2. Dano moral e crime - correlação do tema no direito penal e no direito do trabalho

AutorEnoque Ribeiro dos Santos
Ocupação do AutorProfessor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Páginas225-234

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O Dano Moral Trabalhista, por constituir-se um ilícito, tem uma correspondência direta com o ilícito penal, diferenciando-se, entretanto, dele em termos de graduação.

A ordem jurídica e o equilíbrio social muitas vezes são turbados pela atividade humana, que atinge ora a sociedade, ora o indivíduo, alcançando, não raro, a ambos. A sociedade, então, reage contra esses fatos que ameaçam a ordem estabelecida e fere o seu autor, com o propósito de impedir que volte a afetar o equilíbrio social e evitar que outros sejam levados a imitá-lo.

De acordo com Hungria, "em princípio, a voluntária transgressão da norma jurídica deveria importar sempre a pena, stricto sensu. Mas seria isso uma demasia. O legislador é um oportunista, cabendo-lhe apenas, inspirado pelas exigências do meio social, assegurar, numa dada época, a ordem jurídica mediante sanções adequadas. Se o fato antijurídico não é de molde a provocar um intenso ou difuso alarma coletivo, contenta-se ele com o aplicar a mera sanção civil (ressarcimento do dano, execução forçada, restitui in prestinum, nulidade do ato). O Estado só deve recorrer à pena quando a conservação da ordem jurídica não se possa obter com outros meios de reação, isto é, com os meios próprios do Direito Civil (ou de outro ramo do Direito que não o Penal). A pena é um mal, não somente para o réu e sua família, senão também, sob o ponto de vista econômico, para o próprio Estado. Assim, dentro de um critério prático, é explicável que este se abstenha de aplicá-la fora dos casos em que tal abstenção represente um mal maior’’513.

Hungria ainda assinala que "a ilicitude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só, na sua essência, é o dever jurídico. Em seus aspectos fundamentais há uma perfeita coincidência entre o ilícito civil e o ilícito penal, pois ambos constituem uma violação da ordem jurídica, acarretando, em consequência, um estado de desequilíbrio social. Mas enquanto o ilícito penal acarreta uma violação da ordem jurídica, quer por sua gravidade ou intensidade, a única sanção adequada é a imposição da pena, no ilícito civil, por ser menor a extensão da perturbação social, são suficientes as sanções civis (indenização, restituição in specie, anulação do ato,

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execução forçada etc.). A diferença entre o ilícito civil e o ilícito penal é, assim, tão somente, de grau ou de quantidade. Do ilícito civil, do qual resulta um prejuízo e, portanto, o desequilíbrio social, exsurge a responsabilidade civil. Por meio da reparação civil, o prejudicado é reintegrado em sua situação patrimonial anterior. A reparação do dano, forma de restabelecer o equilíbrio social, é também o modo de satisfazer para cada membro da sociedade, sua aspiração de segurança, comprometida e ameaçada pela vida moderna. Mas enquanto no ilícito penal, a pena é cominada proporcionalmente à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima (art. 59 do Código Penal), no ilícito civil o que se leva em conta para efeito de reparação é tão somente o dano causado’’514.

Correlacionando o Dano Moral Trabalhista e os crimes tipificados no Direito Penal, temos as figuras da calúnia, da difamação e da injúria.

A calúnia, prevista no art. 138 do Código Penal, "é a falsa imputação de fato definido como crime’’. Da definição legal inferimos que o elemento constitutivo da calúnia é a falsidade da imputação. Se o conteúdo da imputação é verdadeiro, ela é objetivamente lícita ou juridicamente indiferente.

Todavia, como salienta Hungria515, nem sempre a calúnia é condicionada à inverdade da imputação: nos casos excepcionais em que é vedada a exceptio veritatis, tem-se de reconhecer que a calúnia é a simples imputação de fato definido como crime, pouco importando se falsa ou verdadeira.

A difamação é a "imputação a alguém de fato ofensivo à sua reputação" (art. 139 do Código Penal).

O bem jurídico protegido é a honra objetiva. De acordo com Aníbal Bruno516,

"a imputação deve referir-se a fato determinado, exposto em condições de ser tomado como verdadeiro. Fato desonroso, isto é, que possa inspirar a outrem um sentimento de reprovação e desprezo em relação à vítima, e, assim, capaz de afetar a boa fama do ofendido, embora a acusação não exprima aquele próprio sentimento por parte do agente. É necessário que o fato desonroso imputado ao ofendido não constitua crime, porque, então, configurar-se-ia calúnia, mas pode ser uma contravenção, ainda que nem toda contravenção se possa ter por fato desonroso’’.

A injúria, prevista no art. 140 do Código Penal, tem como bem jurídico lesado a honra subjetiva, i. e., o sentimento que cada pessoa tem a respeito de seu decoro ou dignidade. De acordo com Hungria,517 "consiste na manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra alguém", daí por que, ao contrário do que ocorre em relação à calúnia e à difamação, a injúria não precisa conter a imputação de fatos determinados.

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Como lembra Aníbal Bruno,518 "na sua essência, a injúria é uma manifestação de desrespeito e desprezo, um juízo de valor depreciativo capaz de ofender a honra da vítima no seu aspecto subjetivo. Pode referir-se a condições pessoais do ofendido, do seu corpo, do seu espírito, da sua cultura, da sua moral, ou ainda da sua qualificação na sociedade ou da sua capacidade profissional’’.

A honra pode ser comum e especial. Como ressalta Hungria519, "a especial é a que diz com particulares deveres, notadamente os relativos à profissão do indivíduo, pelo que é também designada com o nome de honra profissional. O médico, o advogado, o professor, o comerciante, o militar, o escritor, o artista etc. têm seus peculiares pontos de honra que, à parte de sua dignidade ou reputação pessoal, devem ser respeitados. A ofensa à honra especial ou profissional pode deixar de atingir a honra privada ou comum. Dizer-se, por exemplo, de um advogado que é um ‘coveiro de causas’ é ofender sua dignidade profissional, embora não afete a sua dignidade ou reputação como homem’’.

Vemos, assim, que a calúnia, a difamação e a injúria, embora institutos do Direito Penal, podem ser utilizadas na configuração do Dano Moral Trabalhista, na medida em que representam também um ilícito civil, que gera para o ofensor da honra alheia a obrigação de reparar o dano causado àquele que tenha sido lesado, no caso, o trabalhador ou o empresário.

De acordo com Jorge Pinheiro Castelo520, "o ilícito trabalhista, assim como o ilícito civil, são ditos contínuos, vez que não se exige que, necessariamente, venham traçados em tipos legais estritos, bastando que estejam relacionados com todo o sistema jurídico. Fica claro que a configuração do ilícito trabalhista não é necessariamente condicionada à tipicidade legal prévia ao atentarmos que, no âmbito trabalhista, admite-se a integração do ordenamento jurídico por meio da aplicação da analogia, da equidade, dos usos e costumes, dos princípios e normas de ordem geral extraídos do ordenamento jurídico (art. 8º da CLT). Diferentemente, na área penal e tributária, o tipo penal e fato gerador tributário estão vinculados a uma legalidade estrita, ou, em outras palavras, à figura típica legal prévia’’.

Tal caracterização permite que a garantia da ação civil e da ação trabalhista abranja todo o ordenamento jurídico e não apenas uma figura típica.

Assim, o empregado tanto pode ser alcançado pelo dano moral, tanto como pessoa comum, na linha da extracontratualidade, tanto por ato ilícito, decorrente em atentado contra a sua personalidade; por força de acidente em atividade perigosa (acidente de trabalho); como, ainda, na área da contratualidade (por inexecução de ajustes ou contratos firmados).

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De acordo com Carlos Alberto Bittar521, "pode, ademais, sofrer danos em seu estatuto profissional, seja como empregado, seja como contratado, seja como estranho (como, por exemplo, em sanções indevidas, em despedidas imotivadas, em ruptura injusta de contrato, em divulgação de fato ofensivo ou de escrito injurioso, ou de outra qualquer ação lesiva do gênero)’’.

Ainda consoante Bittar,522 "no relacionamento com pessoas físicas, investidas injustas podem atingir o estatuto pessoal da instituição (como nos usos indevidos de bens intelectuais, de sinais identificadores, de atentados à honra, ao sigilo e a outros bens e direitos personalíssimos), bem...

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