1968 in France--2013 in Brazil: Happenings-Resistances/1968 na Franca--2013 no Brasil: Acontecimentos-Resistencias.

AutorCoimbra, Cecilia Maria Boucas

Introducao

Mas e evidente que nao se pode deter o movimento. E preciso que o movimento aconteca. Voce pode ver que o que esta acontecendo e importante! (Gilles Deleuze)

Nestes 50 anos pos maio de 68 frances e vivendo em um pais onde, na atualidade, um estado de excecao-policial-repressivo-fascista se impoe, nosso desafio e trazer o que ha de comum entre Maio de 1968 na Franca e as manifestacoes de Junho de 2013 no Brasil. Para tanto, trabalharemos com um efeito de maio de 68 em nos: a experiencia de um outro modo de pensar. O desafio talvez ai se configure como o que nos mantem no movimento incessante de um existir mutante: escrever com palavras-atos-pensamentos desconhecidos. Destituindo de si qualquer essencia pensante, somos pensados, somos o efeito de um pensamento que, em nos, busca espaco para se expressar.

"Pensar nao e o exercicio natural de uma faculdade. O pensamento nunca pensa por si mesmo(...) pensar depende de forcas que se apoderam do pensamento. Enquanto o nosso pensamento estiver ocupado por forcas reativas, e preciso reconhecer que ainda nao pensamos." (Deleuze, 1976, p. 8)

Se concordamos que pensar nao e um exercicio natural de uma faculdade, o pensar- escrever um texto passa nao por uma vontade de descoberta da verdade, mas por uma vontade de experimentar o encontro com algo que nos faz pensar. Nossa conexao se estabelece, assim, pela ligacao do pensamento a vida, onde pensar nao e questao de teoria, mas problema de vida. E, se e problema de vida, e historia de luta entre forcas: forcas aprisionadoras da vida e forcas liberadoras da potencia coletiva de uma vida (Monteiro de Abreu, 2002).

Em alguns anos de experiencias como militante-ativista, psicologa, professora, em partidos politicos ou fora deles / medica em hospitais de periferia, postos de saude comunitarios (em favelas e cidades do interior), grandes hospitais de emergencia, hospitais de clinica especializada, sanatorios e manicomios; na universidade e no consultorio, acumulamos inquietacoes. Nos confrontos com os poderes instituidos--nos partidos politicos, na universidade, na psicologia, na medicina e na psicanalise--, ao adotarmos uma atitude critica em relacao ao modo de pensar dominante, fomos forcadas a problematizar o proprio pensamento. Foi a partir do encontro com a construcao conceitual de alguns pensadores da Filosofia da Diferenca--tais como Gilles Deleuze, Felix Guattari, Michel Foucault e Friedrich Nietzsche na qualidade de intercessores (1)- que muitas de nossas questoes puderam ganhar corpo e, principalmente, lingua. Este texto e fruto desse duplo encontro: com a forca das inquietacoes que nos forcam a pensar e com a forca intercessora de alguns conceitos filosoficos que instrumentalizam o pensar. Trata-se da afirmacao da estreita relacao entre vida e pensamento, onde pensar e problematizar o que fazemos, o que somos e o mundo em que vivemos. Ou seja, implica em um movimento de abertura que, pretendendo ir alem das evidencias do ja conhecido, nos lanca em uma experiencia vertiginosa. Mergulhamos no desconhecido, onde as palavras por vezes comparecem e, outras tantas vezes, para nosso desespero, escapam. Nesse empreendimento arriscado, nem mesmo podemos dizer que ha um eu que quer (Coimbra e Monteiro de Abreu, 2008). Talvez, apenas nos deixemos conduzir por uma forca ativa de criacao que nos faz seguir na turbulencia do pensar-experimentar-outrar (2) (Monteiro de Abreu, 2002). Somos, assim, afetadas pela construcao de um modo de pensar que faz da critica algo mais que um soneto melancolico de lamentacoes, nos levando a colocar em analise o momento presente. Momento em que, resistindo as formulacoes impostas como verdades inquestionaveis, nos abrimos para pensar o impensavel do pensamento, o invisivel da visao e o indizivel da palavra (Levy, 2003).

Neste texto somos movidas pela afirmacao de Deleuze que qualifica maio de 68 como um Acontecimento puro. Passamos a nos perguntar sobre o significado desta afirmacao. Acontecimento e a palavra que nos guia e nos produz interrogacoes. Uma palavra que expressa um conceito filosofico que aqui ousaremos usar na tentativa de responder a seguinte questao: poderiamos dizer que junho de 2013 foi tambem um Acontecimento?

A escolha deste conceito se da pela conexao que este estabelece com um outro modo de pensar. Este e, ao nosso ver, o ponto de maior aproximacao entre Nietzsche- Deleuze-Guattari-Foucault como forcas deflagradoras de uma "contrafilosofia" (3): uma analitica que emerge como recusa do modo de filosofar calcado nas nocoes tradicionais de sujeito e poder, recusa essa que permite afirmar a resistencia em um sentido positivo e afirmativo de criacao de novas possibilidades de vida. Nao possibilidades antecipadamente formuladas, mas possibilidades que sao engendradas no proprio processo de mutacao. Essa e a novidade, esse e o desafio: pensar- criar em meio ao processo ao inves de seguir reproduzindo modelos que visam atingir metas ja estabelecidas.

Novos modos de pensar a resistencia: alguns abalos instauradores a partir de maio de 68 na Franca

Maio de 68 foi um abalo para Gilies e para mim, como para tantos outros ... (Felix Guattari).

  1. Pensamento e Acontecimento

    Nao desencadeamos pensamentos por reconhecimento, mas por arrombamento de algo estranho que e sentido e e impulsionador. E essa sensacao de arrombamento, de violencia, ou, nas palavras de Guattari, de um abalo que faz de maio de 68 um Acontecimento Puro. Um abalo de tal ordem que problematiza o que somos e o que fazemos e coloca no horizonte politico e filosofico de nosso tempo uma maneira radicalmente diferente de se conceber as contestacoes, as revoltas e a ideia de revolucao. Um arrombamento que faz com que possamos afirmar que nao existe como pensar um sujeito apartado da experiencia de mutacao operada socialmente. Ou seja, nao ha uma revolucao como lugar distante de si a ser conquistado, mas um revolver que acontece em cada um em meio ao Acontecimento experimentado. Diferentemente do pensamento tradicional, a Filosofia da Diferenca se conecta com a intensidade do movimento de criacao como possibilidade de resistencia. Um outro modo de fazer, uma outra aposta.

    Acontecimento nos remete ao plano das forcas que produz desestabilizacao, crises e rupturas e, ao mesmo tempo, cria algo novo. Nos remete a inauguracao de um outro modo de perceber e enfrentar as politicas de dominacao. Enfrentamento que inaugura algo na recusa do que nos e dado. Recusa que convoca a invencao de outros modos de resistir e existir e ve a liberdade nao como o fim da dominacao, mas como um continuo processo de recusa daquilo que quiseram nos fazer crer que eramos, afim de abrir brechas na experimentacao de outros (muitos) modos de existir, pensar e agir--novos modos de subjetivacao.

    Nas palavras de Deleuze:

    "Maio de 68 foi a manifestacao, a irrupcao de um devir (4) em estado puro. Hoje esta na moda denunciar os horrores da revolucao. (...) Diz-se que as revolucoes tem um mau futuro. Mas nao param de misturar duas coisas, o futuro das revolucoes na historia e o devir revolucionario das pessoas. Nem sequer sao as mesmas pessoas nos dois casos. A unica oportunidade dos homens esta no devir revolucionario, o unico que pode conjurar a vergonha ou responder ao intoleravel". (Deleuze, 1992, p. 211)

    Para Deleuze e Guattari, a Vida acontece em dois planos concomitantes de realidade: plano das formas atualizadas, instituidas e plano da virtualidade das forcas criadoras de possiveis. Ou seja, para os autores o possivel e sempre criado, nunca pre-existe. Ele e criado pelo Acontecimento. Ha ai uma nova concepcao da materia, do ser, do sujeito. E a partir da interrogacao sobre a constituicao do que existe materialmente que Deleuze e Guattari nos apresentam o imaterial da materia, o devir do ser; enfim, o duplo plano coexistente de tudo que existe. Importante ressaltar que quando falamos de duplo plano nao se trata de um outro mundo, uma outra realidade separada, mas duas faces da mesma realidade material. Nesse sentido, a construcao conceitual aqui apresentada visa recuperar a crenca neste mundo no qual estamos inseridos, buscando ativar e alargar as frestas por onde as forcas insistem na vontade de criar mundos possiveis. Nos chamados fenomenos historicos ha sempre uma parte de Acontecimento que nao se reduz aos determinismos sociais causais. "O Acontecimento e ele mesmo uma ruptura ou um desligamento com relacao as causalidades: e uma bifurcacao, um desvio em relacao as leis, um estado instavel que abre um novo campo de possiveis" (Deleuze e Guattari, 2015). Ou seja, algo que se da a revelia de nossa previsao. E a emergencia de um acaso que desfaz toda e qualquer antecipacao e desarma nossa barreira de protecao. Nosso intelecto, movido pelo pensamento reprodutivo do senso comum em busca de verdades, passa o tempo todo se protegendo para tentar barrar o acaso. Mas os acasos retornam, insistem e Acontecem.

    O Acontecimento e a emergencia da contingencia que forca o pensamento a pensar. Evento cuja forca e capaz de tirar o pensamento do marasmo em que ele se encontra quando ele esta reduzido ao habito e a memoria. Todo Acontecimento forca o pensamento a pensar. Pensar no infinitivo e Acontecimento e nao atividade espontanea e natural. E, so pensamos quando somos forcados a pensar por algo que Acontece. Espontaneamente o pensamento se reduz a reproducao de algo ja dado, ja pensado. Em sendo livre de toda ordem causal normativa, o Acontecimento produz uma nova normatividade, novas formas de vida, alterando a estetica e a maneira de ser na experiencia. E, portanto, um fenomeno de visao e percepcao que exige desdobramentos de abertura e engendramento de novas possibilidades de vida.

    O conceito de Acontecimento afirma um modo de pensar que rompe com o principio da razao-causal presente no modo de pensar da ciencia platonico-cartesiano- positivista ancorado em um fundamento ou causa exterior que transcende a experiencia. Diferentemente do...

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