estado".7

    5. Histórico - Século XIX - Doutrina e movimentos sociais - Já nos fins do século XVIII, escrevia Necker, antigo ministro francês, a respeito das causas do enfraquecimento do sentimento religioso: "O reino que em sua bárbara ambição abolisse o dia do repouso estabelecido pelas leis da religião (domingo), conseguiria provavelmente um grau de superiori-dade se ele só adotasse semelhante expediente. Mas no momento em que todos os soberanos seguissem este exemplo, as proporções antigas, que fixam hoje as vantagens respectivas das diversas nações comer-ciantes...

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