2. Posições doutrinárias acerca da reparabilidade dos danos morais

AutorEnoque Ribeiro dos Santos
Ocupação do AutorProfessor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Páginas73-84

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Os danos morais são aqueles que atingem interesses que não são representativos de expressão econômica. Desde seus primórdios, o instituto suscitou entre os doutrinadores do Direito grande polêmica sobre sua admissibilidade, e deparamo-nos com três correntes: a corrente negativista, a mista e a positivista; matéria que passamos, então, a analisar.

2.1. Posições doutrinárias negativistas

Hoje, é cada vez menor o número de autores e pensadores do Direito que negam a tese da admissibilidade do Dano Moral, mesmo do ponto de vista puramente doutrinário.

De acordo com o Professor Rui Geraldo Camargo Viana,135 "a maioria dos que assim pensam não admite que se possa dissociar o conceito de dano do de prejuízo material". É o que sucede, entre outros, com Maggiore, que considera o dano moral verdadeira aberração,136 e Gabba, para quem a sua "aceitação é tão ilegal e antijurídica que até a linguagem resulta inadequada para expressá-la’’137.

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Savigny também é lembrado como membro da corrente negativista, vez que, aceitando a existência daquele tipo de dano, o exclui da tutela do direito por entender que as faculdades inerentes ao homem, isto é, "os direitos que a qualidade de homem dá ao indivíduo" (os direitos originários) estão numa esfera transcendente à do direito comum que, por isso, não os pode proteger.138

De acordo com Zulmira Pires de Lima, temos um elenco de nove objeções à tese da admissibilidade do dano moral.139 Seguiremos com a autora, considerando os argumentos de Wilson Melo da Silva, na análise da argumentação citada.

1. Falta de um efeito penoso durável

Gabba, autor da objeção, considera que a diminuição de um prazer ou da manutenção da dor é sempre passageira, o que é incompatível com o conceito de dano, que pressupõe um efeito penoso duradouro. Segundo Aguiar Dias,140 "dano

é a diminuição da consideração social da pessoa ou a ofensa à pudicícia de uma jovem ou à perda de assistência dos pais, mas já não admite tal qualificação para a ofensa ao decoro ou à liberdade que serão fenômenos e efeitos passageiros’’.

De acordo com Zulmira Pires de Lima, não se pode qualificar um evento de dano ou não a partir do período de duração do efeito penoso, de modo que ela questiona: "quanto tempo é preciso que ela dure (a ofensa) para que possa dizer-se que existe dano?".141

Sérgio Severo142 cita Wilson Melo da Silva,143 que afirma:

"Pretender-se atribuir à menor ou maior duração de um efeito danoso, a sua qualidade ou não, de lesão, seria arbitrariamente e sem lógica, buscar-se uma distinção não autorizada pela realidade (...).

As feridas da alma são, às vezes, eternas e mais duradouras que as feridas físicas (...)."

Sérgio Severo alude a essa objeção, alegando que: "de fato, a noção de tempo como elemento caracterizador do dano é descabida. O menor tempo de exposição a resíduos nucleares tem o poder de gerar mutações genéticas que se prolongarão por gerações: a dor, ainda que fugidia, vai se esconder em algum lugar dos sentimentos de uma pessoa, para voltar na hora mais inoportuna. Todo dano é uma ofensa e como tal deve ser reparado, na medida dos efeitos que causar’’.144

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Cabe, ademais, sinalizar que a questão da duração em maior ou menor tempo do dano diz respeito à maneira como será a reparação, ou seja, mais ou menos ampla. Isso sempre vai depender da qualidade, da intensidade da lesão, além da condição da vítima, de sua sensibilidade e do status pessoal, e de sua notoriedade na sociedade.

A literatura tem mostrado que, não raro, personalidades famosas têm testemunhado, de forma contundente, o sofrimento de dores, cujo tempo de vida não foi suficiente para curá-las. Dores profundas que se aninharam na alma por toda a existência145.

Há dores que levam às decadências física e psíquica e à morte. Há outras eternas que não matam, que se fazem vivas a vida toda e, assim, tornam-se causas de obras-primas de poetas e de escritores.

Rousseau não escondeu em Confissões a lesão que a escola impiedosamente lhe impôs. Diz ele que, passados cinquenta anos de vida, mantinha viva a ferida que lhe provocou a escola, expulsando-o injustamente daquele convívio, cujo diretor consistia um admirável referencial que, até então, desejaria seguir. Conclui que, mesmo que vivesse mais cem anos, não esqueceria a dor da injustiça, e que, a partir daquele fato, passou a ver o mundo sem cor146.

2. A incerteza de se haver violado um direito

Chironi, partindo de que para haver ressarcibilidade é indispensável a existência de um direito violado, duvida da legitimidade da reparação de danos morais por lhe parecer que, em tais casos, não há um verdadeiro direito que mereça a proteção da ordem jurídica.

Minozzi,147 contrariando a posição de Chironi, manifesta-se no sentido de que o dano moral não é a lesão abstrata de um direito, mas o efeito não patrimonial da lesão de um direito concreto.

Para Wilson Melo da Silva148:

"Um direito violado, pois, existe sempre, no caso dos danos morais. Se os efeitos são imateriais e se há dificuldade na reparação deles, isto não implica a inexistência dessa violação e desse direito lesado."

De acordo com Zulmira Pires de Lima, os danos extrapatrimoniais não dizem respeito a qualquer categoria especial de direitos, uma vez que eles podem surgir a

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partir da violação de qualquer direito, seja ele patrimonial ou não, desde que gere um efeito extrapatrimonial149.

Não se trata, portanto, de um argumento consistente, vez que os danos extra-patrimoniais denotam-se a partir dos efeitos de um determinado evento, não haven-do uma particular categoria de direitos que ensejem danos extrapatrimoniais150.

3. Dificuldade em descobrir a existência do dano moral

Essa objeção fundamenta-se na impossibilidade de aferir se o ofendido realmente sofreu uma dor ou se, por trás de sua pretensão, não há uma hipocrisia dissimulada151.

Gabba considera que, sendo a determinação da existência do dano moral matéria de fato, é impossível verificar se ele ocorreu ou não no ânimo (patema d’animo) de quem se diz vítima, já que é de todo subjetivo152.

Georges Ripert153 defende que a reparação do Dano Moral dá um exemplo que vem, no entender de Wilson Melo da Silva,154 dar força àquela objeção, ao apontar o "estoico de coração seco" que não sofre com a morte de um parente, chorada intensamente por um amigo.

Zulmira Pires de Lima155 ainda concorda que em determinadas situações é difícil verificar a existência do sofrimento, porém a autora considera que esse motivo não pode implicar a negação da ressarcibilidade de tal tipo de dano.

Sérgio Severo, nesse sentido, afirma que "em verdade, como já se pôde observar, a dor não é elemento essencial do dano extrapatrimonial, mas, nas situações em que ela deve estar presente, o mecanismo de aferição não pode correr o risco do subjetivismo. Desse modo, o critério objetivo do homem-médio (reasonable man, bonus pater familiae) é bastante razoável, i. e., nas situações em que uma pessoa normal padeceria de um sofrimento considerável, forma-se uma presunção juris tantum de que sofreu um dano extrapatrimonial. Tal presunção pode ser afastada pela prova em contrário’’156.

4. Indeterminação do número de pessoas lesadas

Gabba também é o autor dessa objeção à reparação do dano moral. Segundo citação de Wilson Melo da Silva,157 entende que o padecimento moral pode verifi-

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car-se não só no sujeito como em terceira pessoa, além dos parentes do ofendido ou defunto. Quem pensa apenas nos parentes do defunto ou do ofendido vivo ou morto faz uma restrição arbitrária. Os amigos podem também sofrer. Porém, admitindo a dor de terceiros estranhos à ação de dano, que possam agir jure proprio em busca de ressarcimento, introduz-se qualquer coisa de novo e de inaudito na doutrina civil do dano, um critério aberrante até o infinito.

Rui Geraldo Camargo Viana158, a propósito, afirma que "foi a propósito dessa objeção que Georges Ripert deu o exemplo do ‘estoico de coração seco’, insensível à morte de um parente, mas chorado por um amigo, reconhecendo que, nesse aspecto e na falta de disposição legal, a determinação do número de lesados apresenta grandes dificuldades que compete ao juiz superar. E diz: ‘se o desgosto sofrido constitui prejuízo que possa ser reparado pela ação de indenização, será preciso conceder reparação a todos os que sofrem com a morte de alguém’ e aponta decisões que a atribuíram à concubina, à noiva e até a uma pessoa moral pelo prejuízo que lhe foi causado pela morte de uma criança assistida".

Planiol e Ripert159 referem-se a certas situações em que a fonte do prejuízo está na afeição dedicada a um ente querido, sugerindo que, nesses casos, se está perante vítimas dos seus próprios sentimentos.

Zulmira Pires de Lima160, citada por Sérgio Severo,161 relata a preocupação dos autores favoráveis à reparação do dano extrapatrimonial no sentido de restringir o número de pessoas legitimadas para postular a reparação do dano extrapatrimonial e manifesta-se no seguinte sentido:

"A nós parece-nos antes que para a resolução desta dificuldade não se deve exigir um critério rígido, consagrado numa lei, mas se deve deixar ao juiz a faculdade de, em cada caso concreto, e segundo as circunstâncias, verificar quem são as pessoas cuja dor merece ser reparada."

Para Sérgio Severo, "essa preocupação vem diminuindo com o tempo. Já foi visto que a França adota um critério bastante amplo e que se tem notado noutros países uma tendência neste sentido. Em verdade, pela posição já adotada, o dano que vai diminuindo de intensidade conforme se distancia da pessoa diretamente lesada encontra proteção mais forte no tocante a esta e, mesmo em caso de morte, seus sucessores comporão um grupo, que só poderá pleitear a satisfação pela via da hereditariedade uma única vez. Já o dano por ricochete compõe uma esfera que se vai apagando com a...

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